Fugas - Viagens

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    Taj Mahal, Índia Brijesh Singh/Reuters
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    Machu Picchu, Peru Mário Augusto Carneiro
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    Isfahan, Irão Morteza Nikoubazl/REUTERS
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    Sanaa, no Iémen; Ahmad Gharabli/AFP
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    Hagia Sofia, Istambul, Turquia Bulent Kilic
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    Catedral de São Paulo, Londres, Reino Unido STEFAN WERMUTH/REUTERS
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    Torre de Pisa, Itália Fabio Muzzi/AFP
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    Ópera de Sydney, Austrália Saeed Khan/AFP
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    Potala, no Tibete REUTERS/CHINA DAILY
  • Ponte Henderson Waves Singapura
    Ponte Henderson Waves Singapura Tim Chong/Reuters

Volta ao mundo em dez obras-primas

Por Sousa Ribeiro

À volta das celebrações do Dia Mundial da Arquitectura, vamos pelo mundo seguindo obras-primas. De Pisa a Londres, de Istambul a Isfahan, de Sanaa a Lhasa, de Agra a Machu Picchu, de Singapura a Sydney. Uma viagem por alguns dos mais belos monumentos de uma lista infindável, obras-primas de épocas distintas que as tornam imortais e estimulam o imaginário de viajantes.

E Angkor Wat? E as Pirâmides de Gizé? Então e Chichén Itzá? E a Ponte do Rialto, em Veneza, não caberia na lista? E a Torre Eiffel? E a Grande Muralha da China? E as igrejas de Lalibela, na Etiópia? E a Sagrada Família, em Barcelona? Esqueceram-se da Praça Vermelha, em Moscovo? Samarcanda, no Uzbequistão, não se lembraram?

Se lhe fosse dada a possibilidade, a propósito do Dia Mundial da Arquitectura, que se assinala a 6 de Outubro, cada leitor elaboraria uma lista diferente de grandes obras espalhadas pelo mundo. As mesmas dificuldades e dúvidas foram por mim enfrentadas e, aceite-se ou não, cada uma das eleitas, todas elas visitadas, exprimem uma singularidade. É, como na vida, uma questão de gosto, de opções, de inclinações.

Torre de Pisa, Itália

Ainda criança, não sosseguei enquanto não carreguei para o quarto a miniatura da torre que o meu pai um dia trouxera das suas viagens pela Europa. Na penumbra, gostava de ligar o interruptor e de ver o aposento banhado com aquela luz tímida que me enchia de serenidade, ao mesmo tempo que sonhava com o momento de tocar a original, num país que, na minha inocência, me parecia tão longínquo como inacessível. Agora, mais de 40 anos depois desse tempo de ilusão, não por falta de oportunidades mas por uma questão de prioridades, os meus passos pisavam finalmente a relva do Campo dei Miracoli, repleta de japoneses posando para a fotografia com a mão estendida, na presunção de amparar a torre.

Singular campanário que se começou a levantar em 1173 e assente numa pedra com apenas três metros de profundidade, a Torre de Pisa foi construída (em três períodos ao longo de quase 200 anos) num solo arenoso (logo instável) e, nos últimos três séculos, sem qualquer controlo no número de visitas, os especialistas detectaram uma inclinação de 4, 5 metros em relação ao seu eixo. Perante o risco de queda, as autoridades decidiram, em Janeiro de 1990, encerrá-la ao público, assim permanecendo durante mais de um decénio, para obras de restauro e de escoramento. Mas foi bem antes, em 1274, com a construção do terceiro piso, que se começaram a notar os primeiros sinais de inclinação da torre que desafia as leis da gravidade e que, entre tantos outros, também atraiu o cientista pisano Galileu, que a usou para experiências sobre a queda dos corpos.

No momento em que começava a vencer, com alguma dificuldade, os 297 lanços de escadas em espiral deste ícone medieval, senti-me um privilegiado e mais ainda quando, do topo, sob um céu azul-cobalto, deixei pousar o olhar na praça, gozando da panorâmica sobre o Duomo e o Baptistério de São João, ambas estruturas mais antigas, e, para o outro lado, sobre a encantadora cidade toscana, rasgada pelo rio Arno, de infinita beleza ao entardecer.

Construída totalmente em mármore multicolorida, a torre, em estilo pisano-românico e que teve, segundo alguns estudiosos, Bonanno Pisano como primeiro arquitecto, apresenta um diâmetro na base de 16 metros e uma altura (se estivesse na vertical) de praticamente 56 metros, um total de oito andares, seis dos quais com uma galeria de arcadas à volta do núcleo central que lhe conferem uma harmonia perfeita.

A luz crepuscular banha a cidade e inunda a torre, o dia apaga-se mas não a memória e a personagem ligada à pequena miniatura que ainda hoje ilumina um quarto agora quase sempre solitário.

Catedral de São Paulo, Londres

“No pouco que dormi, sonhei com a miséria debaixo de todas as formas; ora, andrajoso, ia à porta da casa de Dora vender pacotes de fósforos, seis por meio dinheiro (…); ora me precipitava para apanhar as migalhas do pão quotidiano que o escrevente Tiffey comia pontualmente quando o relógio de São Paulo soava a hora do almoço.” Charles Dickens ou David Copperfield (uma obra auto-biográfica) caminhava, nos seus tempos de adolescente, com uma inusitada frequência entre Bayham Street e a Catedral de São Paulo para depositar os olhos no nevoeiro e no fumo sobre as cúpulas, cujo tamanho apenas é superado pela de São Pedro, em Roma.

Anos mais tarde, em 1852, o escritor inglês subiu a escadaria da obra-prima de Cristopher Wren (projectou outras 50 igrejas em Londres) na companhia da família para assistir ao funeral do Duque de Wellington, o marechal e político britânico que derrotou, 37 anos antes, Napoleão em Waterloo – e há quem jure que o fez com um sentimento de repulsa perante tamanha ostentação. O “Duque de Ferro”, como era conhecido, é uma das figuras cujos restos mortais se encontram depositados na catedral que foi erguida entre 1675 e 1710, após o Grande Incêndio, juntamente com outros nomes mediáticos, como Lord Nelson ou o próprio Cristopher Wren – em cujo túmulo se pode ler uma inscrição em latim: “Se procuras o seu memorial, olha à tua volta.”

A cúpula principal (na verdade são três) da catedral tornou-se famosa por ter resistido ao Blitz (duas bombas foram encontradas em 1940 mas removidas a tempo), passando a ser vista, por essa razão, como um ícone de resistência durante a II Guerra Mundial. O passeio em redor da sua base recebe a designação de Galeria dos Desejos – se o turista falar próximo da parede, as suas palavras serão transportadas para o outro extremo, a 32 metros. 

Hagia Sofia, Turquia

Construída no século VI para realçar a glória de Bizâncio e do seu imperador Justiniano, Hagia Sofia foi, antes de mais, uma igreja, logo se transformou em mesquita (entre 1453 e 1934) e, actualmente, por ordem de Atatürk, é um museu de mosaicos bizantinos, um lugar que convida à contemplação silenciosa, sob a sua cúpula que se ergue a uma altura de 55 metros, uma das mais altas do mundo. Quando se olha para a basílica, poucos são aqueles que imaginam uma construção sem rival, em beleza e dimensão, ao longo de quase mil anos, até ao dia 18 de Novembro de 1626, altura em que foram concluídas as obras na basílica de São Pedro, em Roma. “Ó Salomão, já te superei”, exclamou Justiniano, em 537, ano da inauguração da Santa Sofia, ao lado da sua mulher, Teodora, do patriarca de Constantinopla e dos arquitectos.

Concebida para ser um espelho da abóbada do mundo – e, ao mesmo tempo, o seu interior transmite uma sensação celestial -, a Santa Sofia permanece, ainda hoje, como uma das maiores obras mundiais da arquitectura e como elemento de influência sobre as construções dos séculos seguintes. À excepção dos mosaicos que adornam o nártex e o Vestíbulo dos Guerreiros, todos os outros são trabalhos, também notáveis, que datam do século IX ou posteriores, após a era iconoclástica – um decreto foi publicado proibindo a idolatria e muitos ícones foram destruídos, situação que agitou o mundo bizantino e as suas relações com Roma e que se manteve até meados do século IX.

Santa Sofia é um daqueles lugares que deve ser percorrido pausadamente, para ser visto e não apenas olhado, com uma história e uma atmosfera que encontram eco nas palavras do escritor Orhan Pamuk sobre a própria cidade de Istambul - um lugar que muda e se transforma a um ritmo vertiginoso, quase excessivo, mas que nunca perde a sua alma nem o keyif, “a arte de viver” local, essa forma sábia de desfrutar o tempo.

Taj Mahal, Índia

O poeta Rabindranath Tagore definiu-o como uma “lágrima no limiar dos tempos” e Rudyard Kipling como a “incarnação da pureza” mas tudo o que se possa escrever sobre este lendário mausoléu, construído entre 1632 e 1653 por 20 mil mestres artesãos, nunca será compreendido se não o visitarmos pelo menos uma vez na vida, respirando o amor inconsolável de Shah Jahan pela sua mulher desaparecida, a imperatriz Mumtaz Mahal, no momento em que dava à luz o seu 14.º filho. Símbolo da força do Islão, surge diante dos nossos olhos sumptuoso, todo de mármore branco, como algo inacessível, unindo o céu e a terra de acordo com a mitologia mughal, proeminente no seu equilíbrio e simetria, como alguém que flutua graciosamente no espaço.

Antes ainda de o tocar, vejo-o reflectido nas águas de um lago, não muito longe do jardim persa concebido de acordo com o conceito islâmico do paraíso; logo a seguir, quando o contorno, há um qualquer magnetismo que emana das suas quatro fachadas decoradas com versículos do Corão e motivos florais em pietra dura: incrustações em coral, cornalina, lápis- lazúli do Afeganistão, jade da China, ágata do Iémen. O soberbo edifício central está escoltado por quatro minaretes com uma ligeira inclinação para que, de acordo com a teoria mais aceitável, não provoquem danos na cúpula principal em caso de queda. De um lado e do outro, duas construções muito idênticas: a mesquita, o lugar da oração, e o jawab, um centro de acolhimento de visitantes – se bem que este último pode ter sido erguido para inviabilizar um possível desequilíbrio estético.

Símbolo por antonomásia da Índia, o Taj Mahal esconde por detrás do mito uma trama complexa que mistura ambição, poder, propaganda política e lenda, um verdadeiro segredo de uma época surpreendente, de esplendor da rica história do país. Tudo começa em 1627, com a morte do imperador Jahangir – terceiro na linha dinástica iniciada por Babur em 1527 -, levando ao poder, depois de um tempo de intrigas e de contratempos, o seu filho, o príncipe Khurram, que, como era habitual nesse tempo de antanho, altera o nome, passando a ser conhecido por Abdul Muzzaffar Shiabuddin Mohammed Sahid Qiran-Sani Sha Jahan Badshah Ghazi, para os mais íntimos e para a história Sha Jahan, o “Rei do Mundo”, tão grande e tão ambicioso que logo mandou assassinar todos os varões que lhe poderiam fazer sombra na sua ascensão ao poder.

Também ele foi enterrado no complexo, ao lado da sua mulher, uma situação que Sha Jahan não havia previsto – o seu túmulo está em clara assimetria com o resto do complexo. O imperador idealizava uma outra construção, negra como um corvo, mas o filho e sucessor, Aurangzeb, destronou-o pela força e decidiu encarcerá-lo durante os últimos oito anos da sua vida no Forte de Agra, de onde ele podia ver, através de uma janela, o monumento que homenageia a sua mulher e perpetua a sua história.

À medida que a tarde avança, o mármore de um dos mais belos monumentos do mundo vai mudando de cor e, paulatinamente, observa múltiplas transformações: aos tons dourados sucedem-se os vermelhos e os rosados são substituídos, quando o crepúsculo cai, pelos azuis, indicando o caminho da saída aos visitantes, eternamente magnetizados e incapazes de desprenderem o olhar desta maravilha que é Património da UNESCO desde 1983. É altura de fitar o Taj Mahal desde uma das margens do rio Yamuna e reflectir sobre as palavras de Salman Rushdie. “O edifício fez cair o meu cepticismo em pedaços. Mostrando-se pessoalmente, insistindo com a força da sua autoridade, simplesmente cancelou nesse instante milhões de imitações e encheu com o seu esplendor, de uma vez por todas, o lugar que na minha mente ocupavam as reproduções. E esta é, em definitivo, a razão pela qual o Taj Mahal tem que ser visto: para recordarmos que o mundo é real, que o ruído é mais verdadeiro do que o eco, que o original é mais potente que a sua imagem reflectida no espelho. A beleza das coisas belas ainda é capaz, nesta época saturada de imagens, de superar as imitações. E o Taj Mahal é, muito mais do que o poder das palavras para o descrever, uma coisa adorável, talvez a mais adorável de todas as coisas.”

Potala, Tibete

O homem, fazendo rodar o maikhor, sorri na minha direcção e, segundos depois, estamos os dois sentados num banco de madeira, em silêncio, erguendo os olhares para o majestoso Potala e para a bandeira, para mim chinesa, para ele, como tibetano, a bandeira de sangue, obrigados que são, sob pena de serem castigados, a hasteá-las nas suas casas. Uma mulher, a meia dúzia de passos de nós, em plena Praça Jokhang, mesmo em frente ao Potala, está prostrada no chão frio, uma entre tantos outros devotos que pretendem purificar a sua submissão aos cinco venenos: o desejo, a ignorância, a inveja, o orgulho e o ódio.

No lugar onde actualmente está a Jokhang existia, em tempos, um lago, o Wothang, dessecado com terra carregada por cabras. Por isso, no século VII, a cidade era conhecida como Rasa, “Terra das Cabras” - ra significa cabra e sa terra- e só mais tarde passou a ser designada por Lhasa, “Terra de Divindades”. Hoje, ainda mais com a chegada do comboio proveniente de Pequim à capital da Região Autónoma do Tibete, Lhasa bem poderia chamar-se “Terra dos Chineses”, tão descaracterizada está desde que, em 1959, foi invadida pelos militares, motivando a fuga de tantos tibetanos, como um com quem me cruzei, numa manhã silenciosa, no mosteiro de Tsuglagkhang, em McLeod Ganj, na Índia. Dorjee, hoje com 38 anos, era um menino quando partiu.

- Tinha quatro anos e meio quando deixei, em 1981, o Tibete. O meu pai fez-me prometer que nada contaria à minha mãe sobre a partida. Em troca, teria direito a um brinquedo. Mas na minha aldeia não havia nada.

O mosteiro ergue-se, na sua solidão, no monte Marpori, a colina vermelha, bem no coração de Lhasa. Muito mais do que a sua história, o Potala é uma lenda, um símbolo do Tibete e de tudo quanto representa esta terra longínqua, inacessível durante anos. Fito-o demoradamente e as palavras de Gorjee martelam o meu cérebro.

- Nunca mais vi o meu pai e a minha mãe. Mas sei que estão vivos.

Declarado Património da Humanidade em 1994, a sua construção foi iniciada no século XVII pelo V Dalai Lama, trabalhos que se foram prolongando pelo tempo fora, até adquirir a forma actual, com os seus 13 pisos, 130 metros de altura e mais de mil aposentos, capelas e salas de oração.

Gorjee, ou as suas palavras, recordando a fuga, está sempre presente quando lanço olhares a tão imponente estrutura.

- Foram semanas terríveis, sob fortes tempestades, pouco agasalhado.

Algumas paredes do Potala têm uma espessura de cinco metros, como se fosse a morada de um deus inacessível.

- Comigo, havia outras três crianças. Quando recordo a epopeia, ainda me custa a acreditar como fui capaz de vencer a fome, as condições climatéricas, as longas caminhadas, a ausência da minha família.

Antigo símbolo do governo lamaísta do Tibete, há muito hipotecou a sua vocação sagrada e, uma vez órfão de monges e de poder, não é hoje mais do que um museu.

- Por vezes, durante o dia inteiro, não havia mais do que uma maçã para dividirmos entre os três.

Quando se olha para o Potala, o mais indiferente dos viandantes sente-se pequeno perante tamanha grandiosidade e nem se apercebe de que, na verdade, são dois palácios sobrepostos: o branco, sede do governo e residência de Inverno do Dalai Lama; o vermelho, apenas reservado às actividades espirituais, ambos encimados por telhados dourados que resplandecem à luz dos raios solares, “como línguas de fogo”, segundo o relato de Edmund Candler, jornalista que foi correspondente em Lhasa do diário inglês Daily Mail no início do século passado. No Potala viveram e reinaram todos os Dalai Lama que governaram esta terra que tanto imaginário preenche entre turistas - e oito deles aqui foram sepultados, em stupas atapetadas de ouro, prata e pedras preciosas.  

- Só voltei a ter contacto com a minha família em 2008. Ao telefone, não mais fazíamos do que chorar. Eu esquecera a minha língua.

A invasão militar chinesa levou ao exílio Tenzin Gyatso, o último Dalai Lama, e hoje o Potala não é mais do que um museu, sem alma, como o Tibete. Mas os seus aposentos permanecem intactos: a cama, a sua chávena de chá, o seu trono, fazendo deles o lugar mais venerado em todo o palácio. Quando os observo, vejo neles um sinal de esperança para o povo tibetano mas as palavras de Gorjee são como um eco entre estas paredes sem vida:

- Não é fácil ser tibetano no Tibete.  

Sanaa, Iémen

- Mister, mister!

Nunca tive essa pretensão mas não resisti a olhar para trás e vi um menino de olhos escuros e cheios de brilho exibindo na palma da mão as notas de riais que eu havia perdido no momento em que saíra do pequeno autocarro que me trouxera desde o aeroporto. O coração encheu-se-me de gratidão: uma manifestação de que qualquer receio face à instabilidade política do país era de todo infundado. Embrenho-me na cidade, situada 2300 metros de altitude, e penso no que escreveu Joseph Kessel (1898-1979), jornalista e novelista francês, no ainda actual Fortune Carrée, publicado em 1932: “Sanaa, no meio do corte prodigioso de pedra e lava que fermentam nas montanhas do Iémen, encontra-se isolada do mundo e perto do céu.”  

Nada mudou na capital desde então, mais de 80 anos após a aventura de Kessel no Iémen, a sua arquitectura permanece imutável, sólida, forte e orgulhosa. Numa palavra: única. Em duas: fascinante e única. Em três: delirante, fascinante e única. Qualquer viandante, quando descobre Sanaa, não sente necessidade de outra, ela preenche todos os seus desejos, todas as suas ilusões como viajante, mesmo aquelas que há muito foram perdidas porque Sanaa é, salvo melhor opinião, o maior museu ao ar livre do mundo mas, contrastando com qualquer museu, cheia de vida, o que engrandece – e de que maneira – a sua fisionomia, muito por culpa de um estilo de vida que permanece inalterado: basta imaginar um teatro com todos os seus figurantes trajando como em tempos de antanho.

O nome de Sanaa provém, há quem diga, do reino de Saba, significando “a fortificada”, porque a cidade, com os seus imames xenófobos, sempre se quis isolar e separar do mundo exterior, uma reclusão voluntária ainda hoje bem visível quando se erra pelas suas muralhas feitas de silêncio e se fitam os seus arranha-céus que expressam o bom gosto das suas gentes pela arquitectura e pelas suas casas, com as suas formas exteriores, as suas linhas, os detalhes que manifestam o desejo muito íntimo de materializar uma pequena obra de arte, um mundo complicado de entender que só se percebe quando as portas se abrem para dar lugar à hospitalidade que é uma das característica deste povo tão singular.

- Se mascares qat não vais dormir a noite inteira.

Estou sentado, comodamente, num mafraj, no topo de um edifício de seis andares, olhando a cidade à minha volta, a meio da tarde. Para baixo, são os dormitórios, a cozinha, o diwan, a sala de recepção dos visitantes, os armazéns e o piso onde guardam os animais domésticos. A memória voga sobre a cidade, o almoço no restaurante, a ida ao mercado para comprar qat fresco, a simpatia destas gentes, as suas vielas sem saída, os seus mercados, as suas mesquitas que agora chamam para a oração, a voz do muezzin que ecoa, as luzes cintilando ténues, a noite que cai sobre a cidade que tem de ser explorada na ânsia de nos perdermos, com a mesma ânsia com que deseja ser contemplada, admirada e, mais do que tudo, vivida.   

Isfahan, Irão

A mulher lava os legumes numa fonte, num jardim bem cuidado, e estende-me a travessa, permitindo que faça a minha escolha. Opto por um pepino, ao qual ela junta sal, e com as lágrimas ameaçando o meu rosto, incapaz de perceber o ódio de tantos por um país que não se cansa de me seduzir, deixo que os meus passos me conduzam, sem pressas, até à Praça do Imã, na expectativa de viver e sentir os monumentos que expressam o esplendor de outros tempos, não sem antes me perder, em conversas eternas, pelo bazar que serpenteia entre a Mesquita da Sexta-feira, a mais antiga e venerada de Isfahan, e a própria praça antes designada praça do Sha, com as mesquitas mais deslumbrantes do Irão e talvez do mundo.

Como muitas outras construções em Isfahan, o mercado foi mandado construir, há quatro séculos, pelo xá Abbás I (o monarca mais importante da dinastia safávida, que conseguiu expulsar mongóis e turcos otomanos, ocupantes de parte da Pérsia), com o qual a cidade viveu o seu grande momento de glória.  Com o país unido e livre pela primeira vez, Abbás I não perdeu tempo em idealizar Isfahan como a capital maior e mais formosa do mundo e, na verdade, a cidade transformou-se numa das mais destacadas metrópoles, com cerca de um milhão de habitantes que sentiam orgulho dos relatos de viajantes que enfatizavam a sua muralha, com os seus 40 quilómetros de circunferência, os seus 270 banhos públicos e as suas 1800 pousadas que abrigavam os membros das caravanas, um período de auge que não duraria mais de um século, até cair nas mãos dos afegãos, enquanto o poder político passava para Shiraz e, mais tarde, para Teerão.

Caminho como alguém que deseja retardar o momento de chegar à praça mas é um sentimento cínico, anseio por ele, e agora, ao escrever, a boca abre-se de novo de espanto, recordando o instante em que, depois de transpor uma das portas, vi pela primeira vez aquele lugar com 500 metros de comprimento e 160 de largura, com os seus palácios, mesquitas e arcos que abrigam lojas. Os olhos não tardam a pousar na mesquita do Imã, na sua fachada principal, na sua cúpula, tantas e tantas vezes comparada, do ponto de vista artístico, à basílica dedicada a São Pedro, no Vaticano. Para um lado, perscruto a cúpula azulada da mesquita do xeque Lotfollah (sogro de Abbás I e em tempos chamada mesquita das mulheres), para o outro, a fachada do palácio de Ali Qapu, um poderio inigualável, um cenário encantador, das Mil e Uma Noites.

E por isso era conhecida como Esfahan nesf-é jahan – Isfahan, a metade do mundo.   

Ponte Henderson Waves, Singapura

Em Singapura, há dois desportos preferidos, compras e comida, mas os amantes da arquitectura não se sentirão defraudados quando começarem a errar pelo tigre asiático com cabeça de leão, se bem que muitos (entre os quais me incluo) preferem os bairros mais tradicionais de Kampong Glam e Little Índia ou a ainda mais nostálgica Pulau Ubin, a ilha para onde se escapam os habitantes locais sempre que a saudade de um outro tempo lhes bate à porta do coração. Nos últimos anos, Singapura, a cidade que é uma ilha e a ilha que é um país, cresceu desmesuradamente, perdendo grande parte da identidade de tempos de antanho, quando Raffles a dominava, opondo-se ao poderio dos holandeses. Muitos são os monumentos vanguardistas mas o que mais me impressiona é a Ponte Henderson Waves, destinada apenas a peões, que ondula, como uma vaga (também se assemelha a uma serpente), a uma altura de 36 metros acima do solo (a mais alta ponte pedonal de Singapura), sobre a Henderson Road, ligando o Mount Faber Park a Telok Blangah Hill Park, num total de 274 metros de comprimento. 

Ópera de Sydney, Austrália

Muitos acreditam, erradamente, que Sydney é a capital da Austrália – uma ideia que resulta do facto de ser a vitrina económica e turística da ilha. Para atrair tão elevado número de viajantes muito concorre a sua estrutura mais arrojada, a Ópera, construída em 1973 e projectada pelo até então desconhecido dinamarquês Jorn Utzon, o arquitecto que, na sequência de alguns desentendimentos com as entidades governamentais, regressou ao seu país, acabando por não ver a obra que o transportou para a imortalidade terminada.

Não foram fáceis os primeiros anos da maravilha que assenta num istmo que rasga as águas, uma área inicialmente prevista para a construção de um terminal marítimo. Com o tempo, a pressão exercida pela orquestra sinfónica e a companhia da ópera, cansadas da acústica do edifício camarário onde actuavam, produziu os seus efeitos e foi aberto um concurso público, ao qual concorreram mais de 200 projectos. Estávamos em finais da década de 1960 quando um novo problema se perfilou nos horizontes daquele que é um dos monumentos mais emblemáticos do século XX: como financiar obra tão megalómana, uma vez que o governo prometera não retirar um cêntimo do bolso dos contribuintes? Com um custo total estimado em três milhões de dólares australianos, criou-se a ilusão de que os donativos seriam suficientes para suportar a despesa, uma teoria que não tardou a cair pela base. A solução foi encontrada com a criação da Lotaria da Ópera, um ideia brilhante que resultou no pagamento total (os custos ascenderam a cem milhões de dólares australianos) da estrutura dois anos após a sua abertura, a 20 de Outubro, numa cerimónia marcada pela presença da Rainha Isabel.

Desde então, mais de 50 milhões visitaram este espaço – provavelmente o centro cultural mais visitado do mundo - que, visto à distância, se assemelha a um conjunto de conchas gigantes, particularmente elegantes quando as diferentes tonalidades do final de tarde tudo mancham à sua volta, tornando ainda mais forte a atracção que se sente perante tão proeminente exemplar da arquitectura.  

Machu Picchu, Peru

“Tomare para olvidarte/ Por que se que tu jamas volveras/ Cerveza, ron e guinda quiero tomar/ Recuerdos imborrables para olvidar.”

Os muitos turistas olham para Sonia Morales, a grande embaixadora da música folclore peruana que grava um teledisco em Machu Picchu, com o mesmo assombro com que, provavelmente, Hiram Bingham fitou, em Julho de 1911, esta obra-prima de um povo desaparecido. Os estrangeiros têm dificuldade em perceber a euforia dos peruanos à volta de uma das mais proeminentes representantes do huayno, importante género de dança e música de origem pré-colombiano peruano e actualmente muito difundido entre os povos andinos, da mesma forma que o historiador americano tardou em aperceber-se de que, contrariamente ao que pensava, não se encontrava em Vilcabamba, o derradeiro refúgio do Inca Manco, o imperador que se rebelou contra os Conquistadores.

Dissimulada entre a densa vegetação, Bingham perscrutou uma magnificente cidade que havia escapado à fúria demolidora dos espanhóis, embora sem detectar, no interior dos 200 edifícios, sinais do tesouro do imperador. Mais de cem anos depois, o complexo, erguido no último período do império inca, continua a ser um mistério para os arqueólogos, divididos entre diferentes teses sobre as suas verdadeiras funções.

Sonia Morales oferece-me uma t’shirt com a sua expressão sorridente estampada no rosto e, embora cansado do esforço despendido na subida desde Águas Calientes até Machu Picchu, através de atalhos que cortam a estrada que se semelha a uma serpente, decido-me a vencer os obstáculos que se cruzam no meu caminho até chegar ao topo de Huayna Picchu, a montanha jovem (actualmente a ascensão está limitada a 400 pessoas por dia), onde chego ao fim de 45 minutos, pleno de felicidade por poder contemplar, desde as alturas, a cidade dividida em três sectores: agrícola, religioso e civil.

Uma família, reunida para um piquenique, convida-me a provar, não sem antes exibir a cabeça e os dentes, um delicioso porquinho-da-índia, um dos pratos tradicionais do Peru, e ao lado dela, umas vezes conversando, outras em silêncio, deixo que o olhar percorra os vestígios do templo principal, de planta rectangular mas com apenas três paredes, o Intiwatana, literalmente a pedra de atar o sol e, na sua essência, o ponto sagrado de contacto entre a terra e o céu para a religião inca – é uma pedra monolítica em cujo plano superior está talhado um prisma rectangular de 36 centímetros e a longitude e a posição da sombra permitiam determinar com exactidão a altura do sol e, desta forma, a hora e as estações.

Ao longe, mais para lá, avisto numerosos grupos de turistas, como formigas, acabados de chegar depois de percorrerem o caminho dos incas e, mais para cá, o Templo das Três Janelas, com os seus muros de blocos de granito branco, as suas janelas abrindo-se para oriente, para as montanhas, com a sua forma trapezoidal para conferir maior estabilidade à construção, uma arquitectura tão refinada que lhe vale o título de pérola de Machu Picchu mas cujas funções permanecem um mistério.

Dou mais uma dentada no delicioso porquinho-da-índia e espraio uma vez mais o olhar, agora até ao Templo do Sol, sobre a minha direita, com o seu muro semi-circular. No centro, um altar monolítico sobre cuja superfície foi traçado um sulco alinhado com um ponto por onde sai o sol durante o solstício de Junho, alegadamente um observatório astronómico, e, na base, uma gruta, lugar importante de culto e de oferendas.

O sol vai baixando, lentamente, a luz e a sombra pintam as ruínas das casas quadrangulares, feitas de blocos de pedra, com os seus interstícios cheios com outras de menor dimensão e mais irregulares, as pachillas. Num tempo distante, uma armação em madeira era coberta por palha para formar o telhado, uma técnica ainda hoje em uso entre os quéchuas.

Inicio agora, juntamente com a família, o caminho de regresso, com a t’shirt de Sonia Morales sobre o corpo, e sinto que todos os olhares, entre os muitos peruanos que visitam Machu Picchu, a cobiçam, desviando o olhar das ruínas de um dos lugares mais mágicos do mundo, enquanto o meu se mantém fixo naquela magnificência tão fácil de sentir e tão difícil de explicar.

E quando passo a porta de acesso à cidade, encimada por um enorme monólito, parece que ouço a voz de Sonia Morales, como se fosse o eco de Machu Picchu. “Tomare para olvidarte/ Por que se que tu jamas volveras.”

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