Desde Lisboa que viemos numa dança com o Tejo, que ora surge lânguido ao nosso lado ora se esconde atrás de montes e enseadas escarpadas, ora corre lá em baixo ora quase toca nos carris, cada vez mais magro, mais pequeno, como se estivesse a andar atrás no tempo. Na verdade, haverá um quê de recuo histórico neste passeio até terras raianas do Alto Alentejo, com visita a diversos espaços cujos tempos áureos decorreram há muito, vivendo agora uma nova vida com o turismo.
Lá fora, rio e comboio continuam o seu jogo serpenteante, que um céu instável de Outono ajuda a compor. Cá dentro, dividimo-nos entre as paisagens que deslizam à janela, o corpo embalado no ritmo das composições, as conversas de quem se cruza pela primeira vez.
“Digo a brincar que conheci o Mateus no Quénia porque era onde ele estava quando comecei a seguir a viagem dele no blogue [De Cabo a Cabo]”, conta Francisco, os 70 anos desenhados no rosto enrugado e no cabelo grisalho cortado rente, ainda a esconder a energia que há-de contagiar o fim-de-semana. Francisco fala de Mateus Brandão, agora sentado a seu lado na carruagem.
O guia de viagens da Nomad e aficionado pelo mundo ferroviário (que em 2011 fez a sua primeira grande viagem, do Cabo Norte, na Noruega, à África do Sul) é quem nos conduz por esta inaugural Escapadinha de Comboio (a próxima decorre a 13 e 14 de Dezembro), organizada em parceria com a Train Spot Guesthouse, unidade de turismo que nasceu no ano passado na antiga estação de Marvão-Beirã.
Com o Ramal de Cáceres inactivo desde 2012, é de carro que ali chegamos, já de noite, num programa que, apesar de tudo, se delineia sobre carris. Ida e volta no comboio regional da Linha da Beira Baixa — “uma das mais belas de Portugal”, defende Mateus — e dormida numa estação fronteiriça centenária, recheada de histórias ferroviárias de outros tempos, onde não faltam relatos de contrabando, conspirações e ligações aos dois lados da II Guerra Mundial. Pelo caminho, muitas paragens, a primeira no Castelo de Almourol, que Maria de Lurdes abre agora, iniciando as visitas da tarde. “Sou a princesa do castelo”, ri-se.
A fortificação localizada no concelho de Vila Nova da Barquinha reabriu ao público este Verão, depois de oito meses de obras. Desde então, Maria de Lurdes faz as honras do castelo: destranca as pesadas portas de madeira, veste o traje dos templários e toma conta da banca de souvenirs, entretendo-se com os trabalhos de renda nas horas vagas e brindando quem chega com uma interpretação livre e humorada das lendas e histórias da ilha-castelo.
A que hoje nos conta fala de uma da princesa que gostava de um mouro, mas que o pai queria casar com o filho do alcaide e por isso prendeu-a ali. “Ela gritou lá de cima ao mouro: ‘Piada, piada’ — que significa presa em português antigo —, então ele fez um laço, ela conseguiu fugir e foram felizes para sempre”, conta Maria de Lurdes. “É por isso que a aldeia do outro lado do rio se chama Arrepiado”, conclui, atribuindo o masculino da palavra ao machismo existente na altura. Depois, continua, em 1129 “Afonso Henriques apanhou isto tudo aos mouros” e entregou-o à Ordem dos Templários, que o reconstruiu em 1171, data inscrita sobre o portão principal.
A fortaleza, que se ergue no alto de um ilhote em pleno Tejo, é hoje um dos monumentos mais emblemáticos da época da Reconquista cristã e um dos que melhor evoca a presença dos Templários no país, testemunho da arquitectura característica da ordem: plantas quadrangulares, muralhas elevadas rematadas por merlões e seteiras, o conjunto dominado por uma torre de menagem.
É lá no cimo que nos demoramos, mergulhados na paisagem. O espelho de água desenha um ziguezague no vale verde, tão adormecido que nascem pequenas línguas de areia ao centro e pelas margens. Um riacho pedregoso sai do Tejo só para dar forma à ilha de Almourol, unindo-se ao leito principal logo em seguida. Atrás surge a linha de comboio, onde regressaríamos pouco depois, no apeadeiro de Tancos.
O primeiro troço do então denominado Caminho de Ferro da Beira Baixa foi inaugurado em 1891, com o objectivo final de ligar o Entroncamento à Guarda (actualmente termina na Covilhã, com a secção posterior encerrada), percorrendo o centro do país, primeiro paralelo ao Tejo, depois subindo pelo interior ao largo da serra da Estrela. E é quando ele se despede das margens do rio mais extenso da Península Ibérica que nos apeamos também, não sem antes nos debatermos por um lugar à janela para a melhor perspectiva das imponentes Portas de Ródão. Duas paredes escarpadas e rochosas emergem do verde dominante para entrincheirar o leito do rio, que ali se encolhe como o tempo num relógio de areia.
Já é noite caída e por isso não subimos ao Castelo de Ródão antes de nos fazermos à estrada até Marvão. Continuassem os longos dias veraneantes e teríamos galgado os dois quilómetros rumo à fortificação, para uma perspectiva altaneira daqueles abismo naturais que apertam o Tejo, quem sabe avistar um dos grifos que habita aqui a maior colónia desta espécie em Portugal, enquanto percorremos os vestígios do castelo do rei Wamba e ouvimos as suas lendas.
Conta o povo que a mulher do visigodo se terá apaixonado pelo rei mouro que habitava na outra margem e este, para a resgatar, tentou construir um túnel por debaixo do rio, mas acabou por surgir acima das águas. O rei Wamba descobria assim a finalidade do buraco e decidiu oferecer a mulher ao inimigo, atando-a à pedra de uma mó e rolando-a encosta abaixo. Segundo a lenda, a vegetação não voltou a nascer no sítio por onde a pedra passou e o túnel ainda hoje lá está. Mitos que podem ser testados na próxima edição do passeio, cujo percurso foi ligeiramente alterado, terminando desta vez aqui a rota casteleira, antes do regresso a Lisboa.
Sem o sol do nosso lado, é debaixo de um manto de estrelas que vamos balançando o corpo entre curvas cada vez mais apertadas à medida que enveredamos pela serra de São Mamede. “Quando virem uma luz amarela à vossa direita, é o castelo de Marvão”, indica Humberto, dono de uma empresa de aluguer de automóveis antigos que faz de nosso motorista este fim-de-semana. Dobramos a estrada e ela surge cor de azeite lá em cima. Chegámos.
Uma estação centenária
“O nosso avô era servente primeiro, fazia de agulheiro e tratava das bagagens, e tinha uma casa ali atrás da igreja”, aponta Paulo, indicando a zona de canaviais do outro lado da linha. Hoje o regresso à estação de Marvão-Beirã faz-se novamente em família, já não à casa dos avós mas ao novo projecto da prima, Lina da Paz, que gere a Train Spot juntamente com o marido, Eduardo. “Lembro-me de virmos para aqui brincar, passávamos aqui as férias”, conta. “Vinha de comboio ter com os meus avós e descia aqui na estação”, recorda Lina.
É sob o tilintar ensurdecedor e insistente do sino da igreja, que chama os fiéis da freguesia à missa de domingo, que o grupo vai passeando pelos edifícios e percorrendo as seis linhas de carris, numa cronologia de histórias contada ora por Eduardo, Paulo ou Mateus. Erguida durante a criação do Ramal de Cáceres no final do século XIX — construído para estabelecer a ligação mais rápida entre Lisboa e Madrid —, a estação de comboios de Marvão-Beirã era a última paragem portuguesa antes da fronteira com Espanha. Posição que a tornaria num importante posto ferroviário durante o Estado Novo, com obras de expansão que lhe deram a configuração que mantém até hoje.
O edifício principal (para já encerrado a visitas ao interior) ainda tem intactos os painéis de azulejos assinados por Jorge Colaço (autor de obras semelhantes na estação vizinha de Castelo de Vide ou no átrio da Estação de São Bento, no Porto), onde se sucedem algumas das principais atracções do país: Lisboa, Évora, Nazaré, Tomar, Figueira da Foz e Marvão, entre outros. A separar cada painel, portas de madeira e quadriculados de vidro onde ainda se lê cada função: despachos/bagagens, fiscalização de passaportes, custom-house, alfândega aduaneira, guarda fiscal... É da mesma altura a criação de uma delegação da PIDE ali perto e do restaurante, ao lado do edifício principal, onde era possível comer e pernoitar, hoje transformado na guesthouse.
Foi junto à imponente lareira da antiga sala principal do restaurante, agora zona de convívio da Train Spot, que na noite anterior ouvimos as histórias de conspirações e reuniões de espiões, do contrabando “para onde se tinha de virar a população no Inverno”, da passagem de judeus em fuga durante a II Guerra Mundial e da saída, em direcção contrária, de “muito volfrâmio para a Alemanha nazi”. “A estação foi o que fez crescer a vila. No século XIX todos aqui trabalhavam, directa ou indirectamente”, contava Eduardo.
Agora, com os pés sobre os carris — onde pedras, ferro e madeira lutam contra a chegada da vegetação —, os olhos estão postos na casa senhorial existente do outro lado. “Pertence à família que era dona deste segmento do caminho-de-ferro e que tem, por isso, a única entrada directa para a linha”, contam, apontando para o portão, cujo acesso ainda desce até aos carris por entre o verde.
Com a abertura das fronteiras europeias, passados mais de 120 anos de actividade ferroviária e aduaneira, o ramal, e consequentemente a estação de Marvão, foram perdendo importância. O último comboio regional partiu de Beirã em direcção a Torre das Vargens, na Linha do Leste, a 31 de Janeiro de 2011. Em Agosto do ano seguinte, passava pela última vez o Lusitânia Comboio Hotel (que actualmente faz a tradicional ligação nocturna entre Madrid e Lisboa na Linha da Beira Alta), marcando o encerramento do Ramal de Cáceres.
Topo do mundo, leito do rio
“De Marvão vê-se a terra quase toda”, escrevia José Saramago em Viagem a Portugal, resultado de um périplo nacional publicado em 1981. Estamos no topo do topo da serra de São Mamede, a quase 900 metros de altitude, e são as palavras do Nobel português que ressoam à medida que as amplas vistas giram a 360º. Aqui é quase impossível resistir ao adágio deixado pelo escritor: “Compreende-se que neste lugar alto da torre de menagem do castelo, o viajante murmure respeitosamente: ‘Que grande é o mundo’”.
Deste lado, o olhar alcança rapidamente Espanha, avistando-se Valência de Alcântara ou Cáceres, que deu nome à linha ferroviária, mas também a mais distante cidade de Albuquerque. Daquele lado, a norte, a paisagem vai ondulando em montes sucessivos, só interrompida pela serra da Estrela lá ao fundo, a mais de 100 quilómetros de distância em linha recta. Vislumbra-se o delineado da serra da Lousã, a cidade de Castelo Branco e, mais perto, o casario de Castelo de Vide, entre outras localidades que irrompem aqui e ali no manto verde e cinzento. “Costuma-se dizer que cá em cima se vêem as andorinhas de costas”, conta Sofia, uma das passageiras desta escapadinha.
É íngreme a subida pelas ruas sinuosas da vila, que vão correndo paralelas à crista rochosa em direcção ao castelo. Um chão de pedras cinzentas a combinar com o bordado de portas e janelas vai desenhando a malha urbana amuralhada, a maioria das casas caiadas de branco imaculado e de arquitectura alentejana. Por vezes, surgem janelas manuelinas, traçados góticos, passagens entre edifícios que criam arcos nas ruas empedradas, diversas peças feitas com o granito local.
A meio caminho, visitamos a Torre do Relógio e Prisões, transformada numa oficina e loja de artesanato com uma minúscula ala museológica onde se replica uma antiga sala de aula. Não faltam o quadro de ardósia, os velhos mapas de parede, as carteiras pregadas ao acento e a fotografia de Marcelo Caetano.
Embora não seja claro se terão existido ocupações anteriores desta zona, a construção do castelo confundir-se-à com a própria fundação da vila, atribuída à figura de Ibn Maruán, que durante a revolta contra o Emirato de Córdova ali se terá refugiado e mandado erguer a fortificação, no século IX. Palco de importantes conflitos da história portuguesa, da Reconquista às Guerras Liberais, foi sendo transformado e adaptado ao longo dos séculos. Além da Torre de Menagem, é de destacar a cisterna principal, uma das maiores entre os castelos portugueses. Com 10 metros de altura e 46 de comprimento, acumulava água suficiente para seis meses e é hoje palco de inusitados concertos acústicos.
Depois de um almoço retemperador de sabores tradicionais alentejanos, ainda em Marvão, é ao Tejo que voltamos, que este passeio tem quase tanto de fluvial quanto de ferroviário. Iniciamos o percurso do Trilho das Jans ao largo de mais um castelo, em Amieira do Tejo, mas desta vez não há tempo de entrar.
Estamos em contra-relógio relaxado q.b., o tempo medido na luz solar que ameaça desaparecer antes de chegarmos ao destino e no comboio que ainda teremos de apanhar na outra margem do rio, após novo serpenteado de curvas. Rapidamente deixamos o rendilhado urbano da pequena freguesia e enveredamos por entre terrenos baldios, campos agrícolas, vinhedos, estevas, giestas, sobreiros, medronheiros e cogumelos.
Do cimo do cerro já se avista o curso de água e a barragem do Fratel. As vistas panorâmicas antecedem a descida acentuada até ao leito do rio, que porá à prova os participantes menos habituados a estas andanças. Chegados à margem, é percorrer os três quilómetros de piso empedrado até Barca da Amieira, onde pequenas embarcações faziam em tempos a travessia.
O muro de sirga corre paralelo ao Tejo, acompanhando o ondular submisso do rio entre o vale xistoso. Foi outrora essencial à navegação até Vila Velha de Ródão, para rebocar os barcos a partir da margem, utilizando grossos cabos de sisal, que deram origem ao nome destes muros. Hoje em dia, faz parte do Trilho das Jans, que terminamos no parque de merendas. O final bucólico merecido, antes do regresso à Linha da Beira Baixa e à agitação do dia-a-dia lisboeta: café acabado de fazer numa garrafa de gás portátil, vista sobre o calmo Tejo, uma leve névoa de final de tarde a dissipar a luz dourada do sol já escondido atrás das encostas de pinheiros.
Escapadinha de Comboio Lisboa-Marvão-Lisboa
O próximo programa de fim-de-semana decorre a 13 e 14 de Dezembro, com viagem de comboio regional pela Linha da Beira Baixa, visita aos castelos de Almourol, de Marvão e de Vila Velha de Ródão e estadia na Train Spot Guesthouse. Custa 180€ por pessoa, incluindo viagens, refeições, visitas e estadia. As inscrições (mínimo de 7 participantes e máximo de 16) terminam a 8 de Dezembro.
Dormir
Train Spot Guesthouse: Dormir sobre carris