O dia tinha sido longo e já quase nos arrastávamos em direcção ao hotel, antecipando a viagem do dia seguinte para Bergen, o coração dos fiordes. Tínhamos acabado de deixar o Parque Vigeland, com as dezenas de esculturas do artista norueguês Gustav Vigeland, incluindo a do birrento menino de punhos cerrados que já víramos retratada em vários postais, e já só sonhávamos em sentarmo-nos em frente a uma pizza no Olivia, antes de irmos dormir, quando um casal, puxando um cão pela trela, se atravessou no nosso caminho. “São portugueses?”, perguntaram-nos, sorridentes. Eles também eram. Estivemos na Noruega, em busca dos fiordes e de um pouco mais, e ficámos com a sensação de termos encontrado um português em cada esquina. Sem trocarmos nomes, só impressões e um boa sorte, até mais logo, ganhamos mais do que a paisagem. E ela, sozinha, já teria sido suficiente.
Quisemos resistir e não partir logo para os fiordes. Sonhávamos com os fiordes, com as águas azuis e verdes, as encostas altas de rocha dura, com pequenas casas de telhado vermelho aos pés. Não tínhamos pensado que haveria tantas quedas de água, mas agora também já sonhamos com a possibilidade de um dia voltar a ver muitas outras quedas de água. Mas achamos que Oslo também merecia uma oportunidade e foi para a capital da Noruega que nos dirigimos primeiro. A cidade recebeu-nos bem e deixou-nos água na boca para o que está a crescer na marginal, e de que o edifício da Ópera é só um dos primeiros exemplos.
O hotel ficava mesmo nas traseiras do parque que rodeia o Palácio Real, o Slottsparken, pelo que o primeiro contacto com Oslo não teve muito que enganar: atravessar o parque, observar a fachada neoclássica do século XIX do Palácio Real, guardada por militares com cara de adolescente, e desembocar na Karl Johans Gate, a principal avenida da cidade. Aqui está-se bem. A avenida tem ar de boulevard, com árvores, flores coloridas e bancos de jardim, fontes, estátuas (há muitas estátuas na Noruega), lojas e esplanadas. Passamos pela Universidade, pelo Teatro Nacional, onde se anuncia uma peça do mais famoso dramaturgo norueguês, Henrik Ibsen, e pelo edifício em tijolo amarelo do Parlamento do país, o Stortinget. Fazemos um curto desvio para espreitar o edifício da Câmara Municipal, com o seu ar de estrutura industrial, mas já é tarde para a visita ao local onde, anualmente, se entrega o Prémio Nobel da Paz — o único que é entregue fora da Suécia —, pelo que deixamo-nos estar, a apreciar o sol que decidiu fazer-nos companhia, apesar da ameaça de chuva que nos acompanhou desde que chegámos. É sábado e todos parecem ter tempo, deixando-se ficar ao sol durante mais uns minutos. Fazemos o mesmo. Amanhã é outro dia.
História e modernidade
Acordamos com uma chuva certinha, que não nos dá descanso enquanto cruzamos, apressados, o Slottsparken, a tempo de apanharmos a visita gratuita das 10h à Câmara Municipal. O edifício em tijolo vermelho, concluído em 1950, tem duas torres rectangulares que se elevam acima de um corpo principal também de linhas rectas. Por fora, é pouco atractivo, mas lá dentro a história é outra. A guia leva-nos a percorrer o hall principal, com as suas paredes pintadas com cenas que percorrem a história do país, e em que a ocupação nazi, durante a II Guerra Mundial, parece estar sempre presente. É neste hall que se entrega o Prémio Nobel da Paz e a pequena galeria de fotografias, com destaque para o dia em que o presidente norte-americano, Barack Obama, foi premiado, mostra a disposição de cadeiras e convidados, no amplo espaço agora vazio. Subimos as escadas e percorremos salas e corredores profusamente decorados, com cenas da vida campestre e citadina de Oslo, lendas do país ou imagens bucólicas.
Andamos por ali, de cabeça no ar, a apreciar cores e texturas, enquanto a chuva continua a cair, mas quando saímos, ela já é (quase) só uma lembrança.
Seguimos até à zona do cais e, aproveitando a dica da guia da câmara, que nos dissera que a visita ao Centro do Prémio Nobel da Paz era gratuita ao domingo de manhã, encaminhamo-nos para lá. A exposição, assente, em grande parte, em suporte digital, pode ser vista com a rapidez que se desejar — se quer saber tudo sobre um determinado laureado há-de encontrar a informação nos vários ecrãs disponíveis; se quer apenas percorrer a sala escura, com pequenos dispositivos electrónicos, instalados no topo de cabos (quase parece um jardim de flores electrónicas), em que cada um é dedicado a um Nobel da Paz, a visita fica mais curta.
Depois de um almoço rápido, é tempo de espreitar um dos locais mais emblemáticos e antigos da capital norueguesa, o Castelo e a Fortaleza de Akershus. O complexo é vasto e alberga museus, áreas militares e o antigo castelo medieval, com os seus constantes acrescentos ao longo do século. Está a decorrer um festival de música clássica numa das salas do castelo e, no interior da muralha, numa banca da organização, vendem-se bolos caseiros, chá e café. Com o sol novamente como companhia, sentamo-nos nos degraus de pedra antiga, no pátio interior do edifício, construído como fortaleza no início do século XIV e remodelado ao estilo renascentista no século XVII, a saborear bolo de chocolate e um chá quente, que o dia ainda está longe do fim e as pernas já levam muito caminho percorrido.
Lá dentro, encontramos chãos de madeira, salas decoradas, as masmorras, o mausoléu real, a capela, ainda a uso, bem como outras salas que também são utilizadas, ocasionalmente, para recepções e banquetes de Estado.
O complexo tem muito mais para ver do que o velho castelo, mas sem tempo para tudo há que fazer opções. Escolhemos visitar o pequeno Museu de Resistência Norueguesa, instalado num edifício de apoio à barreira de canhões que defendia a cidade, mas que nos anos que precederam a abertura do museu, em 1967, funcionava como depósito. Os dias da ocupação nazi, o apoio prestado a Hitler pelo partido nazi norueguês, bem como o combate empreendido pelos noruegueses e os britânicos contra os alemães, são documentados passo a passo, com recurso a mapas, esquemas, maquetas, cartas, selos e artefactos da época, como os jornais e rádios clandestinos usados pela Resistência.
Quando deixamos a fortaleza, encaminhamo-nos para a marginal à procura da Ópera de Oslo, inaugurada em 2008, depois de um investimento na ordem dos 500 milhões de euros. A capital norueguesa não é arquitecturalmente impressionante, mas a reforma que está a ocorrer na frente marítima promete mudar essa realidade, e o edifício da Ópera, projectado pelos arquitectos da Snøhetta, uma empresa sediada na cidade e que é também responsável pelo desenho do Pavilhão do Memorial Nacional do 11 de Setembro, em Nova Iorque, é um dos primeiros exemplos disso mesmo.
Criado à imagem de um glaciar a flutuar no mar, o edifício branco parece não ter limites, já que rampas largas permitem o acesso ao telhado. E é por aí que, num frenesim constante, dezenas de pessoas passam constantemente, subindo por um dos lados, descendo pelo outro, apanhando sol no topo. Também se está bem ali e concluímos cada vez mais que Oslo, apesar do tempo incerto, apesar do frio que já se faz sentir, apesar da arquitectura pouco marcante (até a Catedral não impressiona) é um sítio confortável para se estar.
Um barco para ver os barcos
Resta-nos um dia na cidade e o primeiro trajecto da manhã leva-nos até ao embarcadouro de onde sai o ferry em direcção à península de Bygdøy, onde estão instalados vários museus. Não podemos ver tudo, por isso escolhemos apenas dois: o Museu dos Barcos Viking e o Museu das Tradições Norueguesas. O edifício em cruz que alberga os três barcos funerários viking dos finais do século IX — os mais bem conservados do mundo — é simples e sem adornos. Lá dentro é que está tudo o que interessa e que, se formos apaixonados pela matéria, nos pode fazer perder horas a apreciar cada pormenor, com os três barcos no centro de todas as atenções. Um deles, o barco de Tune, é apenas uma ruína de madeira, mas os outros dois, o de Oseberg e o de Gokstad, foram reconstruídos, depois das sepulturas em que tinham sido enterrados terem sido descobertas por agricultores, em finais do século XIX; hoje aparecem tal como deveriam ser, há mais de mil anos.
Além dos barcos, que se podem ver de praticamente todos os ângulos, graças aos balcões instalados em cada esquina dos braços do edifício, a que se pode subir, o museu tem outros vestígios vikings, incluindo jóias e impressionantes trenós de madeira trabalhada. Agora, também é possível ver os restos de esqueletos recuperados junto aos barcos.
É segunda-feira e achamos que é por isso que muitos dos edifícios do Museu das Tradições Norueguesas, ao ar livre, dedicado à descrição da vida na Noruega, do século XVI até hoje, estão fechados. Por isso, ficamos um pouco desapontados quando, ao passear entre as antigas casas de madeira, com os telhados cobertos de relva — que constantemente nos trazem à memória os versos “vamos lá imaginar/a Cidade do Penteado/onde as casas, para variar/têm cabelo e não telhados”, de José Barata Moura —, encontramos muitas delas fechadas. Felizmente, a Igreja Stave, construída em Gol pelo ano de 1200 e transferida para o museu em 1884, está aberta. E, neste caso, mesmo que não estivesse, não haveria grande problema, já que o que impressiona verdadeiramente nestas construções de madeira típicas da Noruega é a sua aparência exterior, com telhados e paredes que parecem encaixar-se uns nos outros, lembrando um puzzle tridimensional.
Abertas estão também as casas da Gamlebyen, a “velha Oslo”, com as salas, quartos e cozinhas que recriam o interior das casas da capital nos últimos 130 anos, e os espaços de exposição que mostram mobiliário, brinquedos e trajes tradicionais do país. Ou seja, havia muito para ver, mas as muitas portas fechadas (como as lojas dos artesãos) deixam-nos com a sensação que só usufruímos de uma pequena parte do espaço.
Quando apanhamos o ferry de regresso ainda é cedo para darmos o dia por terminado. Por isso, depois de uma pausa para saborear um tradicional bolo de canela, arriscamos um passeio em passo lento até ao Parque Vigeland.
Foi no regresso da visita a esta grande mancha verde da cidade que encontramos o casal de Vila de Conde, a sair de casa com o cão. Chegaram há ano e meio a Oslo, depois de uma passagem pela Suíça, e dizem-se satisfeitos com a cidade. Já encontraram outros portugueses, com quem partilham jantares ocasionais, e dizem o que os outros portugueses com quem haveremos de nos cruzar repetirão também: que o frio, a chuva e a pouca luz no Inverno são compensados pela qualidade de vida que o país mais rico do mundo tem para oferecer. Vão-se embora sem nos dizerem o nome e nós vamos jantar e dormir, porque no dia seguinte o comboio para Bergen sai às 8h05 e não nos queremos atrasar para aquela que é descrita como uma das viagens mais bonitas do mundo.
A Noruega à janela
Não nos enganaram. A viagem é lindíssima e muitos dos que vão a bordo não resistem a manter a máquina fotográfica à mão, pronta para disparar.
À medida que se afasta de Oslo, o comboio segue pelo meio de vastas florestas que, aos poucos, vão desaparecendo para dar lugar a um terreno mais inóspito, escarpado e gelado. De repente, há montanhas à nossa volta, o cenário é feito de rocha e parece que há água por todo o lado. Vemos lagos, rios, quedas de água, neve no topo das montanhas e, mais acima ainda, glaciares com a sua típica cor azulada. Amaldiçoamos o comboio que não pára, só um bocadinho, para podermos fixar o olhar na paisagem, sem que ela pareça estar sempre a querer fugir, amaldiçoamos os túneis por onde passamos e que, às vezes, só nos deixam vislumbrar um pedaço maravilhoso do planeta, antes de ele ficar para trás. Mas não conseguimos amaldiçoar nada por muito tempo, porque à nossa volta é tudo demasiado bonito.
Em Bergen, pousamos as malas na casa que alugamos, enchemos o frigorífico com as compras de supermercado que nos hão-de ajudar a sobreviver aos preços estratosféricos da Noruega e partimos em busca de Bryggen, o antigo quarteirão do porto da cidade, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Os velhos edifícios coloridos de madeira, apesar dos vários incêndios que os fustigaram ao longo dos séculos, mantêm as características com que foram criados, no século XII, ainda que os que hoje existem datem do início do século XVIII.
A maior parte dos antigos armazéns e casas da habitação — as duas ocupações coexistiam no mesmo edifício — são hoje lojas dedicadas aos turistas, cafés ou restaurantes. É possível entrar nas vielas estreitas entre as construções e encontrar mais lojas, pátios interiores ou varandas a que se pode subir. Na extremidade do conjunto de casas de madeira, não se deve perder uma visita ao Museu Hanseático.
Instalado num colorido edifício de madeira de 1704, o museu mostra como viviam os comerciantes da Liga Hanseática que controlaram o comércio de peixe da cidade, desde meados do século XIV até ao século XVI. Lá dentro há escritórios, quartos mobilados e bacalhaus, num ambiente que nos transporta, durante os largos minutos que dura a visita, numa verdadeira viagem no tempo.
É perto de Bryggen, no mercado de peixe, que encontramos outro português. Tem os bigodes revirados, passa o dia a grelhar peixe fresco e é apenas um dos latinos que parecem ter tomado completamente conta do mercado. Só se ouve falar espanhol e italiano, além do português de Viana do Castelo, que faz ali “a temporada” — entenda-se, os quatro meses menos frios do ano — e depois, como nos explica uma espanhola ali ao lado, vai gozar os ganhos amealhados para outro lado.
No tempo que passamos em Bergen havemos de o ver ali, diariamente, às voltas com o seu peixe fresco, a apontar preços aos turistas que se instalam nos bancos ao ar livre, apesar do frio que, em algumas horas do dia, já pede um gorro, daqueles que se vendem ali ao lado. Dizem-nos que há outros portugueses por ali, mas não os encontramos. E, agora, é preciso aproveitar o sol para ver Bergen de outra maneira. Afastarmo-nos do porto e ganharmos perspectiva.
Instalamo-nos na fila para aceder ao funicular que sobe os 320 metros do monte Fløyen. O Fløibanen anda cheio, para cima e para baixo, mas nós compramos apenas bilhete de ida. Queremos descer a pé.
Lá em cima há um verdadeiro anfiteatro voltado para Bergen. A cidade estende-se, plácida, quase cercada por braços de água azul límpida. Daqui de cima não se percebe o quão inclinada é a rua que leva à nossa casa, e que nos deixa com a língua de fora de cada vez que temos de voltar para lá. Daqui de cima, Bergen é enganadoramente plana. Deixamo-nos ficar ao sol antes de nos voltarmos para a floresta. Podíamos embrenhar-nos pelos seus caminhos, percorrer os vários percursos que os habitantes de Bergen usam para as suas caminhadas, mas o tempo que nos sobra já não é muito.
Começamos a descer, parando para espreitar as esculturas em madeira espalhadas entre as árvores e os sinais cravados nas árvores que avisam as bruxas que não podem estacionar ali. Descemos devagar, enquanto jovens mulheres e homens empurram carrinhos de bebé encosta acima, num exercício que nos parece masoquista, mas que para aqueles noruegueses loucos deve ser coisa normal.
Os fiordes, finalmente
Voltamos ao comboio. Desta vez o trajecto é mais curto, só até Myrdal, onde vamos embarcar noutro comboio, totalmente tomado por turistas, o Flåmsbana. Neste comboio verdadeiramente descendente (dos 864 metros de altitude de Myrdal desce até Flåm, apenas dois metros acima do nível do mar, passando por 20 túneis ao longo de 20 quilómetros, naquela que é considerada a linha mais inclinada do mundo) ninguém se senta. Todos procuram um espaço vago junto às largas janelas de vidro, para fotografar a paisagem espectacular que a viagem oferece. É uma mini-Disneylândia da paisagem sobre carris. À qual não falta um espectáculo.
A viagem dura quase uma hora e só tem uma paragem, junto à cascata de Kjosfossen. Momentos antes da paragem, a voz que invade a carruagem e vai descrevendo os pontos mais marcantes dos locais por onde passamos avisara que iríamos parar e que havia relatos de visões de “criaturas misteriosas” nas águas da cascata. Não percebíamos do que falava até ao momento em que, tentando escapar ao frenesim dos passageiros que se amontoavam junto ao miradouro em busca das melhores selfies, começamos a ouvir uma música vinda não se sabe de onde e nos apontam uma mulher que, de vestido longo, vai dançando em plena cascata. Apercebemo-nos, depois, que há outra “criatura misteriosa” nos rochedos à direita, fazendo os mesmos movimentos. As bailarinas aparecem e desaparecem, durante alguns minutos, entretendo os turistas boquiabertos, antes de soar o aviso de que o comboio vai partir e todos correrem para as carruagens.
O trajecto continua através de um cenário de cortar a respiração, com vales, rios, cascatas e pequenas povoações. E as imagens mais bonitas surgem de um ou do outro lado do comboio, pelo que a dança constante dos passageiros, que tentam captar tudo nas suas máquinas fotográficas de diferentes dimensões (mas não vale a pena, é impossível), animam a viagem até Flåm. Há outra portuguesa a bordo, a terceira que encontramos na viagem. Ela não está a viver na Noruega, mas trabalha a bordo de um navio que “anda a dar a volta ao mundo” e que está ancorado em Flåm. Aproveitou a paragem para fazer a curta viagem de comboio recomendada a todos os visitantes e é já o segundo trajecto que faz esta manhã. Subiu, primeiro, até Myrdal, e agora regressa, ansiosa por tentar fotografar a pequena igreja de madeira do século XIII de uma povoação já próxima do final da viagem, que não conseguiu ver com a atenção que queria na subida.
No meio da agitação que vai a bordo da carruagem, só temos tempo de lhe desejar boa viagem, antes de a perdermos de vista. Nem sabemos para onde vai, só que, no dia anterior, o navio onde trabalha esteve no Cabo Norte. “Mas não se via nada, por causa do nevoeiro cerrado”, contara ela.
Há um grande navio francês ancorado em Flåm e pensamos que talvez seja ele que vai levar a jovem portuguesa para outro porto, mas nós também temos um barco à nossa espera e, agora sim, os fiordes não vão apenas passar-nos à janela. Vamos navegar num.
O Sognefjord é o mais profundo e o mais longo da Noruega e a sua paisagem fabulosa está listada nos lugares classificados como Património da Humanidade, pela UNESCO. Há um vento agreste que nos corta a face e, de vez em quando, uma das nuvens que varre o céu liberta algumas gotas largas de água, mas não conseguimos abandonar a varanda na parte dianteira do barco, onde vemos todo o caminho desenrolar-se à nossa frente. Se o fazemos, é apenas para irmos à retaguarda, ver o caminho que deixamos para trás.
O Fjord1 corta as águas escuras e geladas, que correm entre as paredes altas do primeiro braço do Sognefjord que percorremos, o Aurlandsfjord. Ficamos completamente reféns da beleza da paisagem. Já nos enjoa a quantidade de fotografias que, simplesmente, não conseguimos deixar de tirar. Juramos que aquela, há 10 segundos, foi a última, mas já estamos de novo a tirar outra e mais outra, à medida que às paredes rochosas se sucedem outras, que as quedas de água dão lugar a novas quedas de água, que casas isoladas de telhados vermelhos se transformam em novas casas ou povoações isoladas. Quando o barco vira para o outro braço do fiorde que vamos percorrer hoje, o Nærøyfjord, a viagem de duas horas ganha novos encantos. Aqui, as águas atingem a profundidade de 12 metros e o fiorde é mais estreito. Tudo se torna mais nítido, a paisagem fica ainda mais bonita e queremos que as duas horas se transformem em muitas mais, para podermos esgotar o cartão de memória da máquina fotográfica, porque já percebemos que estamos agarrados e não vamos conseguir parar de tentar guardar em fotografias este canto encantado do planeta.
Chegamos a Gudvangen, pensando que já está, que este pedaço da Noruega já nos ofereceu o que tinha de mais bonito para dar e que podemos regressar a Bergen sossegados, de olhos fechados, se preciso for, porque não deve restar mais nada para ver. Mas, então, a camioneta que nos vai levar à estação de comboio de Voss (onde apanharemos o comboio de regresso a Bergen), sai da estrada e sobe uma via estreita, seguindo as indicações do Hotel Stalheim, que a Lonely Planet diz ser “o hotel mais espectacularmente situado da Noruega” e nós estamos a breves minutos de perceber porquê.
A camioneta não pára no hotel, passa-lhe à frente e prepara-se para começar a descer e é então que as bocas de todos a bordo (talvez com a excepção do motorista) se abrem de espanto. À nossa frente, está a antiga estrada do correio, construída em 1780 para ser percorrida por carruagens e cavalos, com treze curvas que parecem cortadas em ângulo recto e uma inclinação de 18%. A Stalheimkleiva, inserida no vale de Nærøydalen, oferece uma vista demasiado bela para poder ser descrita. Já não quero saber das cascatas que nos acompanham e desisto de perceber como é que o autocarro de turismo consegue fazer aquelas curvas. Só consigo ter os olhos presos ao vale profundo que se estende à minha frente, como a surpresa guardada para o final do cruzeiro por alguém que se há-de estar a rir de nós, dizendo: e pensavam que não havia nada mais bonito para ver hoje?
Regressamos a Bergen com o sol ainda a acompanhar-nos, nestes dias compridos do Verão norueguês, e quando passamos pela Torgalmenningen, a praça alongada do centro, espera-nos uma última surpresa: a Orquestra Filarmónica de Bergen celebra 250 anos e decidiu oferecer ao público um concerto gratuito, ali na praça. Em cena, acabada de começar, está Peer Gynt, a peça de Ibsen, musicada por Edvard Grieg. Não percebemos o que dizem as personagens, mas que importa isso? Deixamo-nos ficar de pé, durante hora e meia, naquela praça cheia de centenas de pessoas silenciosas, sorrindo quando sorriem, porque não é preciso perceber a língua quando há expressões faciais tão marcantes, seguindo cada gesto de alegria e desespero dos actores, pregados ao chão, até ao fim.
Stavanger, a cidade branca
Stavanger é a última paragem da viagem, antes de regressarmos a Oslo e a casa. Quisemos ir lá empurrados pela imagem da Rocha do Púlpito, suspensa sobre o Lysenfjord, com uma vista absolutamente deslumbrante. Não sabíamos ainda se veríamos a rocha ou de onde a veríamos (escalar até lá cima era uma possibilidade ainda por confirmar), mas compramos um bilhete de camioneta para nos levar à pequena cidade branca e rica em petróleo do Sul da Noruega, e logo se veria.
Enquanto aguardamos pelo transporte, na sala de espera da estação, uma jovem de galochas e guarda-chuva, inclinada sobre um livro, espreita-nos e acaba por meter conversa. Sim, é portuguesa. Não nos diz o nome nem de onde vem, mas diz que era professora. Uma professora desempregada que decidiu experimentar a sorte na Noruega. E está a gostar? “Como se pode não gostar quando mudamos para melhor?”, responde-nos, mas notamos alguma nostalgia na resposta. Ela fala com entusiasmo da vida no fiorde onde mora, a 50 minutos de Bergen, e de como conhece todas as crianças de lá. Entusiasma-se com a escola que termina às 14h30, já com todas as actividades escolares concluídas, “porque os noruegueses acreditam que as crianças precisam de tempo livre para brincar”. Mas não parece querer alimentar ilusões sobre a possibilidade de, um dia, abandonar o trabalho na área do turismo que arranjou e poder, ali, dar aulas. “Logo se vê, assim já está bem”, diz, antes de termos de nos despedir porque chegou a hora da partida.
Embarcar numa viagem de camioneta, na Noruega, não quer dizer, nem por sombras, que não teremos de entrar num barco em determinado momento. De Bergen a Stavanger fazemos dois trajectos de ferry, durante os quais temos de abandonar a camioneta estacionada na barriga do grande barco, e podemos esticar as pernas e beber um chocolate quente a bordo. Também passamos por lagos rodeados de ovelhas e barcos, que nos fazem lembrar a paisagem irlandesa, e percorremos túneis que o motorista faz o favor de descrever assim: “Este túnel tem oito quilómetros e corre a mais de 200 metros abaixo do nível do mar. Sim, há muita água sobre as nossas cabeças.”
Stavanger é uma cidade tranquila. A Velha Stavanger, na colina a oeste do porto, transporta-nos para uma outra era, com as ruas silenciosas que passam entre casas brancas de madeira, do final do século XVIIII, coloridas pelos vasos e floreiras que ornamentam portas e janelas. Do outro lado do porto estão os bares, restaurantes e a Breigata, a rua onde o branco da Velha Stavanger é definitivamente esquecido nas cores berrantes que pintam as fachadas das casas. A cidade recebeu-nos com chuva e no posto de turismo dizem-nos que as previsões para os próximos dias não são melhores. Também torcem o nariz à possibilidade de fazermos a caminhada de três horas até à Rocha do Púlpito, quando percebem que no grupo não há caminhantes experientes. Decidimos deixar a subida para uma próxima viagem e compramos bilhetes para um cruzeiro no Lysenfjorden, na manhã seguinte.
Choveu a manhã toda, às vezes com intensidade, mas nem assim conseguimos ficar no interior do M/S Rygertroll. O Lysefjord não tem as paredes rochosas altas e que parecem ter sido cortadas a direito, das paisagens clássicas norueguesas, mas não deixa de ser encantador, e percebemos por que lemos algures que este acaba por ser, muitas vezes, o fiorde favorito dos visitantes.
O barco, bem mais pequeno do que aquele que nos levou através dos dois braços do Sognefjord, aproxima-se, às vezes, da costa quase até a tocar. Entra numa baía recôndita, onde quase podemos espreitar às janelas das casas, afasta-se e segue viagem, entrando cada vez mais no fiorde com 42 quilómetros de comprimento, e levando-nos, agora do outro lado, até bem perto das suas paredes escarpadas. Entra, à ré, na reentrância que dá acesso à chamada “gruta dos vagabundos” e volta ao centro do fiorde, antes de se aproximar, de novo, da rocha onde duas cabras saltitam em direcção a uma minúscula plataforma. Percebemos o porquê no minuto seguinte: um dos funcionários do barco salta para a rocha, carregando um balde com folhas de alface, a que as cabras se atiram, com entusiasmo.
Já há algum tempo que perscrutávamos o topo das rochas em busca do Púlpito, mas elas estão muitas vezes cobertas de névoa. Minutos depois de deixarmos as cabras para trás, percebo que o Púlpito não está visível, quando vejo um dos funcionários abanar a cabeça em sinal negativo, na direcção do capitão. Era ali que estava a Rocha do Púlpito e, entre a neblina, ela é quase visível (ou estarei a imaginar coisas?), um pedaço de rocha a direito, que parece ir desprender-se a qualquer momento e despenhar-se no mar. Mas lá diz a lenda que vai sendo desfiada no altifalante, isso só deverá acontecer “se sete irmãos do fiorde casarem com sete irmãs do fiorde”.
Se ficaram muito desapontados, os passageiros não dizem e, pouco depois, já se ouvem gargalhadas, quando o capitão leva o barco até tão perto de uma cascata que a água que ela liberta salpica os mais descuidados.
Estamos gelados e encharcados, quando finalmente o barco dá meia volta e se prepara para regressar a Stavanger, a alta velocidade. Abrigamo-nos, finalmente, no salão de bancos corridos, com os dedos entrelaçados à volta de um copo de chocolate quente. A viagem está quase a terminar, mas ainda temos de jantar.
E, no restaurante, está a última portuguesa que encontramos na viagem. “Sou uma menina de Cascais”, ri-se, divertida. Chegou há cerca de um ano e já encontrou, pelo menos, mais uma portuguesa que se instalou ali. Ri-se muito e goza com a cidade onde não acontece nada, além de umas bebedeiras ao final da tarde, diz. “Os noruegueses não sabem beber. Bebem muito depressa e depois andam à pancada”, conta, com uma gargalhada bem-disposta. Conta-nos que está há doze dias sem folgar, por opção, para angariar mais dinheiro, e confessa rapidamente tudo o que sente falta de Portugal: a comida, o café, o sol. Mas, a Noruega, lá está, tem qualidade de vida. E, além disso, ela também ainda não foi à Rocha do Púlpito. Por isso, para já, vai continuar por ali.
Guia prático
Como ir
A TAP tem voos directos para Oslo, a partir de Lisboa, por preços que rondam os 450 euros (ida e volta, preços para Outubro). Se não se importar de fazer escala em Estocolmo, os preços podem ficar ligeiramente mais baratos.
Onde ficar
Não faltam opções para dormir, mas nada na Noruega é barato, pelo que será difícil encontrar alojamento económico. Uma boa opção que pode querer considerar é alugar uma casa, o que lhe permitirá preparar algumas refeições e fazer baixar, um pouco, a factura da viagem.
Onde comer
Ouvimos este conselho e não podemos deixar de o partilhar: depois de chegar à Noruega não esteja constantemente a fazer a conversão monetária de cada vez que puxar da carteira. Só assim vai conseguir alimentar-se por ali sem sofrer demasiado. E, assim, vai ver que ao fim de algum tempo já vai achar que um café por 20 coroas (2,50 euros) é barato e vai ficar satisfeito por conseguir comer uma pizza por menos de 30 euros. Num restaurante tradicional saiba que os gastos podem começar nos 40 euros, apenas pelo prato principal. A conta triplica ou quadruplica se lhe acrescentar bebidas (a água, directa da torneira, é de graça, mas um refrigerante não deverá custar menos de 5,50 euros, uma cerveja deve rondar os 15 euros e o vinho, então, pode, com facilidade, ser mais caro do que o prato) e sobremesas (15 euros é o ponto de partida). A boa notícia, se não se importar de trocar algumas refeições por cachorros quentes, fatias de pizza ou sandes, é que em qualquer esquina vai encontrar um quiosque da Narvesen ou um Deli di Luca, onde pode encontrar estas refeições rápidas a preços mais económicos. Mas prepare-se para que, ainda assim, a “refeição” possa chegar aos 10 euros.