Fugas - Viagens

De canoa entre as brumas do lago Bunyonyi

Por Filipe Morato Gomes (texto e fotos)

No Uganda, inspirados pelos múltiplos tons de cinza das brumas matutinas, cruzámos as águas tranquilas do lago Bunyonyi em canoas tradicionais e subimos e descemos as colinas em redor, em busca dos povos twa (batwa) e kiga (bakiga) e suas lendas. Localizado bem perto da fronteira com o Ruanda, o Bunyonyi começa aos poucos a entrar nas rotas turísticas no leste de África.

Cheguei a Kabale com um propósito bem definido. Queria conhecer o lago Bunyonyi a bordo de uma obwato, uma canoa tradicional esculpida em grossos troncos de eucalipto, e percorrer a pé as colinas que abraçam o lago, embalado pelas imaginativas lendas associadas às ilhas do Bunyonyi contadas como verdades absolutas pelos mais velhos habitantes da região.

Tinha esse plano desde que saí de Portugal, e a ideia saiu reforçada quando me encontrei com Miha Logan em Kampala, a capital do Uganda. Mentor da organização não-governamental Edirisa, baseada em Kabale, Miha possuía os contactos certos para que eu pudesse empreender a jornada.

Manhã cedo, saí de Kabale na companhia de Ande, um simpático ugandês de apenas 22 anos habituado a servir de guia no lago Bunyonyi, o muito prestável Comfort, braço direito de Ande, e um ocasional grupo de viajantes eslovenos que, beneficiando da nacionalidade comum a Miha, organizaram uma viagem semelhante ao que eu pretendia, embora mais curta. Para diminuir custos, juntei-me a eles.

À chegada às margens do lago, fui recebido por Miha numa pequena cabana de madeira onde nos foi explicado em detalhe o itinerário: o primeiro dia seria passado maioritariamente nas canoas, o segundo seria um dia de caminhada difícil com visita a uma comunidade da minoria twa (comummente referidos como batwa, que significa “os twa”, “gente da floresta” em proto-bantu) e, no terceiro, voltaria às canoas para visitar outras ilhas do lago, mas sozinho.

A entrada na canoa foi, digamos, periclitante. Porque era muito estreita. Porque parecia demasiado frágil. E porque abanava com qualquer movimento do corpo, o que fazia temer o pior para o futuro do equipamento fotográfico. Mas, ao fim de poucos minutos, observando a destreza com que os capitães (sim, chamam “capitão” ao timoneiro) manejavam os remos, sentia já segurança absoluta para começar a explorar as águas tranquilas do lago Bunyonyi.

A primeira paragem foi na ilha Bushara, uma das 29 ilhas que pontilham a paisagem do lago, para um retemperador refresco de maracujá num eco-resort básico instalado na ilha. Logo depois, a ilha Bwama, onde o missionário escocês Leonard Sharp fundou um hospital para leprosos em 1921 - em 2003 foi enterrado o último leproso e o hospital desactivado -, construiu uma igreja e uma escola secundária. Job, professor de Geografia, apresentou-nos a escola, não sem notar as enormes dificuldades com que os alunos se deparam em termos de material e condições de trabalho. Facto notório para o mais leigo dos viajantes ao entrar no “laboratório” de química, que mais não era que uma sala com meia dúzia de mesas onde repousava um conjunto de velhas pipetas e frascos com reagentes guardados num armário poeirento.

À vista estava a ilha Akampene (Punishment island), assim chamada por causa do seu passado macabro. Até meados do século passado, a gravidez pré-matrimonial não era de todo tolerada, pelo que as grávidas solteiras eram abandonadas à sua sorte na minúscula ilha Akampene. Não sendo comum saberem nadar e sem alimentos à disposição, a maioria acabava invariavelmente por perecer, à fome ou afogadas. As únicas sobreviventes deviam a sua sorte a homens pobres que, não tendo como pagar o dote para um casamento “normal” - dinheiro, vacas e cabras -, iam à ilha salvar uma destas grávidas para com ela casar.

“A prática de enviar grávidas para a ilha foi abolida em 1938 pelo missionário escocês Sharp, que começou a colocar na ilha os leprosos agressivos e perigosos”, explicou Comfort enquanto navegávamos em redor de Akampene, ainda antes de atracarmos demoradamente na ilha Njuyeera, mais conhecida por Sharp’s island por ser o local onde Sharp morou com a sua família quando não estava a trabalhar no hospital de Kabale.

Enquanto navegávamos a bordo das obwato em direcção ao extremo sul do lago, o sol já descia rapidamente atrás das montanhas, pelo que era tempo de ir ao encontro do calor de Mama Bena.

Lendas kiga em redor da fogueira

Quando cheguei a casa de Mama Bena, uma senhora de etnia kiga (bakiga) irradiando jovialidade e simpatia, fiquei imediatamente encantado. Era uma casa muito simples, sem electricidade nem água corrente, mas a promessa de boa comida, uma fogueira ao anoitecer e a genuína hospitalidade ugandesa, para além da localização privilegiada numa colina nas margens do lago, eram mais que suficientes para ultrapassar o desconforto.

Instalámos as tendas num relvado inclinado junto à pequena casa, enquanto os primeiros troncos de madeira seca foram sendo devorados pelas chamas numa fogueira em frente à casa de Mama Bena. A sua mãe, aparentando uns respeitáveis noventa e muitos anos e tapada com uma manta de cores garridas, observava sorridente a trupe de muzungus (homens brancos) que a iam cumprimentando, embora no seu íntimo – soube depois! – talvez estivesse triste. “É a primeira vez que um grupo fica em casa de Mama Bena desde que o pai morreu, há 2 meses; tinha 112 anos”, informou Ande.

Jantámos iluminados pelo amarelado do fogo. “No meu tempo”, contou Comfort, “só os maiores de 18 anos - os menores de idade só se tivessem caçado e matado um animal feroz - se podiam sentar em volta da fogueira com os adultos. Era aí que se discutiam os assuntos da comunidade e se partilhavam histórias, transmitindo o conhecimento de geração em geração.” E assim a noite foi passada, agradavelmente, ouvindo da boca dos homens curiosas lendas do povo kiga passadas no lago Bunyonyi. Faltava apenas o pai de Mama Bena.

Manhã cedo, tendas desmontadas e pequeno-almoço tomado, dirigimo-nos para as canoas para uma curta travessia até Kyevu, uma pequena aldeia nas margens do Bunyonyi onde vendedores locais começavam a instalar um mercado ao ar livre que haveria de fervilhar por volta do meio-dia – tarde de mais para o poder visitar. Caminhámos entre o pó constante das estradas de terra batida na estação seca e, à nossa passagem, as crianças corriam e gritavam num inglês básico, excitadas, cantando em coro numa estereofonia oriunda de todos os lados: “Au-ae-iu? Au-ae-iu? Au-ae-iu?” (how are you?). Por vezes, escondidos na vegetação, ouvia os cumprimentos vindos das colinas e vales sem ver vivalma nem perceber quem os proferia.

Twa, o povo sem terra

Estávamos a 100 metros de um ribeiro que serve de fronteira com o Ruanda quando Ande indicou um pequeno trilho colina acima: “Vamos visitar uma comunidade batwa”. Nómadas habitantes das florestas, o povo twa (batwa) - os “pigmeus” do Uganda - dependia inteiramente da floresta para sobreviver. Mas foram expulsos do seu habitat natural. Primeiro, empurrados pela tribo kiga (bakiga), agricultores, para territórios cada vez mais reduzidos, à medida que os kiga iam destruindo maiores porções de floresta para os seus terrenos de cultivo. Depois, com a criação de zonas protegidas, como a Floresta Echuya ou os parques naturais da Floresta Impenetrável de Bwindi e de Mgahinga, os twa foram definitivamente desapossados do seu meio natural. Actualmente, são um povo sem terra. Retirados da floresta e sem autorização para nela caçar, não têm forma de subsistir.

Vi as minúsculas cabanas onde habitam sem o mínimo de condições, enquanto o líder da aldeia explicou as dificuldades do seu povo, demonstrou a perícia com que usam arco e flecha de madeira para caçar animais e mostrou algum artesanato muito simples que poderíamos comprar. “Ao invés de pedirem dinheiro aos turistas, eles agora fazem este artesanato para vender e poderem fazer algum dinheiro; é uma forma de ajudarmos os batwa”, explicou Ande. Comprei uma pulseirinha.

Continuamos a caminhar até chegarmos à base da colina Karembe preparados para pelo menos uma hora de sofrimento. Era, pois, altura de empreender a parte mais dura da viagem. Subimos, subimos e subimos ao longo de um trilho de cabras acidentado e com enorme declive, parando a espaços para beber água, descansar e retemperar energias nas sombras existentes. O grupo dividiu-se com naturalidade à medida que as dificuldades aumentavam e, quando cheguei ao topo de Karembe, já Ande e alguns eslovenos estavam refastelados no capim a descansar. O sol estava no seu pico máximo, mas meio litro de água e as vistas deslumbrantes sobre o lago amenizaram de alguma forma o cansaço. Daí para a frente, seria sempre a descer até um pequeno aglomerado de casas onde o grupo Habuhinga Bakiga demonstrou as suas danças tradicionais. Logo a seguir, de novo junto às margens do Bunyonyi, separei-me dos eslovenos: para eles a viagem estava terminada; eu seguia com Ande para casa de Tom. Um personagem.

Afável e bom conversador, Tom habita a única ilha pertença de habitantes locais, tendo ele a maior parcela de terreno; todas as outras ilhas do lago Bunyonyi pertencem a homens de negócios endinheirados ou investidores hoteleiros. “O meu pai podia tê-la vendido antes de morrer e não o fez, preferiu deixá-la aos filhos para termos onde ficar. Se eu agora a vendesse, para onde ia morar?”, justificou. Não por acaso, a ilhota chama-se precisamente ilha de Tom.

Tenda novamente montada, fogueira de novo acesa e o jantar cozinhado pelo próprio Tom quase pronto, eis que aparece Eric, com a sabedoria dos seus 88 anos e um instrumento tradicional nas mãos com remotas semelhanças a uma harpa. De estômago cheio, o ancião tocou e cantou para meu deleite e gáudio da esposa de Tom, que não resistiu a uma dança solitária junto à fogueira. Antes de recolher à tenda, Eric ainda teve tempo de contar algumas lendas – a sabedoria popular de anciões como Eric é algo extraordinário – e me garantir que o seu pai e avô “viram com os seus próprios olhos” a ilha em frente “virar-se ao contrário”. Já lá vamos.

De volta às canoas

Acordei cedo, olhei para o lago e mal podia acreditar no que se desenhava diante dos meus olhos. Era como se um talentoso pintor estivesse a pintar com aguarelas a paisagem à minha frente com uma paleta de inúmeros tons de cinza: o céu, o lago, as colinas em redor, o arvoredo, uma canoa que vagarosamente vinha em minha direcção. Fiquei mudo e quedo, observando a canoa, único ponto preto no horizonte, aproximar-se da ilha. Estava num ponto elevado da ilha tendo Tom como cicerone. Às tantas, apontou para a ilha vizinha e começou a contar uma curiosa história.

Reza a lenda que um grupo de 20 homens estava a produzir cerveja omuramba, a cerveja local feita de sorghum, quando uma velha mulher passou pela ilha Bucuranuka (Upside Down Island) e pediu um gole de cerveja. Os homens recusaram de forma rude (não era suposto as mulheres beberem) e disseram-lhe para ela “desaparecer” da sua vista. Ela então pediu a alguém que a transportasse para a margem do lago, coisa que os homens concordaram porque queriam ver-se livres dela. Encarregaram um jovem de o fazer e, mal ele a deixou em terra firme, a ilha virou-se ao contrário afogando todos os homens que a tinham maltratado, com excepção do jovem - e de uma galinha.

Não faltam lendas do género na região do lago Bunyonyi e, aparentemente, boa parte delas incluem uma velha mulher com poderes sobrenaturais que vira ilhas do avesso ou cria ventos tão fortes e ondas tão grandes capazes de arrasar todo o lago. Sem ninguém no horizonte, as águas continuavam tão tranquilas como sempre as vi. Não tardei muito a chegar a terra firme para um divinal almoço num dos resorts do lago, forma ideal de terminar quase três dias de descoberta e esforço físico, à medida que o dia se foi tornando adulto e os múltiplos tons de cinza deram lugar a um sol inclemente.

Na minha cabeça, tudo continuava ainda pincelado de cinzento. Jamais esquecerei os momentos que passei sentado numa canoa obwato no meio de uma obra-prima pintada pela natureza nesta manhã de brumas no lago Bunyonyi. Nem a simpatia de gente como Mama Bena, Eric ou Tom. Mais do que o esforço para vencer a colina Karembe, é isso que fica de três intensos dias passados no Bunyonyi.

 

Guia prático

Como ir

Não há voos directos entre Portugal e o Uganda ou Ruanda, mas várias companhias aéreas, incluindo a KLM, a British Airways, a Emirates e a Turkish Airlines voam de Lisboa para Entebbe (aeroporto que serve Kampala) ou Kigali, por preços mínimos actualmente a rondar os 700€-800€, ida e volta. A partir de Kampala, há vários autocarros que fazem a ligação a Kabale, a principal cidade nas proximidades do lago. Partem normalmente entre as 7h e as 8h, com preços a rondar os 25.000 shillings ugandeses (cerca de 7€, oito horas de viagem), e há várias companhias a operar a rota; recomendamos a Post Bus, que sai do edifício principal dos correios ugandeses, na Kampala Rd (convém comprar bilhete na véspera, ou chegar por volta das 6h30).

Tendo por objectivo combinar o Ruanda com uma visita à região sudoeste do Uganda, aterrar em Kigali é uma opção a considerar. A partir de Kigali, no Ruanda, a viagem de autocarro para Kabale é mais rápida mas implica atravessar a fronteira terrestre em Katuna e pagar dois vistos (Uganda e Ruanda – sendo que este último não pode ser obtido no aeroporto). Uma vez em Kabale, o lago Bunyonyi é facilmente acessível usando táxis ou boda bodas (motorizadas).

Para fazer as actividades referidas na reportagem, usei os serviços da Edirisa (“janela”, na língua local – www.edirisa.org): os canoe trek de dois ou três dias custam 140 dólares (cerca de 112€) e 185 dólares (cerca de 148€) por pessoa, respectivamente, para grupos de cinco ou mais pessoas com todas as refeições e dormida em tendas. Os preços aumentam para grupos de menor dimensão.

 

Onde ficar

Em Kabale, as opções mais populares no segmento económico são os hostels Home of Edirisa e Kabale Backpackers, situados praticamente lado a lado no centro da cidade. São simples, mas cumprem a sua função.

Nas margens do lago, a oferta é mais vasta do que seria imaginável para tão remoto destino turístico. Entre os resorts instalados junto a Bunyonyi, ressalva especial para o Birdnest@Bunyonyi Resort, que propicia igualmente refeições deliciosas. Opções mais económicas incluem o Nature’s Prime Island, o Bunyonyi Overland Resort e o Bushara Island Camp, propriedade da Igreja do Uganda. Finalmente, vale ainda a pena verificar os recomendados Jajama Panorama e Craterbay Cottages.

Gastronomia

O Uganda não é propriamente conhecido pela sua diversidade gastronómica, tendo como uma das poucas especialidades verdadeiramente ugandesas o chamado rolex, uma omeleta enrolada em chapatti muito popular nos vendedores de rua. De resto, a comida local é muito simples e inclui frequentemente arroz, feijões, matoke (uma espécie de puré de banana, muito saboroso) e um molho feito com amendoins.

Compras

Há artesanato muito básico feito pelas populações locais (como pequenos cestos, pulseiras e brincos), regra geral feito com fibras de bananeira e outras plantas, que vale a pena adquirir não tanto pela sua espectacularidade, mas mais pelo facto de essa ser uma forma de ajudar as comunidades, proporcionando uma pequena fonte de rendimento a etnias como os twa ou os kiga. Os preços variam entre os 2.000 e os 10.000 shillings (cerca de 3€).

Vistos

Para os nacionais da maioria dos países, Portugal incluído, o visto do Uganda é facilmente obtido à chegada ao aeroporto de Entebbe, não sendo necessário qualquer formalidade prévia. Custa 50 dólares (perto de 40€), pagos na moeda norte-americana no próprio controlo de fronteira.

Dinheiro

Apesar de haver ATM na maioria das cidades e de o euro ser aceite nas casas de câmbio do Uganda (um euro vale sensivelmente 3400 shillings), convém ainda assim transportar dólares norte-americanos em dinheiro, uma vez que o visto, alguns tours e até a permissão para visitar os gorilas de montanha em Bwindi – que não dista muito do lago Bunyonyi - devem ser pagos em dólares. Note que, regra geral, no Uganda só se aceitam notas emitidas a partir de 2006; leve de preferência notas de 50 ou 100 dólares.

Mais informação

O esloveno Miha Logar e a sua equipa na já referida Edirisa criaram o interessantíssimo guia Gorilla Highlands, disponível em formato ebook para iPad. Ao invés de se focar no ponto fulcral do turismo do sudoeste do país – os gorilas de montanha -, o ebook está estruturado para “fornecer um olhar aprofundado sobre as culturas, línguas, pessoas e natureza que fazem desta região do Uganda uma região tão especial”. Custa 15 dólares (12€) e pode ser adquirido em www.gorillahighlands.com; há também uma versão reduzida em pdf, gratuita.

Na Internet

Para complementar o planeamento da viagem ao Uganda, visite os sites da Uganda Community Tourism Association e da Pearls of Uganda, organizações que apoiam e promovem experiências culturais com impacto positivo nas comunidades locais, de que são exemplo caminhadas guiadas pela minoria twa (batwa) e homestays com famílias locais.

Filipe Morato Gomes é jornalista e escritor de viagens, editor do site Alma de Viajante

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