Fugas - Viagens

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    “Somos o primeiro impacto, portanto tentamos recebê-los com um sorriso e não só responder às necessidades que tenham durante o voo. Somos também um pouco o cartão- de-visita de Portugal”. Rita Calado, 31 anos, é assistente de bordo há seis Rui Gaudêncio
  • “Os hotéis podem ser mais bonitos, mais feios, mais ou menos informais, mas isto é mesmo sobre a arte de saber receber bem as pessoas”, diz Paulo Duarte, director do Memmo Alfama, em Lisboa
    “Os hotéis podem ser mais bonitos, mais feios, mais ou menos informais, mas isto é mesmo sobre a arte de saber receber bem as pessoas”, diz Paulo Duarte, director do Memmo Alfama, em Lisboa Enric Vives-Rubio
  • “Diariamente lidamos com 600, 700 pessoas. É difícil de gerir e ao fim do dia estarmos todos satisfeitos”, explica Vítor Rio, motorista dos Yellow Bus, no Porto
    “Diariamente lidamos com 600, 700 pessoas. É difícil de gerir e ao fim do dia estarmos todos satisfeitos”, explica Vítor Rio, motorista dos Yellow Bus, no Porto Fernando Veludo/nFactos
  • “Este ano estive com clientes que tinham vindo há seis ou sete anos. Voltaram com amigos
    “Este ano estive com clientes que tinham vindo há seis ou sete anos. Voltaram com amigos". Paulo Cosme, guia-intérprete no Porto Fernando Veludo/nFactos
  • Haverá poucas coisas que dão mais prazer a Luís Monteiro do que ajudar um estrangeiro que o olha atabalhoado com um martelo na mão e uma sapateira na outra
    Haverá poucas coisas que dão mais prazer a Luís Monteiro do que ajudar um estrangeiro que o olha atabalhoado com um martelo na mão e uma sapateira na outra Daniel Rocha
  • “Sempre estive ligado à actividade de apoio balnear, é um negócio de família de muitos anos”, conta José Viegas, nadador-salvador no Algarve
    “Sempre estive ligado à actividade de apoio balnear, é um negócio de família de muitos anos”, conta José Viegas, nadador-salvador no Algarve Vasco Célio/Stills
  • “Tudo o que leva galos” é um chamariz para os clientes do Xafariz Artesanato, a loja de Maria Helena Ribeiro
    “Tudo o que leva galos” é um chamariz para os clientes do Xafariz Artesanato, a loja de Maria Helena Ribeiro Fernando Veludo/nFactos

Senhoras e senhores, bem-vindos a Portugal

Por Andreia Marques Pereira, Mara Gonçalves, Luis J. Santos

Eles são, em grande parte, responsáveis pela imagem que os turistas levam dos portugueses. No Dia Mundial do Turismo, a Fugas visita alguns dos anfitriões de Portugal. Da assistente de bordo, que recebe quem chega com um sorriso, ao guia turístico, que lhes conta o país, passando pelo empregado que serve o mar à mesa ou a vendedora de recordações.

Rita Calado, assistente de bordo

Para muitos turistas que visitam Portugal pela primeira vez, os assistentes de bordo são os primeiros e últimos portugueses com quem acabam por contactar, contribuindo indirectamente para a imagem que levarão do país. “Somos o primeiro impacto, portanto tentamos recebê-los com um sorriso e não só responder às necessidades que tenham durante o voo. Somos também um pouco o cartão-de-visita de Portugal”, conta Rita Calado, de 31 anos. “Quando chegam [ao avião] não nos conhecem, não sabem como é a cultura portuguesa, portanto fazem logo uma abordagem à nossa maneira de falar, às nossas características físicas”, descreve. “Normalmente acham muita piada à nossa língua, porque é muito diferente das outras e perguntam muitas vezes como é que se diz ‘bom dia’, ‘olá», ‘boa tarde’, ‘obrigada’”.

Rita é assistente de bordo há seis anos. Deixou o emprego em comunicação, área em que se licenciou, para ingressar na TAP. Agradava-lhe o estilo de vida e a falta de rotina, queria conhecer mais do mundo. “Gosto de não ter horários fixos, de não trabalhar com os mesmos colegas todos os dias, de conhecer pessoas novas e comunicar com o público”, enumera. Do contacto com os ouvintes da rádio onde trabalhava passou a interagir com os passageiros. Normalmente não há tempo para longas conversas, mas há sempre uma ou outra história. Uns lembram-se da “menina” com quem já tinham voado, os emigrantes portugueses “gostam muito de contar as recordações que levam para o netinho, o bacalhau, os enchidos que trazem mesmo para a cabine” e para os quais pedem cuidado no manuseamento. Com os estrangeiros, não raras vezes acaba a fazer o papel de guia turística. “Pedem-nos muitas vezes recomendações sobre a cidade onde vamos aterrar”, conta.

Como é natural de Lisboa, está mais confortável a dar dicas sobre a capital, mas os conselhos acabam por ser semelhantes para o resto do país, com um roteiro gastronómico onde não faltam “o bacalhau, o polvo, o nosso marisco e petiscos, o peixe grelhado e até o cozido à portuguesa”. Se perguntarem pelos pastéis de Belém, aproveita e faz “um tour turístico pela zona, que há muitas coisas para conhecer ali”. Se a referência for o vinho do Porto, então aproveita “para recomendar a visita às caves e fazer provas de vinhos”. Depois, conta, nunca faltam as tradicionais visitas ao centro das cidades, às casas de fado e às praias do Algarve e da costa alentejana. “Geralmente até ficam surpreendidos com tanta oferta que nós temos em Portugal”, assegura.

Nos voos de regresso, há sempre quem dê o feedback sobre o país, “quase sempre positivo”. “Somos um país tão pequenino, se calhar para eles as expectativas não são tão grandes como conhecer outras capitais da Europa, por isso Lisboa para eles é a surpresa, é o que eu sinto. [O país deu-lhes] muito mais do que estavam à espera”, defende. A maioria regressa a elogiar a gastronomia, o clima, a simpatia dos portugueses, o vinho. “Dizem sempre que vão repetir para conhecer melhor porque ficaram com água na boca de descobrir um bocadinho mais o nosso país.”
(Mara Gonçalves)

Paulo Duarte, director de hotel

Paulo passeia-se pelo "seu" hotel design de quatro estrelas sem grandes formalidades de director. Recebe-nos de calças de ganga, esquece a gravata, não esquece o sorriso. "Da mesma forma que estou aqui a falar consigo, estou a falar com um cliente", diz-nos, porque, para este director da nova geração, o importante "é sermos nós próprios, autênticos". "Afinal, estamos a propor uma experiência autêntica" de Lisboa. "Não teria lógica termos um conceito de informalidade e eu aparecer todo engravatado."

Estamos sentados na sala de estar do Memmo Alfama, o primeiro boutique hotel de luxo do bairro e que acaba até de ser considerado pela revista Wallpaper um dos melhores novos hotéis do mundo. Tal como todo o hotel, a sala é feita de detalhes que realçam tanto as vistas de tirar o fôlego para rio e bairro como a familiaridade e a proximidade com o hóspede. "O conceito deste hotel é uma ‘casa grande', com muita proximidade com os clientes", resume.

Na brincadeira, chama-se a si próprio o "anfitrião-mor". Mas sublinha: "[Aqui] a cultura é mais do que ser só eu um anfitrião: todos nós que trabalhamos no hotel somos anfitriões." "Quase que agarramos o conceito de informalidade dos hostels, que o fazem muito bem, e aplicamos a um hotel. Mas é um ‘à vontade', que não é um ‘à vontadinha'".

Ao longo do dia, Paulo gosta de "circular pelo hotel". "Além de fazer parte do trabalho para controlar a operação, não me inibo de apresentar-me às pessoas, oferecer uma bebida, etc.". A dimensão do hotel (42 quartos) permite essa relação, para a qual o responsável, de 43 anos, advoga um equilíbrio, que passa por nunca impor nem importunar. "Isto tudo requer uma coisa, que não é fácil e é um desafio: bom senso."

A hotelaria não era a sua actividade - formado em gestão, é especialista em finanças ("o que dá bastante jeito"). Entre estar ligado à abertura de vários restaurantes - e ter "desenhado um pouco da parte hoteleira do que é a Academia do Sporting" -, foi "desafiado" por um amigo, Rodrigo Machado, o mentor do projecto Memmo, a dedicar-se a projectos "improváveis", como um hotel em Alcochete ou o que foi o primeiro Memmo, o quatro estrelas Baleeira em Sagres.

Desse "desafio" veio para este agora, um hotel entre design e luxo, nascido da reformulação de velhos prédios numa travessa escura à Sé. Veio do "fim do mundo" para o "fim do beco". Aliás, para que os seus hóspedes (particularmente casais, 95% estrangeiros) se sintam "em casa" nos "labirintos" de Alfama, têm até uma arma "quase" secreta: oferecem gratuitamente aos clientes uma visita à zona, o que permite fazer "recomendações e dar dicas", além de conhecer melhor o que cada hóspede quer. "Se isto é uma casa e nós somos todos anfitriões, é a nossa forma de dizer ‘então vamos lá dar uma voltinha ao bairro'. Os clientes adoram." Sinal dessa relação especial é uma vitrine que decora uma parede de entrada: está cheia de desenhos da cidade e do hotel e textos criativos deixados pelos clientes. "Um hotel adorável com pessoas adoráveis e prestáveis", diz um. Melhor propaganda não há.

"Na prática, a hotelaria é teoricamente um conceito muito simples: acima de tudo o resto, é saber receber. Os hotéis podem ser mais bonitos, mais feios, mais ou menos informais, mas isto é mesmo sobre a arte de saber receber bem as pessoas", conclui Paulo. 

(Luís J.Santos) 

Paulo Cosme, guia-intérprete

"Quando visito com grupos, abro sempre a porta principal. O impacto quando entram é indescritível." Sugerimos a Paulo Cosme, guia-intérprete, que escolhesse um local incontornável nas suas visitas guiadas pelo Porto para conversarmos e não houve hesitação - por isso falamos com ele na Igreja de São Francisco, a penumbra entre a explosão dourada, algo escurecida ("a precisar de uma limpeza"), é uma bênção numa tarde de sol e calor. Há uns poucos turistas em contemplação pausada. Provavelmente, à falta de um guia, passará ao lado da maioria o pormenor do brasão da ordem franciscana (dois braços cruzados, um deles despido, sobre uma cruz) e a sua simbologia, mas talvez não sejam muitos os que se interroguem se é o verdadeiro Cristo que ali vêem no crucifixo do altar-mor ou se é a Virgem Maria que está dentro do caixão (a representação de Nossa Senhora da Boa Viagem numa barca da morte).

Paulo Cosme já ouviu isto e muito mais nos 23 anos que leva como guia-intérprete - os últimos dedicados em exclusividade ao Porto e ao Norte de Portugal, depois de 17 anos "a correr o mundo inteiro", como "correio de turismo". "Fiquei saturado e tomei esta opção", conta. Uma opção que parece ter chegado no momento certo. Se nos referirmos ao movimento turístico da cidade, Paulo não tem dúvidas de que este atravessa um bom momento - o que se reflecte na actividade dos guias: é início de Setembro e ele já antecipa este e o mês seguintes como caóticos, pelos contactos que recebe a solicitar guias. É o presidente da secção do Porto do Sindicato Nacional da Actividade Turística, Tradutores e Intérpretes (Snatti) e o seu telemóvel não pára de soar.

Hoje é um dos raros dias de folga neste Verão; ainda no dia anterior esteve, com sete colegas, a fazer uma panorâmica da cidade em autocarro para 350 pessoas vindas na senda de um congresso de engenharia química. "Há uma tentativa de revitalizar o Porto como cidade de congressos", explica, "mas os de mil pessoas de cada vez desapareceram". Em compensação, "estando na moda", o Porto tornou-se ponto de paragem obrigatório para grupos que antes lhe passavam ao lado, como os do turismo religioso, nos périplos Fátima-Santiago de Compostela. "Agora vêm, instalam-se e querem conhecer a parte histórica", conta Paulo, "mas ficam surpreendidos se vão à Boavista e à Foz". "Têm outra ideia da extensão da cidade".

Claro que os roteiros são feitos à medida dos clientes - "nunca faço um circuito igual" - e alguns podem nem chegar a sair do centro histórico. Este é frequentemente o caso nos chamados private tours, uma tendência em crescimento, assinala Paulo. São visitas guiadas para duas, quatro pessoas, para famílias: "Querem ficar no centro e em regime de walking tours. Deste modo, ficam com mais noção dos recantos." Este é um tipo de trabalho de proximidade que os grandes grupos não permitem - pela duração e pela disponibilidade dos visitantes. Com os grandes grupos, o que Paulo Cosme faz muito é dar pistas, é impossível entrar em todos os locais de interesse - há os que não pagam para entrar em monumentos, o que exclui, por exemplo, a Igreja de São Francisco; e alguns sítios simbólicos e gratuitos, por exemplo a Livraria Lello ou os cafés históricos, como o Majestic ou Guarany, não estão preparados para receber grupos de muitas dezenas de pessoas. "Assim, o que faço é contar histórias, revelar pormenores que possam despertar curiosidade." Idealmente, alguns dos turistas regressarão com mais calma para conhecerem os sítios; para outros essa será a única imagem que levarão com eles. "Sentimos a responsabilidade, além do orgulho. É que, apesar de trabalharmos para clientes [que vendem o produto: as visitas], somos nós que damos a cara, somos nós que representamos o país na sua vertente histórica, cultural, gastronómica...", sublinha Paulo Cosme.

Responsabilidade e orgulho, então, numa actividade que, todavia, não é fácil. A maioria dos guias-intérpretes são freelancers, vivendo à custa de carteiras mais ou menos oscilantes de clientes e com a carga fiscal, de prestações sociais e de seguros que tal acarreta. Além disso, fenómeno mais recente, a profissão convive com a "concorrência" dos chamados free tours. "O que mais nos irrita é a falta de informação, dizem verdadeiras barbaridades sobre a história nacional, e a fuga ao fisco", sublinha Paulo. Afinal, a informação não só deve ser exacta como, defende, deve suscitar reflexão nos ouvintes.

Paulo gosta de, sempre que possível (normalmente quando se expressa nos idiomas nativos dos grupos, para que nada se perda), contar histórias; mas as dele não começam por "Era uma vez", antes convocam os ouvintes para eles próprios viajarem no tempo. "Imaginem que vivem numa altura em que..." é a sua fórmula mais comum - "nem todos sabem identificar o século XVIII ou sabem o que foram os Descobrimentos portugueses", justifica. Com sorte, nos grupos haverá sempre um ou outro que faz perguntas, que se interessa verdadeiramente pelo que está a ver (e a ouvir) - nunca nos grupos de asiáticos, ressalva, "são muito calados".

Com os ingleses, por exemplo, a zona da Ribeira é pródiga em suscitar alguma curiosidade - a começar pelos nomes ingleses das caves de Vinho do Porto - e em provocar "descobertas", como a da mais antiga aliança do mundo, a luso-britânica, à boleia do casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, e quem sabe, levar até à Índia, aos primórdios do raj e do "chá das cinco", dote e herança de Catarina de Bragança.

Na verdade, "o tipo de discurso nunca é o mesmo para toda a gente" e há que ter em conta coisas como as "sensibilidades históricas" de cada nação. Por isso, Paulo pensa que uma parte curiosa da sua profissão é que as pessoas pensem que é monótona. "Nunca é, é sempre diferente." E pode ser bastante recompensadora como quando os clientes voltam. "Este ano estive com clientes que tinham vindo há seis ou sete anos. Voltaram com amigos." 
(Andreia Marques Pereira) 

Vítor Rio, motorista

Vítor Rio é um joker. Tanto está a debitar a fórmula de venda de bilhetes, nas suas diversas variações, em alemão, como está a falar do desemprego em espanhol; dá indicações sobre o itinerário e suas paragens em inglês (com respeito pelas idiossincrasias transatlânticas: para um norte-americano a estação de São Bento é uma train station, para um inglês nunca deixará de ser uma railway station, por exemplo), justifica “atrasos” em francês (o passageiro tem sempre razão, ainda que os seus 40 minutos de espera sejam “impossíveis”), explica o funcionamento dos títulos de transporte em português, seja para o autocarro turístico seja para o ônibus turístico.

É um joker, sim, ao volante de um dos Yellow Bus que percorrem (quase) incessantemente a cidade do Porto, mudando de língua e de atitude ao ritmo de entradas e saídas. É um joker, sim, como têm de ser todos os que estão na sua posição: “A condução, com o tempo, acaba por ser um pouco instintiva. O resto já é sempre diferente. O trato com os clientes, a informação pedida, o controlo do GPS, a venda de bilhetes...”.

É uma quarta-feira, a primeira de Setembro, depois de um Agosto sobrelotado. Esperamos o autocarro Yellow Bus linha laranja (Porto Histórico, do pacote Porto Vintage) no seu ponto número um, mesmo defronte do Centro Português de Fotografia, com vista para um dos ícones turísticos do Porto, a Torre dos Clérigos. Dois norte-americanos são os primeiros a entrar — e os primeiros a sair, ainda antes de o autocarro arrancar: afinal, estão na linha errada, querem ir na roxa (Porto dos Castelos, a outra opção do Porto Vintage), a que vai a Matosinhos; “esta já fizemos ontem”, justificam. Esclarecidos nos horários, ainda perguntam pela “golden church”, a de São Francisco, supõe-se: se seguirem as ruelas sempre para baixo chegam em dez minutos. Um casal português jovem chega para comprar bilhete: “Não têm multibanco? Onde é a caixa mais próxima? Temos tempo de apanhar este autocarro?”; “Não se preocupem, se partirmos antes, passa um em 30 minutos.”

É este o ritmo dos Yellow Bus da linha laranja durante todo o ano. Vítor Rio leva seis anos a conduzir os autocarros da Carristur, os últimos três como chefe de equipa. A Torre dos Clérigos fica para trás, “a nossa Torre Eiffel”, brinca (“não, nunca faço essa comparação, mas era capaz de pegar”), para chegarmos à Avenida dos Aliados (“nessa lógica seriam os nossos Campos Elíseos”), onde a paragem na Praça da Liberdade é, “se calhar, a mais central”. A mais concorrida, portanto, sobretudo para iniciar o passeio, em regime hop on hop off. “Não podemos fazer serviço público de chegar, abrir e fechar portas”, explica Vítor, ainda que a polícia do turismo esteja sempre a rondar. É aqui que a avalanche de perguntas tende a ser maior, é aqui que se vendem mais bilhetes directos.

A quem chega a comprar, e normalmente nos autocarros compra-se o percurso Porto Vintage, é preciso explicar todo o funcionamento do Yellow Bus, os dois dias de validade, os horários; e a quem vem com vouchers para trocar repete-se a história e explicam-se as extensões das várias modalidades — há turistas que não sabem o que está incluído no seu voucher, como a britânica que chega com um voucher Yellow City Cruises, que inclui, além do tradicional Porto Vintage, um cruzeiro “das seis pontes” e uma visita guiada às caves Calém: “Oh, that’s good”. Ainda se faz tempo para esperar pela filha de uma turista brasileira (“está quase a chegar”) e se explica a um casal que este não é o autocarro certo para regressar ao navio cruzeiro que esta manhã aportou em Matosinhos — teria de esperar o da linha roxa, mas o melhor, indica Vítor, é ir ali ao outro lado da praça apanhar um autocarro dos STCP, o 500, que é mais rápido e cujo valor está incluído no passe Porto Vintage.

“Diariamente lidamos com 600, 700 pessoas”, explica Vítor, “é difícil de gerir e chegar ao final do dia com todos satisfeitos”. Mas é o que tenta fazer, sempre com um sorriso e com a ocasional piada, dependendo de com quem está a falar. “Temos de ler bem cada pessoa. Sabe, por exemplo, que os espanhóis são por norma mais relaxados e os brasileiros (35% dos passageiros, com frequência constante ao longo de todo o ano) de extremos, menos tolerantes quando alguma coisa corre mal.” Por exemplo, os atrasos que as obras na cidade, nomeadamente na Avenida da Boavista, podem causar ou algum problema nos auriculares para os áudio-guias (onde o português do Brasil tem direitos de idioma). A sua simpatia constante é também uma moeda de troca: busca alguma tolerância no caso de acontecer algum imprevisto. E é o resultado da sua longa experiência no contacto com os passageiros. Que têm sempre razão. Mesmo quando não a tem.
(Andreia Marques Pereira) 

Luís Monteiro, empregado de mesa

“Sr. Ramiro, quando é que me leva para trabalhar consigo que eu tenho tanto desejo de trabalhar naquela cervejaria?”, recorda-se Luís de tantas vezes perguntar ao antigo dono da icónica marisqueira de Lisboa quando este ia tomar o pequeno-almoço à pastelaria onde fazia um part-time. “Foram várias vezes que o importunei até que numa manhã me respondeu: ‘És chato, pá, anda lá falar comigo’”. Hoje Luís Monteiro tem 44 anos anos e conta com mais de 20 a correr aqueles corredores exíguos com travessas de marisco. “No primeiro dia só consegui tirar cafés, estava tão nervoso e agitado, com medo de dar um passo, tal era a algazarra de movimento dentro do balcão”, conta. De 20 pessoas passou a atender quase 800 por dia mas, garante, nada disso o assustou: “Se procurava um paraíso chamado público, encontrei-o aqui”.

Haverá poucas coisas na vida que lhe dão mais prazer do que ajudar um estrangeiro que o olha atabalhoado com o martelo na mão e uma sapateira na outra — “Hey, guy, how this work?”, imita —; ensinar a um cliente o “segredo básico” de misturar as ovas da lagosta com maionese e limão; descobrir que uns carabineiros seriam o remate perfeito para aquela norte-americana, dignos de beijos e abraços no final; ou receber uma camisola do Atlético Mineiro (o seu clube preferido no Brasil) como agradecimento de um casal que ali quis ser atendido por ele por recomendação do filho. “Essa é a melhor gratificação que eu posso receber do público, quando abala e volta outra vez feliz”, conta. “O público é o meu sangue”, remata, o sorriso sereno, o coração na boca. “Aquilo que eu faço aqui é aquilo que eu amo”.

Quando ali começou, recorda, trabalhava-se “muito mesmo”. Hoje trabalha-se “muito, muito, muito”. Na altura, a percentagem de portugueses e estrangeiros era muito semelhante, actualmente a maioria dos clientes vem de fora. Com a crise, muitos saíram do país; com a fama internacional, muitos chegam já com aquela referência. “Os orientais, por exemplo, já trazem uma lista feita por certa revista ou livro e dizem logo que querem comer isto ou aquilo, sem medo de arriscar porque a descrição era boa.” E depois de a cervejaria ter surgido no episódio lisboeta da série norte-americana No Reservations, vem “um exército de seguidores que querem comer exactamente o mesmo que ele [Anthony Bourdain, o apresentador do programa]”.

Sentado ao lado, Pedro Gonçalves, actual gerente, ainda se lembra quando um estrangeiro pediu uma “beer, small” e por duas vezes lhe entregaram uma imperial e um Sumol. “Ainda houve este grande embate, pelo qual quase toda a equipa passou, que é a chegada em força do turista”, recorda. No outro lado da mesa está Rui Alves, chefe de cozinha, que todos os dias regista na agenda estas histórias e gaffes, que “um dia serão um livro”. Está lá a tradução dos percebes para “understands”, a santola morta a boiar no fundo do aquário ou o prego sem miolo. Vão folheando o caderno e rindo. “Isto é uma família”, garantem.

Para Luís, o senhor Ramiro (falecido em 2009) era até mesmo “um segundo pai”. “Muitas das vezes, na minha formação, ele chegava ao pé de mim e dava-me uma chapada no pescoço e sabia-me muito bem, era como se fosse um beijo, a maneira de ele me transmitir a amizade dele”, conta com a voz embargada e o olhar colado no papel que vai enrolando nervosamente. “‘Estás a brincar comigo, passei-te a mão no pescoço, estás-me a dizer que te bati?’, dizia-me ele e eu sentia aquilo com uma gratidão.” “Foram muitas vezes e foram poucas para aquilo que lhe devo.”

A vida de Luís ficará sempre ligada à cervejaria, para o bem e para o mal. Em 2005, um acidente vitimou um colega e “grande amigo” e deixou Luís “bastante mal” numa cama de hospital. “Foi uma grande perda que eu tive e todos eles, mas felizmente tive a sorte de ter quem cuidasse de mim”, conta, emocionado. “Consegui aos poucos ir recuperando e vir a reintroduzir-me no trabalho desta empresa, com grande apoio da administração e dos colegas, e voltei a exercer aquilo que eu mais gosto: lidar com o público, servi-lo e divertir-me com ele”. 
(Mara Gonçalves)

José Viegas, nadador-salvador

Na fotografia mais antiga que alguma vez encontrou sua, José Viegas surge ao colo do pai no restaurante da família na praia da Rocha. Tinha um mês e 25 dias. Hoje tem 54 anos e não houve um Verão que não tenha sido vivido naquele areal de Portimão. “Sempre estive ligado à actividade de apoio balnear, é um negócio de família de muitos anos, sou a quinta geração”, conta. No início eram as barraquinhas de pano, o aluguer de toalhas e de fatos de banho e, mais tarde, o restaurante, que todos os anos tinha de ser montado e desmontado sobre o magro areal que ali existia. Actualmente são 70 chapéus-de sol, toldos e espreguiçadeiras. “Praticamente cresci aqui, vivíamos quatro meses na praia”, recorda-se. Com nove anos já levantava mesas e servia bebidas, mas começou “a ajudar a sério” aos 14 anos, quando o pai o tornou “responsável pelo aluguer das gôndolas”. Quatro anos depois decidiu tirar o curso de nadador-salvador, profissão que concilia até hoje, sendo um dos mais antigos do Algarve no activo.

“Há gente que vem para aqui há 40 anos”, conta. Conhece todas as caras, vão-se cumprimentando ao passar. Algumas famílias vão somando gerações e às vezes “até vêm por turnos”: uma filha, depois a outra, a seguir os pais, os netos. “Tinha um colega nadador-salvador que gostava muito de falar com as pessoas, então no ano seguinte a malta do Norte trazia-lhe sacos de batatas, garrafões de vinho”, ri-se. São quase tantos os laços que foi criando quanto as histórias que tem para contar, mas até as amizades são agora diferentes, queixa-se. “Lembro-me que quando era miúdo e vinha para aqui uma família inglesa fazíamos logo amizade”, recorda. “Convidávamos para irem jantar a nossa casa, com os anos acabavam por ficar a dormir lá e cheguei a ir à Bélgica passar um mês de férias com pessoas que conhecemos aqui.” “Agora posso até ser muito simpático, mas é sempre um cliente que chega”, lamenta.

Ainda se lembra de ali só existirem “20 ou 30 casas e o Grande Hotel da Rocha”. Viu a praia alargar-se vários metros sobre o mar, assistiu à substituição das vivendas pelos bares, lojas, hotéis e prédios que hoje galgam a falésia. Com os anos começaram a chegar mais estrangeiros, sobretudo irlandeses, holandeses e alemães. Os hábitos dos veraneantes mudaram drasticamente: antigamente iam logo ao restaurante reservar a mesa e o almoço, comiam “refeições à séria” e depois “dormiam a sesta nas cadeirinhas, faziam jogos em família”. “Agora vêm, vão a casa comer e depois voltam, só o estrangeiro é que vem passar o dia na praia”, conta. Até a profissão de nadador-salvador vive dias muito diferentes. Quando começou, os cursos ainda eram dados no mar com a água gelada do Inverno, a maioria eram pescadores, pedreiros e “malta sem formação académica”. Hoje têm pelo menos o 12.º ano, muitos deles são licenciados desempregados, falam línguas, há uma aposta forte na prevenção.

“Naquela altura o nadador-salvador era o banheiro que arrumava os toldos, estávamos aí a trabalhar e quando acontecia alguma coisa, chamavam e nós lá íamos”, recorda-se. Havia mais liberdade, tempo para “os mortais, os mergulhos, o futebol, o bronze”. E as namoradas estrangeiras. “Era tudo bandidagem e eu também era”, ri-se. “Cada nadador-salvador tinha duas, púnhamos uma no autocarro e estava outra a chegar.” “Elas vinham cá para isso também e no meu tempo se arranjasses uma namorada portuguesa era logo muito sério, para casar”, vai explicando, em jeito de desculpa. Da namorada norueguesa teve uma filha. “Naquela altura havia campeonatos de dança à John Travolta e Saturday Night Fever nas discotecas, ela fazia fazia parte do júri e eu fui tentar ‘engraxá-la’ e foi no que deu, por acaso até ganhei [o concurso]”, ri-se. Tinha 20 anos e faziam seis meses cá, seis meses lá. “Ela também trabalhava cá no Verão e depois no Inverno íamos de férias para a Noruega, porque lá o subsídio de desemprego é melhor e dava para viver sem fazer nada”, graceja. Mas quando regressava a Portimão, “olhava à volta e só pensava que isto era mesmo bonito”. “Gostava cada vez mais disto e já não me apetecia voltar para lá.”

Hoje em dia, os primeiros três meses de Inverno são para fazer pequenas reparações no material e visitar os amigos que não vê durante todo o Verão, apesar de “estarem ali a cinco minutos”. “Às vezes chego aqui às 6h30 e saio às 20h45. São dias muito grandes e o cansaço também.” Nos restantes meses de frio, dá formação aos novos nadadores-salvadores. Em 2001 fundou (e continua a presidir) a Associação dos Nadadores-salvadores do Barlavento Algarvio e desde 2010 é quem coordena o Plano Integrado de Salvamento na Praia da Rocha. “Já faço mais o trabalho de terra do que a parte aquática”, explica. Em 36 anos de profissão, perdeu a conta aos salvamentos que fez e aos sustos que apanhou. “Por três vezes ia lá ficando também”, recorda. Nunca pensou desistir. “Acho que nasci mesmo para salvar, sei lá, está o bichinho cá dentro”. “Eles fazem bem o trabalho, mas eu vou logo a correr, ver se é preciso alguma coisa”, confessa. “Acho que já chega, mas isto fica sempre, não consigo.”
(Mara Gonçalves)

Maria Helena Ribeiro, proprietária da loja de artesanato

"Tudo o que tem galos" é um chamariz para os clientes do Xafariz Artesanato, resume Maria Helena Ribeiro. Di-lo com alguma ironia, mas consciente de que os galos - de Barcelos, bem entendido - nas suas várias aparições alimentam uma parte considerável da loja que abriu há 25 anos em plena Rua Mouzinho da Silveira, meio caminho andado até à Ribeira do Porto. Os turistas estrangeiros, parte de leão da sua clientela, não lhes resistem, sobretudo os brasileiros. "Não que haja muita diferença", reflecte, "brasileiro, francês, espanhol... procuram sempre dentro do mesmo". Galos, portanto, de preferência muito baratos - seja em ímanes, cerâmica, lenços, atoalhados -, o que até obrigou Maria Helena a abrir espaço na sua loja para produtos que não de artesanato português, a sua raiz (atente-se no cartão de apresentação: "artigos regionais, bordados, cerâmica, novidades, postais, filigranas). E o seu orgulho. "Vesti muito rancho folclórico", conta, "vendi muitas saias, blusas, coletes tradicionais."

Ainda hoje, são os têxteis que ocupam grande parte do interior da loja, quadrada, forrada de estantes envidraçadas; o exterior é mais ecléctico: a porta é território têxtil (t-shirts, lenços...), porém as duas montras que a enquadram são um sortido ao estilo caverna-de-ali-babá em edição portuguesa, tradicional e popular. Mas nem sempre artesanal, volta a avisar Maria Helena. Afinal, a concorrência é implacável e as lojas de souvenirs de indianos, com a sua oferta invariavelmente (mais) barata, desvia muita clientela. "As pessoas querem barato", explica, "não importa se é feito em Portugal se na China. Eu nem nos rótulos made in EU me fio"... Há uma certa desilusão na voz mas pragmatismo na acção: se não os podes vencer, junta-te a eles. Ou seja, entre os galos de cerâmica há os de resina, igual para os ímanes - "temos até de azulejo mas os que vendem mais são os de 2€, chineses". Mesmo os lenços, que há 25 anos lhe deram a ganhar muito dinheiro, e que ela trata com carinho especial - está com pressa porque, precisamente, vai sair em breve para levar uma série deles a uma costureira que lhes coloca franjas manualmente: "compro eu a linha, o fio, tudo igual" -, têm no próprio Xafariz concorrência estrangeira (e podem ser três vezes mais baratos).

Está tudo devidamente discriminado, o nacional e o estrangeiro. O que não está, Maria Helena encarrega-se de explicar: por exemplo, os barcos rabelos que vemos na montra são em cortiça e madeira feitos por um artesão portuense; as peças de cerâmica que lhes fazem companhia são do Alentejo, Aveiro e Vila Nova de Gaia. E não se pense que os produtos portugueses-tradicionais-e-artesanais estão condenados ao desaparecimento. Na verdade, até estão a sair melhor do que antes porque, simplesmente, há mais turistas no Porto - trazidos pelas companhias de aviação low cost, sublinha Maria Helena. Entre estes, cresce, proporcionalmente, a minoria que "procura o mais original", que até pode ganhar com a abundante comparação com os produtos feitos em série.

De qualquer forma, para cobrir todas as possibilidades, Maria Helena até estendeu o seu negócio à Ribeira, onde tem uma loja concessionada com preços mais baixos. "Somos obrigados." Obrigados a estar na Ribeira por ser o local mais incontornável dos périplos turísticos - já perdeu a conta às vezes que lhe entram pela loja a perguntar onde é a Ribeira: "Sempre em frente até ver o rio"; obrigados a colocar os produtos mais baratos para competirem com as bancas da Ribeira, ("fizeram daquilo uma feira"), que não têm encargos com "rendas, ordenados, impostos". Não é fácil, mas Maria Helena já anda nisto há 45 anos, desde os seus 20, quando começou ao balcão de uma loja semelhante em Cedofeita. Não vai desistir. Vai continuar a promover o artesanato português e a dar indicações a quem as pede: "Procuram as igrejas, a Sé, a Igreja de São Francisco, a dos Clérigos, as pontes, as caves...".(Andreia Marques Pereira) 

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