Nesta manhã de sábado, os socalcos às portas do Pinhão são como formigueiros. De um lado, um formigueiro pouco habitado, é certo, do outro, um formigueiro que se desloca quase em procissão em torno de um líder. Da Quinta de La Rosa, na margem direita do Douro, observamos o primeiro; depois cruzamos nós o rio e, por momentos, fazemos parte do outro — por momentos, porque a falta de forma física impele-nos a uma batota.
E batota é a palavra adequada, já que estamos numa espécie prova desportiva, o La Rosa/Carvalhas Hill Challenge, que começou como uma tradição. Nos anos de 1920, os funcionários da Quinta de La Rosa, numa prova de resistência, começaram por subir o monte que fica em frente à quinta, o monte das Carvalhas, do outro lado do rio; na década de 1980, decidiram tornar o desafio mais interessante e a partida passou a ser do lado de La Rosa, para incluir uma travessia a nado. Este ano, decidiu tornar-se o desafio oficial, convidando-se uma série de amigos. O desafio da Quinta de La Rosa passou a ser também da Quinta das Carvalhas — justamente, uma vez que o “monte” lhe pertence e é, aliás, umas das mais icónicas imagens do Douro.
Por isso, cá estamos nós, para um fim-de-semana em território vinícola Património Mundial, vendo os participantes do desafio a saírem em grupos, atravessarem o rio e subirem a encosta íngreme, arborizada de verdes vários, onde são pontos brancos movendo-se em ziguezague para superar os acidentes do terreno — às vezes, acidentes do percurso: na água, alguém tem de ter auxílio de mota de água e na encosta ouvimos chamar “apoio”. Para os “menos resistentes”, a Caminhada Familiar faz o percurso de 7,5 quilómetros pela estrada, acompanhada pelo autocarro panorâmico da Quinta das Carvalhas; a nossa batota inclui grandes porções de autocarro e outras boleias, mas tentando não perder de vista Álvaro Martinho.
O técnico de viticultura das Carvalhas é o guia (na verdade é um one-man-show: haverá de cantar no churrasco final, bem acompanhado por vinhos de La Rosa e das Carvalhas) que debita segredos e histórias do Douro vinhateiro. Como o diálogo permanente entre o solo rochoso, “pobre, esquelético, dão-lhe tantos nomes maus”, e as “vinhas, madressilvas, troviscos, sobreiros, amendoeiras, oliveiras”: “Queres viver vida eterna? Então concentra o esforço no teu sistema radicular e eu deixo-te penetrar em mim”, diz a rocha. Há milénios que é assim, sob uma média de 2400 a 2500 horas de sol por ano. “As vinhas vivem, coabitam, são felizes aqui. Não querem dar vinho, querem amadurecer, dar sementes, prolongar a espécie”. É assim que as vinhas velhas sobrevivem numa “maturação tranquila”. “Dão pouco, mas castas maravilhosas”. Que ele descreve de forma original: a Rufete é uma “mulher amuada”, a Touriga Nacional, “a mulher que todos querem, espectacular”…
Aqui na Quinta das Carvalhas, há vinhas com mais de 80 anos, para um total de 120 hectares de vinha, numa propriedade de 600 hectares. Esta é considerada a “jóia da coroa” da Real Companhia Velha (RCV) (“The Oporto house whose founder was king”, lê-se nas traseiras do mini-autocarro turístico verde que serve as visitas na propriedade — o rei foi D. José I, em 1756), onde foi incorporada em 1950, apesar de as suas primeiras referências datarem de 1759. É a jóia da coroa da companhia e uma das jóias do Douro — Tomás Araújo veio pela primeira vez, de Sabrosa, onde ainda trabalha nas suas vinhas de Moscatel: “Isto tem história…”.
Defronte do Pinhão, nesta propriedade cabem todas as declinações do Douro, como vemos na caminhada — começamos a subir com o rio à vista, ficamos com ele nas costas para estarmos diante de vales que se sucedem no horizonte e chegamos ao cimo, 550 metros, com tudo fundido numa vista de 380 graus. Para trás ficam vinhas em socalcos, algumas em declives de 70 graus, bordejadas junto à estrada por hortênsias contra muros de xisto, olivais, algumas matas — e isto depois de termos começado nos jardins debruçados sobre o Douro, onde a piscina infinity parece terminar. Aqui no cimo, da redonda casa de hóspedes (dormidas apenas para convidados, refeições com marcação), vemos o Douro aos nossos pés — o rio (melhor, os rios, porque o Torto também anda aqui), a região, os vinhos, tantos vinhos, que serão e por enquanto amadurecem nos vinhedos. Na loja da Quinta das Carvalhas, podem provar-se todos os vinhos da RCV, à carta, e para quem embarcar nas suas várias propostas turísticas, o final é sempre no fundo de um copo, de Porto ou DOC Douro.
Afinal, tudo aqui anda em torno do vinho. Paramos para um café no Pinhoense, bem no centro da vila que por estes dias tem festa na rua, e José Araújo não aceita um não: temos de provar o vinho do Porto lá de casa, vindo de uma pipa encontrada numa adega, do tempo do seu bisavô. Eram 250 litros, que tiveram de ser misturados com vinho novo — o que bebemos tem a sua idade, 24 anos.
Paixão de família
Na Quinta de La Rosa também tudo começou com o bisavô da anfitriã, Sophia Bergqvist, que ofereceu a propriedade à filha, Claire, em 1906, como prenda de baptismo. O bisavô chegou a fazer vinho do Porto aqui, mas o negócio principal da família era o seu comércio, desde 1815, com uma companhia de navegação. A avó passou duas décadas a viver aqui (numa época em que poucos estrangeiros o faziam e este era um local remoto) e nessa altura as uvas eram vendidas à Sandeman, não havia produção própria. Quando a avó morreu, esse sistema persistiu com o seu filho, Tim Bergqvist. Até que este começou a achar que as suas uvas mereciam melhor destino e pensou em cumprir o seu sonho: voltar a produzir vinho do Porto na quinta. Nessa altura, a filha já havia trabalhado no Banco Mundial e outras empresas e estava pronta para deixar essa vida — em 1988, pai e filha, com 28 anos, aventuram-se e três anos depois surgia o primeiro vinho Quinta de La Rosa, um Porto vintage; uns anos depois, são uns dos pioneiros com o vinho de mesa Douro.
É princípio de noite quando chegamos à Quinta de La Rosa — o nome vem de um sherry que o bisavô importava da Catalunha; o nome original era Quinta das Bateiras mas criava confusão com outra quinta na outra margem do Douro, Quinta nas Bateiras. Sem o sabermos, cruzamo-nos na recepção com a nova geração da família: Eleanor, a filha mais velha de Sophia, é quem nos recebe fugazmente. Não é por acaso que falamos dela: as mulheres da família Bergqvist estão por todo lado na quinta, dão o nome aos quartos e suites que esperam turistas e a algumas vinhas. Nós ficamos na suite Carlotta, uma das sobrinhas de Sophia, na secção nova do complexo: um edifício branco, como todos os outros, linhas rectas, vistas para o rio. As suites, três, ocupam dois pisos, o do rés-do-chão com sala de estar — e pequeno terraço, com sofás e mesa —, o quarto e casa de banho em cima. Os quartos, superiores e standard, dividem-se entre este novo edifício, um outro recente ao lado (onde está a recepção/loja de vinhos e a sala do pequeno-almoço — o terraço com vista para o Douro é irresistível) e a casa de família — quando esta está ausente —, sendo que nesta têm uma decoração totalmente diferente, quase diríamos vintage, a condizer com a atmosfera de casa de família com pergaminhos.
Porque este é um negócio de família mas é sobretudo uma paixão de família. E isso percebe-se a ouvir Sophia (Sofia, porque se apresenta e todos a tratam “à portuguesa”), o principal rosto da companhia, agora que o pai está mais afastado. Continua a ter a sua base em Londres (ela que nasceu em Beirute e viveu em Itália em criança), mas fala um português perfeito, tingido apenas por algum sotaque — não só pelas férias portuguesas do tempo da avó, mas também por ter vivido em Lisboa; os filhos, diz, falam ainda melhor. É a força motriz desta quinta, onde se movimenta com à-vontade absoluto entre adega, armazém e vinhas, e convive com os visitantes na piscina, respondendo a todas as questões que coloquem. “No enoturismo é importante a ligação à família.”
Temos o privilégio de ter Sophia como guia na nossa visita, onde nos vai contando a história da casa, da família e dos vinhos. A adega é novíssima, um projecto concluído em 2012, supervisionado pelo seu irmão: herdou quatro lagares de granito com temperatura regulada da antiga adega e passou a tirar partido da gravidade o mais possível, “para tentar usar menos bombas”. Foi ideia do enólogo, Jorge Moreira, e agora parece óbvio: a Quinta de La Rosa dispõe-se em socalcos na encosta, com os edifícios a compor um labirinto de sobe e desce (por isso há avisos abundantes no site, chamando a atenção de pessoas com mobilidade reduzida). Impressionante é o armazém, um dos maiores no Douro, com as suas luzes baixas para criar uma sensação cénica, onde se guardam as reservas da quinta em barricas imponentes.
Pés na terra para caminhar um pouco até ao Vale do Inferno: passamos a Casa Amarela (cinco quartos mais piscina para alugar), e numa curva da encosta, os muros de xisto imponentes (os mais altos do Douro, cinco metros, construídos no tempo do bisavô, antes da I Guerra Mundial, por trabalhadores galegos), marcam a vinha mais antiga da propriedade (são 11 as vinhas, que vão desde a margem do rio até 400 metros de altitude). É uma garganta com inclinação quase impossível de onde, em 1999, saíram todas as uvas para fazer o La Rosa Porto Vintage.
Aqui há vinho doce
Tornamos a atravessar o rio, deixamos o Pinhão para trás em direcção à Régua, até chegarmos à Quinta do Pôpa. Estamos em Adorigo (Tabuaço) e da beira-rio subimos até ao centro nevrálgico da quinta, também esta um projecto de família, mas ainda a dar os primeiros passos. Se tudo tivesse corrido bem, o nosso almoço seria aqui — um piquenique —, mas já havia reservas. Num patamar relvado ao lado do edifício principal, um miradouro para o rio e a paisagem, está uma família a petiscar. Os piqueniques podem ser feitos em qualquer local da propriedade, explica Stéphane Ferreira, que, com a irmã, Vanessa Ferreira, lidera o projecto que é a concretização do sonho do seu avô — Francisco, conhecido por Pôpa, oriundo daqui e que desde sempre trabalhou nas vinhas.
O sonho passou por França, para onde emigrou o pai de Stéphane, que quando voltou cumpriu o desejo do pai de ter um pedaço da sua terra, comprando a Quinta do Vidiedo e várias outras parcelas em redor para formar a Quinta do Pôpa. Havia vinhas velhas (três hectares de mais de 60 anos) e espaço para novas (agora 15 hectares), onde se plantaram castas nobres, de onde se destaca a Touriga Nacional. Em 2008 começa o trabalho, com o apoio do enólogo Luís Pato, “o padrinho”, que se debruça sobretudo nos vinhos tintos — o ano passado produziram-se os primeiros brancos da quinta; o Vinho do Porto não faz parte dos planos por enquanto, explica Stéphane, “pelo investimento grande que implica e porque há tanta gente que o faz e muito bem”. “Nós ainda não temos background e estamos a começar, a aprender.”
Não há Vinho do Porto mas há vinho doce, Pôpa Doce, o primeiro a ser produzido no Douro, um “aperitivo”; e há o Wine on the Rocks – Finkus Collection, versões Lolita & Milf, ambos tintos DOC Douro, em edição limitada (a segunda lançada este ano da colheita de 2011) e design arrojado (rótulos do artista pop francês McBess): a Lolita é jovem, fresca e explosiva, a Milf é madura e complexa; e o TRePA, uma união do Douro (Tinta Roriz) com a Bairrada (Baga). Isto para além dos vinhos “tradicionais”, de várias gamas, incluindo um Vinhas Velhas. Ouvimos tudo isto enquanto visitamos as instalações da quinta, novas e com sabor telúrico na zona da sala de cascos e garrafeira, escavada na rocha para aproveitar o declive natural do terreno.
Terminamos na recepção-loja, que é também uma sala de visitas, um espaço envidraçado com terraço sobre a paisagem. Não temos o piquenique mas temos uma prova de vinhos e de alguns dos petiscos incluídos no piquenique, como as compotas e azeites (está para breve a comercialização) produzidos na quinta, e outros produtos da região como o queijo, enchidos e bôla. Apesar de não ter cozinha, a Quinta do Pôpa, com parceiros locais, serve almoços vínicos, por marcação; por marcação é também a visita à quinta, à adega, caves e garrafeira que termina, claro, com uma prova de vinhos. As provas podem ser flexíveis e o preço será adaptável: desde provas premium a provas verticais, explica Leila Freitas, uma das funcionárias. “Somos uma equipa pequena, mas muito dedicada”, sublinha Stéphane.
Real Companhia Velha, Pinhão
Royal bus sightseeing tour: de Maio a Setembro, de terça a domingo (nos outros meses mediante marcação), 11€ (adultos), 5€ (crianças entre 6 e 12 anos);
Visita vintage: todos os dias com marcação, 20€ (adultos), 5€ (crianças entre seis e 12 anos)
Birdwatching: programa livre, todos os dias, 8€ (adultos), 4€ (crianças entre 6 e 12 anos); com guia, marcação, 50€ (adultos), 25€ (crianças entre 6 e 12 anos).
Não tem programa para vindimas.
Quinta de La Rosa, Pinhão
Alojamento: desde 85€.
Visitas: de Abril e Outubro todos os dias, 5€ (com prova no final; o custo será descontado em caso de compra de uma garrafa de vinho);
Almoços/jantares (inclui visita e prova): com marcação prévia, 25€ por pessoa (três pratos, vinhos e vinho do Porto);
Vindimas: As vindimas na quinta já começaram no dia 26 de Agosto e quem ficar aqui alojado pode participar nos trabalhos; é possível ainda fazer a visita com pisa da uva (entre as 20h e as 23h).
Quinta do Pôpa, Adorigo, Tabuaço
Visitas: 7,5€ (com provas de um vinho branco, três tintos e o tinto doce); marcação prévia;
Piquenique: 25€ (cesto para duas pessoas; inclui uma garrafa de Contos da Terra branco ou tinto, pão e tostas, água, azeite, azeitonas, queijos, enchidos, compota e marmelada caseira, rebuçados da Régua – é possível alterar ou acrescentar algo, por exemplo peixinhos de escabeche, 4,5€, ou espetadas de mozzarela e tomate cherry, 6€); sujeito a disponibilidade, recomenda-se marcação antecipada.
“Vindimas à do Pôpa”: 60€ (o programa começa às 10h30, com apresentação da quinta, ao que se segue a ida para as vinhas com explicação das castas e corte de uva ao som de cânticos tradicionais; às 13h pausa para almoço tradicional com provas acompanhadas pelos enólogos; segue-se visita às instalações e pisa a pé nos lagares; termina com nova prova de vinhos); reserva antecipada