Fugas - Viagens

  • Praia em Lima
    Praia em Lima Enrique Castro-Mendivil/Reuters
  • Convento de São Francisco, Lima
    Convento de São Francisco, Lima Enrique Castro-Mendivil/Reuters
  • Praça de San Martín, Lima
    Praça de San Martín, Lima Mariana Bazo/Reuters
  • Huaca Pucllana
    Huaca Pucllana Mariana Bazo/Reuters
  • Varandas “gaudíanas“ de Miraflores
    Varandas “gaudíanas“ de Miraflores Pilar Olivares/Reuters
  • Praia de Agua Dulce, no distrito de Chorrillos, Lima
    Praia de Agua Dulce, no distrito de Chorrillos, Lima Enrique Castro-Mendivil/Reuters

Lima não tem tempo para ser triste

Por Andreia Marques Pereira

“Rainha do Pacífico”; “Lima, a horrível”. A capital peruana não é dada a meios-termos: ou se ama ou se odeia, dizem. É uma questão de como se olha, dizemos nós, que tivemos direito a um (inesperado) segundo olhar sobre esta cidade que em pleno boom económico está sempre em hora de ponta.

Construída em camadas de história e de modernidade, entre pirâmides e arranha-céus, Lima é para todos e não é para ninguém. Tivéssemos nós mais tempo, até poderíamos chegar a amá-la.

Herman Melville disse que Lima era a cidade mais triste que se pode conhecer. Ou melhor, pôs esta reflexão na cabeça de Ismael, o protagonista de Moby Dick, quando este desmontava a natureza e o simbolismo (aterrorizador) da cor branca, a mesma da baleia que perseguia:

“E Lima tomou o véu branco; e há um horror maior nesta brancura da sua desgraça. Tão antiga como Pizarro, esta brancura mantém estas ruínas para sempre novas; não admite o alegre verdor da decadência total; espalha sobre as suas muralhas quebradas a rigidez pálida de uma apoplexia que corrige as suas próprias distorções.”

O branco em Lima era o céu, permanentemente coberto pela garúa (“garoa” no Brasil, onde é associada a São Paulo) como chamam a esse manto que envolve (quase) constantemente a cidade (entre Janeiro e Março, no Verão, portanto, abre) devido a condições atmosféricas especiais, resultantes do encontro das correntes oceânicas com a cordilheira dos Andes. Agora, o branco do céu limenho só perdura sobre o oceano, sobre a cidade o céu é de um cinzento quase imutável, produto da poluição atmosférica (um relatório da Organização Mundial de Saúde coloca Lima no topo das cidades mais poluídas da América Latina).

E agora Lima não tem tempo para ser triste, embora se mantenha solitária entre o oceano Pacífico e a cordilheira dos Andes, o deserto a norte e sul. Os ventos da mudança chegaram ao Peru, que apaziguou as suas tensões políticas e encontrou uma bonança económica que está a provocar um formigueiro por todo o país com reflexos óbvios na sua capital.

Depois de anos sentindo-se como um patinho feio, Lima está fervilhante de projectos e esperança e, nesse processo, a recuperar a auto-estima da cidade que foi capital do poderoso vice-reino do Peru. Não é um processo simples, há uma história muito mais recente que é necessário ultrapassar, aquela que Mario Vargas Llosa, o prémio Nobel da literatura peruano, resumiu na abertura do seu Conversa n’ A Catedral, com a interrogação “Em que momento se fodeu o Peru?”. Ainda que de lá (o livro foi publicado em 1969) para cá muita coisa tenha mudado, houve, contudo, tempo de continuar a procissão de golpes de estado, governos militares, ditaduras, corrupção, guerrilhas, atentados.

Mas vamos a Lima, então. E não nos custa assumi-lo: não é uma cidade fácil. E é banal mencioná-lo em grandes metrópoles, mas tudo começa no trânsito, que é babelesco. “Na hora de ponta”, sublinha o nosso guia. E quando é a hora de ponta?, queremos saber. Uma pausa para reflectir. “É sempre.” Por isso o tempo foge-nos em Lima, escapa-se-nos nos intermináveis minutos que passamos no bailado louco do tráfego, quando as ruas e avenidas de repente ganham faixas de rodagem e quando pensamos que já estamos milagrosamente espremidos, lá vem um veículo inventar espaços vazios.

E se vemos sinais a proibir buzinas sabemos que não são mais do que curiosidades para turistas; quase como as passadeiras, avisam-nos — os limenhos tomam-nas como sugestões. O que não parece sugestão são os traga-monedas, os casinos, que são um dos traços mais constantes da paisagem da cidade: pela quantidade deles, os limenhos gostam mesmo de jogar e, a julgar pela arquitectura, os traga-monedas gostam de ser kitsch.

Dizem, portanto, que Lima se ama ou se odeia — se calhar podemos atentar nos cognomes com que tem sido brindada ao longo dos seus cinco séculos de vida: “cidade dos reis”, “cidade jardim”, “rainha e pérola do Pacífico”, mas também “Lima, a horrível”. Nós não chegamos a odiá-la e não conseguimos sacudir a sensação de que se tivéssemos mais tempo poderíamos até amá-la.

São as virtudes das segundas oportunidades: inesperadamente ganhámos uma noite e um dia extra na capital peruana e com eles um novo olhar que até queríamos prolongar. Quem diria que perdermo-nos em Barranco ia ser tão inolvidável que acabaríamos a voltar, de olhos bem abertos, para encontrarmos Kate Moss e Brad Pitt? Até a princesa Diana apareceu, do baú mítico da sua iconografia. De misticismos e bruma também se faz Lima, o tal manto sob o qual prédios convivem com pirâmides pré-colombianas (e pré-incas).

Pelo meio, a cidade de Francisco Pizarro, o criador de porcos, como todos aqui nos lembram: o desprezo pelo colonizador mas não pela cidade colonial, o coração da metrópole de nove milhões de habitantes que é também a segunda cidade mais seca do mundo. E, como tantas na América Latina, construída em equilíbrios delicados —  e não falamos (apenas) dos terramotos que a assolam desde sempre (deve ser das poucas cidades do mundo onde um apartamento no primeiro andar é mais caro do que nos seguintes: porque é mais fácil sair em caso de tremor de terra) — Lima é construída em camadas de privilégios e desvantagens, de história e de modernidade, de solidez e precariedade.

Descobri-la é um desafio, é como descascar uma cebola, vamos tacteando com cuidado e com paciência para perceber que as aparências enganam e que afinal o que se vê de longe como um amontoado caótico e anódino revela um carácter próprio que merece mais do que ser a obrigatória porta de entrada no país a caminho de Machu Picchu e de outras zonas do interior peruano.

Fusão peruana

Há um fumo ténue na rua escura iluminada a espaços por candeeiros amarelos e pelas luzes dos letreiros de algumas lojas. Já são poucas as pessoas que circulam e nós aproximamo-nos dos vultos, na sombra de um edifício fechado. Há uma chapa de alumínio onde se cozinha algo que a escuridão mantém mistério. “São antichuchos”, diz-nos a velhota que os prepara. “Corazón de rés”, explica perante a nossa ignorância. Vê-se que não quer conversa — pouco mais de uma hora depois já não há rasto dela nem do seu carro-assador e a rua está deserta.

Nós, entretanto, havíamos procurado um local para relaxar de um dia passado num aeroporto da Amazónia peruana, com pouco sucesso. Por mais indicações que nos dessem, e foram vários os que se esforçaram, quando finalmente chegámos à rua onde haveria mais locais noctívagos, parece que ainda trazemos agarrada a maldição que nos levou a ver um voo cancelado e outro várias vezes adiado, porque à medida que avançamos tudo vai fechando, até a cervejaria em que tínhamos depositado tanta esperança. E já que caminhamos tanto, vamos até à Praça San Martín e espreitamos o Hotel Bolívar, mas o bar também fechou. Nesta zona, já há movimento, trânsito, mesmo se já passa da meia-noite e terça-feira já é, oficialmente, o dia seguinte. A avenida brilha de luzes nas fachadas, seguimos encandeados por elas em busca de um bar mas desistimos em pouco tempo e rendemo-nos ao que existe em abundância — as pollerias, que dominam o centro de Lima.

É curioso descobrir a “loucura” limenha pelo frango na brasa; como é curioso descobrir os antichuchos, coração de vaca grelhado (a la parrilla), que vêm acompanhados de “papa, choclo e salsa de ají” (que é como quem diz, batata, milho peruano tamanho XL e molho de pimentos ají, que, nas suas variedades, é a alma, dizem, da cozinha peruana), numa cidade que nos últimos anos se viu no pedestal da cozinha internacional.

Nem uns nem outros fazem parte da armada gastronómica peruana que tem conquistado o mundo, mas ajudam a perceber como a cozinha peruana é o espelho de um país multicultural, de que Lima é o principal palco — e é de Lima que se está a fazer a fuga para a frente neste país hesitante em assumir a sua diversidade, que é, bem vistas as coisas, um dos seus trunfos.

Afinal, Lima é uma cidade fundada por espanhóis absorvendo a sociedade inca aqui instalada (que por sua vez havia aglutinado outros povos antigos habitantes do vale do rio Rímac), que recebe um fluxo de escravos e, já no século XIX, de imigrantes da China e logo do Japão, para no século XX ser o porto de chegada da população vinda do campo. A gastronomia peruana lê-se neste caldo cultural misturando a cozinha japonesa (nikkei), com a chinesa (chifa), com a andina e inca, faz escala em África e não esquece a Europa, via Espanha — fusão é a palavra da moda, mas de que outra maneira qualificar a cozinha peruana? E voltamos, para completar a genealogia aos antichuchos, ascendência afro-peruana, e ao frango na brasa, uma novidade na paisagem gastronómica da cidade e prova, afirma quem sabe, da sua abertura a novas influências.

Se o chef Gastón Acurio, fama e tentáculos internacionais, é o profeta desta vanguarda, a sua raiz, a tradição peruana, não está só nos restaurantes e essa é a grande virtude de Lima. Os postos ambulantes de comida fazem parte do tecido urbano da cidade e neles todos os pratos típicos, desde o aclamado ceviche ao antichucho, que um jornal peruano elegeu como o melhor prato de comida callejera, passando pela “nova moda”, os ovos de codorniz, e pelos omnipresentes (e viciantes) chifles (rodelas de banana fritas, que são acompanhamento, aperitivo e snack, sendo vendidos inclusivamente já embalados à laia de batatas fritas), sem esquecer sobremesas, como o clássico mazamorra morada, que foram, aliás, as pioneiras na rua.

O movimento começa de manhã cedo, com o pequeno-almoço (indispensável o emoliente, bebida de cevada, linhaça, alfafa, ervas várias, muitas vezes a acompanhar um ovo frito), e vai acompanhando o ritmo da cidade que dorme com o antichucho, que começa a ser vendido ao final do dia. Se no exterior os restaurantes peruanos são paradigma da cozinha gourmet, em Lima a cidade é toda ela gourmet, e para todos os bolsos.

Há algo de que nos arrependemos na nossa passagem por Lima: apenas termos feito uma tímida incursão na comida de rua, formato sobremesa, no Mercado do Surquillo, também conhecido por mercado número um. O edifício está quase engolido pelas tendas que se montam nas ruas circundantes, onde se vende desde livros (e o mais recente Nobel da Literatura, Patrick Modiano, aparece em destaque) a roupas. Entrar nele é entrar num mundo de odores fortes, com a hortelã, orégãos e os coentros a serem identificáveis entre a abundância do desconhecido, que se exibe nas bancas onde se alinham de forma irrepreensível frutas, verduras e especiarias várias.

Organizado em circunferência, acompanhando a estrutura arquitectónica do edifício, vamos avançando nos semicírculos que rapidamente se transformam em labirinto para descobrir a carne, nas traseiras, o peixe mais central dividindo espaço com bancas de comida, com ceviche ou aguaditos (arroz “malandro”, que aqui se vê sobretudo de marisco e peixe). Estamos em alerta, porque o mercado é uma experiência de sinestesia completa e uma montra para a diversidade dos produtos autóctones de todo o país, abrangendo territórios tão diversos como a costa e os seus desertos aos lagos imensos, da selva amazónica aos picos andinos.

Se a gastronomia foi assumida como assunto de Estado no Peru, sendo uma bandeira política e de promoção turística, não surpreende que uma das mais recentes adições na capital seja a Casa da Gastronomia. Num museu que não enjeita as novas tecnologias lado a lado com representações cénicas, atravessamos cinco séculos de história do país contada em torno da cozinha (com um salto ao “bar” para descobrir a bebida nacional, o pisco). Aqui, dá-se ordem ao que vemos no mercado e à diversidade de produtos do país: por exemplo, 1500 variedades de batatas (e no Peru todos o sabem e dizem-no com orgulho), 35 tipos de milho, 500 frutas (nomes exóticos como lúcuma, chirimoya, pacay) e cereais diversos, entre os quais se destaca a quinoa, indispensável.

Jironear pela cidade colonial

E na Casa da Gastronomia, o antigo posto de correio central, estamos no coração da cidade de Lima, no seu centro histórico, chamado de Damero de Pizarro, aquele que decerto lhe valeu alguns dos seus outros epítetos como “A três vezes coroada vila” ou “Cidade de sinos e carrilhões” — há 42 igrejas nesta zona. A Plaza de Armas continua a ser o centro nevrálgico, mais que não seja porque aqui continua a funcionar o Palácio do Governo, também este uma síntese da história turbulenta do país: foi o palácio de Taulichusco, o último caraca (cacique) de Lima antes da chegada dos espanhóis, depois arrasado para construir a residência de Pizarro e reconstruído em 1920 depois de um fogo — nos últimos quase 500 anos (Lima foi fundada em 1535) foi o centro do poder político do país.

Havemos de voltar, mas no primeiro dia há um palco num dos cantos da grande praça, cujo centro é uma esplanada com retalhos de jardim, com palmeiras a conviverem com candeeiros de ferro forjado, organizada em torno de uma fonte imponente (que no Dia Nacional do Pisco Sour se enche da bebida). Não há multidões nesta sala de visitas ampla, rodeada de fachadas nobres e de edifícios coloniais, pintados de amarelo torrado com varandas em madeira escura e grandes arcadas — num deles, o do ayuntamiento, ergue-se a bandeira do Peru e a bandeira arco-íris do império inca (a confusão com a bandeira do movimento LGBT já levou alguns grupos indígenas a manifestar o desejo de a abandonar). A catedral e palácio arquiepiscopal situam-se do lado oposto da praça, rostos pétreos, solenes e majestosos — o portal da catedral, ladeado por duas torres, é elegantemente trabalhado, na mesma pedra escura do palácio contíguo, este armado por duas varandas de madeira maciça, fechadas; no seu interior repousa Pizarro.

Este é um bom ponto de partida para jironear pelas ruas (jirónes) em redor —  esticando-nos poderíamos chegar à Praça de San Martín, pelo Jirón de la Unión, uma espécie de espinha dorsal deste centro histórico que é património da UNESCO desde 1988. Não o caminhamos na totalidade e portanto não fizemos a união entre as duas praças mais emblemáticas da cidade, a primeira símbolo da herança colonial, a segunda símbolo da independência do Peru, tendo sido inaugurada no seu centenário, em 1921, e baptizada com o nome (e a estátua equestre) do libertador, José San Martín.

Curiosamente, o estilo arquitectónico desta é neocolonial com uns toques neoclássicos, o que lhe dá uma certa aura europeia, sobretudo nos edifícios de fachada branca, como o histórico Gran Hotel Bolívar (o nome é toda uma declaração de intenções: diante de San Martín só poderemos ter um Bolívar, terá dito o Presidente peruano, numa alusão aos movimentos independentistas da América do Sul) — declarado monumento nacional, foi outrora paradigma do luxo (foi fundado em 1924 e teve os dois primeiros elevadores do país), agora tem três estrelas; por aqui passaram reis, presidentes, estrelas da idade de ouro de Hollywood (Orson Wells bebeu 42 piscos sours seguidos, Ava Gardner passeou em vestido transparente, os Rolling Stones foram daqui expulsos); nós deixamo-nos deslumbrar pelo átrio neoclássico encimado por uma abóboda com vitrais como se estivéssemos na Paris do início do século.

Voltamos à Praça de Armas, para passar pelo Portal dos Escribanos e deambular por ruas pedonais ladeadas de restaurantes (em breve aqui será o “boulevard da comida peruana”), com o monumento a Taulichusco, uma pedra numa pequena rotunda de terra, canteiro de flores, e entrar na livraria Virrey de Lima. Entrando antes pelo Jirón de Carabaya seguimos entre a fachada lateral do palácio governamental e lojas de artesanato (com variedade infindável de produtos peruanos e bons preços, sobretudo se compararmos com Cuzco) em direcção à Casa da Literatura Peruana. Não entramos, ficamo-nos pelo Cordano, o café em frente, 109 anos bem contados, um charme fin-de-siècle decadente, com as madeiras gastas, e a melhor butifarra (sanduíche de baguete e fiambre peruano, grosso) da cidade (como é a única que provamos, não colocamos em causa a vox populi, entre elas a de uma portuguesa a viver em Lima).

É um dos monumentos incontornáveis da cidade e também nós vamos ao Convento de São Francisco. Somos recebidos por uma manifestação de funcionários da administração pública, controlada ao longe por meia dúzia de polícias: “Não temos reforma”, conta um dos manifestantes que trabalhou 20 anos no sector dos transportes e comunicações, “Fujimori prejudicou-nos e estes não nos ajudam.” Por isso, três vezes por semana manifestam-se, normalmente diante do congresso. “Por la unidad sindical”, lê-se em alguns cartazes; “CGTP”, lá como aqui, portanto.

No adro empedrado, rodeado de gradeamento, há vendedores ambulantes e mulheres com trajes típicos em busca de fotografias remuneradas. Diante de nós o edifício, construído entre 1542 e 1674, igreja e convento a desenharem um canto, a igreja a abraçar o convento do alto das suas duas torres. No convento, uma profusão de azulejaria (de Sevilha) recobre os claustros (bastante danificados pelo terramoto de 1974), cujo jardim tem árvores de lúcuma, uma das frutas nacionais, dos quais se acede à biblioteca (desde o século XVI reuniu 25 mil volumes — estes em boas condições, a sala, forrada de estantes com um primeiro andar em varanda, à espera do muito necessário restauro) e ao Museu de Arte do Vice-Reino; mas a estrela aqui são as catacumbas. As fotografias são proibidas no local que serviu de cemitério durante a época colonial e que nos seus corredores estreitos e baixos que desembocam em pequenas salas ainda exibem ossadas.

Estamos na órbita da capital do vice-reino, olhos bem abertos para antigas casonas, com as características varandas de madeira, muitas delas agora desprovidas da grandiosidade original, com funções bem mais prosaicas do que as de moradia da nobreza crioula: algumas foram recuperadas como espaços expositivos, outras para comércio. Jirón de la Uniõn, Jirón de Carabaya, Jirón Conde de Superunda, Jirón Lampa: jironeando por aí podíamos ser assaltados pela melancolia de tempos pasados, não estivessem as ruas em bulício total e com inesperada animação internacional — se nas ruas europeias a música peruana, feita de flautas andinas, é recorrente, nas ruas de Lima encontramos um grupo de rock argentino. E entre todo o comércio, um cabeleireiro ostenta na montra, um primeiro andar, uma fotografia de Cristiano Ronaldo.

De ouro e kama sutra

Afastarmo-nos do centro histórico não significa fugir da história em Lima. Ela emerge, ainda mais antiga, nos recantos mais inesperados como vulcões pouco adormecidos — não é à toa que escolhemos a imagem de vulcões, uma vez que as construções piramidais são constantes nestes vislumbres do passado, como objectos alienígenas entre a Lima moderna. Surgem como uma lembrança permanente de que o Peru pré-colonial nunca desapareceu completamente — como que a dar razão a Taulichusco: “Não vamos desaparecer”, disse aos súbditos quando lhes deu ordem para dispersarem no território na altura da chegada dos espanhóis.

Num país mestiço não chegamos a compreender se as velhas feridas ainda emanam sangue como o que escorria nestas huacas, santuários, em cerimónias aos deuses — certo é que podemos dizer de Lima o que Octavio Paz disse da Cidade do México: aqui “várias épocas se enfrentam, se ignoram ou entredevoram sob uma mesma terra ou separadas por uns quilómetros” (e se aqui há esta dinâmica, não muito distante da capital, a história está encapsulada em ruínas: a norte, Caral, a cidade mais antiga da América — 2600 a.C. e pirâmides coevas das egípcias —, a sul, Pachacamac – pacha, terra, qamac, alma, “alma da terra” na língua quéchua, esta cidade sagrada).

A Huaca Pucllana (o nome vem do quéchua pucllay, jogo: local para jogos rituais) é a mais bem conservada de Lima, onde se crê que existam 400, embora destas poucas estejam referenciadas e menos ainda conservadas. Mesmo as abertas ao público, não estão a salvo: Huaca Huallamarca, por onde passamos de carro, (ainda) tem um habitante na sua zona reservada que não se coíbe de estender roupa à porta do casebre.

Huaca Pucllana tem outro destino, se calhar mais condizente com o seu antigo estatuto de centro cerimonial e administrativo da antiga cultura lima, que ocupou este vale entre os séculos II e VII — tem direito até a um restaurante, onde almoçamos na esplanada coberta ao lado das ruínas. O complexo continua a ser escavado e nele destaca-se a sua pirâmide de 25 metros de altura construída em tijolos de adobe dispostos quase como livros expostos (a chamada “técnica de livreiro”, ideal para resistir a terramotos), está rodeada de outras mais pequenas, pátios e praças cerimoniais que terão visto muito sangue derramado — por exemplo, de cada vez que terminavam uma nova pirâmide, os lima celebravam com uma grande festa que incluía sacrifícios de mulheres da elite, em honra das divindades femininas. Esta huaca teve uma área de 20 ou 30 hectares, actualmente estão seis à superfície. O resto está engolido pelos prédios e casas do distrito de Miraflores, zona nobre da capital, onde na mescla arquitectónica que se desenha não falta influência britânica.

Nada melhor para despertar a curiosidade pelo passado pré-colonial e até pré-incaico de Lima do que uma visita ao Museu Larco. Está instalado num palácio colonial do século XVIII que foi construído sobre uma pirâmide do século VII, o que só em si nos dá uma síntese da cidade e do país. O seu acervo conta-nos a história do Peru pré-colombiano em 45 mil peças devidamente classificadas, entre elas alguns dos melhores exemplares em ouro e prata, sendo por isso uma boa alternativa ao Museu do Ouro.

Nos seus jardins luxuriantes, com buganvílias abundantes quase a technicolor, um outro edifício guarda, no entanto, o acervo que torna este museu diferente de outros que abordam o mesmo tema — a sala erótica, onde deparamos com uma espécie de kama sutra indígena, com centenas de estatuetas versão explicitamente x-rated, representando um catálogo erótico ecléctico.

Entre um e outro passamos pela história viva do Bosque do Olival, embora seja mais jardim do que bosque, agora que o distrito de San Isidro foi crescendo à volta das oliveiras trazidas de Espanha em 1560. É um dos locais preferidos para fotos de casamentos e as árvores continuam a dar azeitonas que são colhidas e vendidas — com o dinheiro pagam-se os salários aos jardineiros, por exemplo. Mais adiante, ainda em San Isidro, atravessamos a Avenida Camino Real sobre o antigo caminho inca, percorrido incessantemente pelos carteiros do império — não um mero caminho, mas um emaranhado de 50 mil quilómetros que cruzavam todo o território dominado pelos incas, indo além das actuais fronteiras do Peru.

Perdidos em Barranco

Que seria de Lima sem as suas varandas sobre o Pacífico? Se Havana tem “o” Malecón, Lima tem malecones, no plural, que acompanham grande parte do seu litoral. Chamam-lhe Costa Verde, embora o castanho seja particularmente relevante, já que fazem as paredes das arribas onde os malecones-varandas se penduram. Há um ponto em Miraflores, lemos, onde a vista vai de Chorrillos (o melhor ceviche de rua da cidade, dizem, ao domingo da manhã, saído directamente do mar para a panela) a La Punta — ou seja, a vista engole toda a cidade que se encontra à beira-mar.

Não estivemos lá — o malecón em Miraflores vimo-lo apenas do carro, passando entre o centro comercial Larcomar, virado ao oceano, e as esplanadas exteriores, do outro lado, no que resta do antigo parque Salazar, cenário de vários romances de Vargas Llosa, cujos personagens percorrem incessantemente Miraflores (e San Isidro). E não vimos ao vivo e a cores um dos postais ilustrados da cidade: os parapentes a sobrevoar as praias. No entanto, perdemo-nos em Barranco e na nossa ânsia de descobrir fomos ter à beira-mar, às varandas ajardinadas e com toques “gaudíanos” na decoração, feita de formas caprichosas e forradas a azulejos.

Como nos perdemos em Barranco? Em busca da boémia que faz a mística recente deste bairro. E se na primeira incursão não a encontramos, tivemos a sorte de ver a famosa Ponte dos Suspiros — não a atravessamos, logo não tivemos direito a pedir o desejo que dizem que concede a quem o faz sem respirar — sem saber que era famosa: apenas um recanto inesperado de tão pitoresco e idílico numa garganta que tem como pano de fundo uma réstia de oceano e casas cor ocre forte que trepam o penhasco. Não sabíamos, claro, que tinha inspirado uma das canções mais míticas de Chabuca Granda, El Puento de los Suspiros, um dos vals (música crioula e afro-peruana que se desenvolveu em Lima no século XIX) mais famosos do país.

Se a primeira visita foi de encontros imprevistos, a segunda foi mesmo de descoberta — diferença vital entre ambas, o tempo. Porque é necessário tempo para desvendar as ruas e avenidas de Barranco, que foi balneário das classes altas limenhas e agora foi engolido pela cidade que se tornou no umbigo do país — depois de quatro séculos de crescimento demográfico lento, Lima explodiu nos últimos cem anos, sobretudo nos últimos 50: dos quase 200 mil habitantes de 1920, avançou para 1,5 milhões em 1961 e daí saltou para os nove milhões actuais (cerca de 30% da população do país).

Talvez seja esse passado aristocrático que lhe empresta uma atmosfera de pequena vila — onde não falta uma Praça de Armas, flanqueada pela indispensável igreja, amarelo-torrado com rebordos brancos porque estamos em Lima — em que o tempo parece suspenso e o quotidiano mais tranquilo (ainda que possa ser apenas uma ilusão de viajante apressado) entre as antigas mansões de veraneio de estilo Arte Nova e Art Déco e o casario colorido, que ladeiam avenidas povoadas de árvores e abraçam pracetas.

Barranco sofreu um período de declínio e há uns anos não era um bairro muito apetecível — ou seguro. No entanto, e já vimos este filme em várias cidades, houve um “resgate” desta zona, que se tornou numa meca artística. E com os artistas vieram galerias, insuspeitas salas de exposições, lojas alternativas mas também restaurantes, bares, clubes e até enotecas — muitas vezes tudo baralhado e dado num mesmo espaço.

Dizem que à noite o bairro se transfigura. Só o vimos durante o dia, passámos pelo mercado de artesanato na Praça de Armas, vimos um antigo comboio transformado em bar, almoçámos num restaurante argentino (com orgulho Che à flor da pele: bandeiras, fotografias, camisolas de clubes de futebol…) e entrámos no Centro Cultural Parra del Riego (nome de poeta peruano), um dos muitos projectos originais que tem nascido por aqui, ocupando as grandes casas — neste caso é loja e espaço de exposições com várias salas e vocação ecológica (desde os produtos aos trabalhos artísticos).

Se já há alguns anos que Barranco está a desenvolver-se como uma espécie de Soho limenho, a validação que se calhar faltava chegou com Mario Testino, o fotógrafo das estrelas que criou algumas das imagens mais icónicas dos nossos tempos. Foi este o bairro que ele escolheu para regressar a casa. Aqui instalou a associação MATE, que é antes de tudo um museu, o maior, do seu trabalho. E se aqui encontramos alguns dos seus trabalhos mais reconhecíveis (embora, talvez por isso, tenha um sabor a déjà-vu), com salas dedicadas a Kate Moss, Gisele Bündchen e Madonna, se vemos Brad Pitt e Gwyneth Paltrow, se entramos em festas londrinas cheias de celebridades e temos um “altar” à princesa Diana, temos também uma homenagem ao Peru e esta é a surpresa.

Porque o regresso passou também por uma “viagem” antropológico-fotográfica que está reflectida numa sala povoada de rostos sérios e feições fortemente esculpidas de cusquenhos exibindo os seus trajes tradicionais no seu contexto geográfico. Mario Testino chamou à exposição onde foram apresentados estes trabalhos Alta Moda. Seja pelas alturas de Cuzco, pelos desertos costeiros ou pela bacia da Amazónia, o Peru está na moda. E, com ele, Lima, que está a libertar-se de complexos e a assumir-se, novamente, como a Rainha do Pacífico.

Happy hour: pisco sour

Cecilia Ledesma é uma mulher orgulhosa. Há seis anos decidiu lançar-se na aventura da sua vida: produzir pisco, a bebida nacional do Peru, uma espécie de aguardente (que é também reivindicado pelo Chile). Ela que havia sido casada com um produtor, lançou a sua marca própria, Qollqe, com um objectivo bem definido: entrar no mercado premium, numa nova categoria, o “pisco boutique” — aquele que é produzido em pequenas adegas, de forma artesanal.

É o que se passa com o Qollque, que tem uma produção reduzida, três mil litros, está pelo menos um ano em repouso (não em barricas) e só utiliza mosto yema, “o primeiro mosto da uva, que sai por gravidade”. Não é utilizada prensa, portanto, e o resultado é um líquido completamente transparente. Os seus três piscos são os protagonistas da nossa primeira (e única) prova de piscos — o Quebranta, o Italia e o Acholado, este um blend de quatro castas. Confessamos que, apesar de não sermos neófitos no pisco, nos custa distinguir os aromas e sabores de cada um; por isso deixamos o assunto para especialistas e avançamos para o pisco sour, o cocktail mais conhecido à base desta bebida.

Já não é um segredo peruano, mas aqui, apesar de não o bebermos no Morris Bar, onde foi inventado na década de 1920, porque já fechou, bebemos se calhar o melhor descendente. Roberto Meléndez, o chefe do Bar Inglês do hotel Country Club (o nosso poiso limenho) que nos prepara os cocktails com pisco Qollqe, é filho de Felipe Meléndez, que durante 50 anos trabalhou no Hotel Maury, onde a receita original evoluiu e se fixou na formulação actual. “Na nossa família levamos 77 anos a preparar piscos sours”, reivindica, orgulhoso. Pisco, sumo de limão, xarope simples, clara de ovo, gelo e umas gotinhas de angostura a coroar — estes são os ingredientes que fazem os pisqueros vibrar.

Amazónia, o eterno retorno na selva peruana

Os dias começam cedo na selva. Já o intuíamos e não quisemos ser a excepção. Até porque os motivos para madrugar são irresistíveis — no nosso caso, ver o nascer do sol do alto de uma torre de vigia. Por isso, levantar-nos com a escuridão ainda à solta poucas vezes foi tão fácil. Uma curta caminhada na selva (com placas de indicação) até à clareira onde a torre se ergue: 30 metros a subir por uma estrutura de ferro pouco indicada para quem sofre de acrofobia.

Do topo, um mar feito de um catálogo de verdes e um rio de cor lamacenta que o rasga. Já amanheceu mas o sol teima em não sair — e tanto teima que acabamos por não o ver (com bom motivo pois em algumas horas, o céu vai desabar numa chuva infinita). Mas somos brindados por arco-íris em bandos, que são papagaios (talvez alguns tucanos) em voos controlados entre gigantescas copas de árvores, algumas quase ao nível da plataforma onde ficamos por largo tempo.

É a primeira e a última vez que temos este panorama aéreo deste canto da bacia amazónica no departamento de Madre de Dios, Peru, (que tem 60% da sua área ocupada por floresta tropical) quase encostado ao Brasil e Bolívia. Estamos em reserva particular da Comunidade do Inferno, habitada pela etnia ese’ejja, que se cola à Reserva Nacional de Tambopata, o mesmo nome do rio que vemos do alto, do mesmo rio que é a nossa auto-estrada nesta região.

Chegámos no dia anterior e em poucas horas partiremos novamente para Puerto Maldonado, a cidade capital do departamento e da província, onde um pequeno aeroporto liga a Lima e Cuzco. O regresso ao hotel, Posada Amazonas, pertencente à comunidade e co-gerida com uma empresa privada, a Rainforest Expeditions, faz-se por um caminho mais longo — não se pode perder a oportunidade de observar a vida na selva e Marlene, a nossa guia, esforça-se para descortinar entre a vegetação excessiva sinais de vida. Sinais visuais, bem entendido, porque a selva é um organismo que pulsa de vida e esse pulsar é uma banda sonora em auto-play.

Avistamos um macaco, que não é um bugius, ou macaco-gritador como aqui todos se lhe referem, cujos gritos ouvimos várias vezes durante a nossa estadia (mas estes podem ser ouvidos até 16 quilómetros de distância…), empoleirado numa árvore não muito distante do trilho que seguimos religiosamente — mesmo que quiséssemos, e não queríamos, não poderíamos sair dele: as regras são claras e Marlene não se cansa de as repetir, não o podemos fazer para não perturbar o ecossistema.

Olhos então focados numa árvore, num dos ramos — mas só existem árvores, melhor, troncos, esguios ou colunas imponentes, porque as copas são uma abóbada cerrada que não deixa entrar luz, os ramos são como um mikado ainda mais baralhado por lianas, cipós e ainda por plantas epífitas que crescem nas árvores numa competição desalmada por luz, e não temos a certeza de entre tal abundância termos chegado a ver o macaco pichico, confirma a guia (macaco-esquilo, um macaco-prego ou um macaco titi são as outras espécies referenciadas nos terrenos da pousada). Nem os binóculos nos dão a certeza, mas gostamos de pensar que sim.

Não foi muito profícua em avistamentos de fauna a nossa aventura amazónica. A nossa chegada a Puerto Maldonado até prometia, avistamos indicações para Anaconda Lodge, Tarantula Eco-Hostel, mas Marlene rapidamente nos avisou (acalmou) — serpentes não se vêem muitas. “Quando alguém não as quer ver, então aparecem”, brinca. Pois não apareceram.

A Posada Amazonas é, lê-se no site, “perfeita para uma primeira experiência das maravilhas naturais da Amazónia” e é isso mesmo, um encontro suave com a vida selvagem, em contexto de ecoturismo puro, aquele que não só preserva o meio ambiente como ajuda as populações locais a desenvolverem-se. Por isso, a Posada Amazonas é da Comunidade do Inferno, que não visitamos porque preferem não se expor, e 90% dos funcionários são nativos, curiosamente poucos guias.

O contrato de leasing com a Rainforest Expeditions durava 20 anos, mas perto do final deste a comunidade considerou que não estava preparada para assumir a gestão sozinha — “houve muitas experiências más em outras comunidades, com falências” — e decidiu prolongar. Entretanto, está a preparar a sua gente: quem quer continuar a estudar (a comunidade tem escola e colégio, para estudos secundários), sai para fazê-lo e quando termina volta para trabalhar e, assim, pagar o “empréstimo”.

Marlene, a nossa guia, é de Puerto Maldonado, já trabalhou em Cuzco (agora mais perto graças à nova auto-estrada interoceânica, que liga o noroeste do Brasil à costa sul do Peru — as dez horas actuais já foram uma semana, isto quando não chovia), mas voltou a casa, onde, diz, podem chegar a fazer 10 graus de temperatura em Julho e Agosto. São as chamadas “friagens”, algo que a nós soa como um mito.

Se Puerto Maldonado nos parece uma sauna, percebemos que, afinal, é o paraíso quando, depois de um percurso de mais de uma hora por estradas de terra, aqui e ali pontuadas por pueblos de plástico (pequenas povoações com construções precárias que foram originalmente construídas por garimpeiros) e por ribeiros lamacentos onde vemos gente a banhar-se ou a relaxar como se de um jacuzzi estagnado se tratasse (motos estacionadas à beira), chegamos à beira do rio Tambopata.

Só o movimento do barco a sulcar as águas traz algum alívio e compreendemos a família que vemos a banhar-se junto à margem. Mas, uma vez fora, uma vez na selva, a humidade é opressiva, aprisiona-nos e passamos a conviver com duas peles: a nossa e a da roupa que, apesar de leve e de algodão, como recomendado, estará sempre colada à pele.

O primeiro contacto com a floresta não conta como experiência, consideram os guias — afinal, é apenas uma caminhada da beira-rio até à pousada. Contudo, para nós é o embate com um cenário barroco, uma sinfonia natural saturada, feita de excessos que põe todos os sentidos em alerta máximo. A vista da pousada tem o mesmo efeito de um oásis no deserto — o aglomerado, entre as árvores, de edifícios palafitas de madeira envernizada é um oásis.

Está perfeitamente integrado na floresta e tem confortos insuspeitos, a começar no pequeno spa (que não experimentamos) e passando pelas salas ao estilo lounge ou bar, sempre abertas para a floresta, com varandins a fazer de fronteira — há poucas paredes aqui, apenas a separar os quartos, mesmo estes sem a parede virada para a floresta. No nosso quarto, um dos superiores, um hammock está estrategicamente disposto para esta e à noite é lá que esperamos o sono chegar, antes de entrarmos na cama-tenda (o mosquiteiro é grosso): apenas uma luz ténue vinda de outros quartos (só há electricidade entre as 18h e as 22h, no resto da noite há lamparinas nos espaços comuns) a iluminar o arvoredo denso, o ruído incessante da selva (a brisa a agitar as árvores, os sons repetitivos, ocasionalmente guturais) e o ar denso pleno de odores estranhos — uma atmosfera quase fantasmagórica. Ou primordial.

Não sentimos tanto essa ideia de início de tudo, de início do mundo, como nas margens do lago 3 Chimbadas. Nova viagem de barco e uma caminhada de cinco quilómetros selva adentro (não pareceu tanto, mas estávamos preparados para o pior) até à margem do lago, que é um estreito ancoradouro quase engolido pela vegetação. O “responsável” do lago espera-nos com o neto — é domingo, não foi à escola. O barco de madeira desliza quase imperceptivelmente pelas águas negras e o silêncio é imperativo, avisa Marlene. À nossa volta, água abraçada pela massa verde de tons variáveis e formas excêntricas que se sobrepõem em competição desenfreada — há árvores que sobem isoladas acima de todas as outras, troncos claros e escuros — e estamos quase na pré-história à espera de ver os primeiros lagartos trocarem a água pela terra.

Rodeamos o enorme lago em busca de pássaros que tornam este um paraíso do birdwatching — há grupo no lago, precisamente de aficionados de aves, mas mal damos por eles, tal a dimensão do lugar. Tentamos a pesca de piranhas e apenas duas são apanhadas (e logo devolvidas) pelo nosso grupo — são pequenas e longe da imagem dos animais ferozes que esperávamos encontrar na Amazônia. E, quando a escuridão já está instalada (quase como se um pano a cair repentinamente sobre nós) e nós estamos a voltar à margem, Marlene detecta um caimão escondido sob raízes mergulhadas na água. Os binóculos são passados e vemos os olhos vermelhos, brilhantes e penetrantes como focos imóveis. Num momento está lá, noutro não está.

Como este lago, que foi formado por eutrofização, o processo natural de fechar uma corrente pela queda de árvores, de folhas que se constituem em solo onde cresce mais vegetação, desviando o leito do rio. Não se sabe se o destino deste lago será acabar, continuando o processo de encerramento, ou se voltará a ser rio. “Não importa”, diz Marlene, “outro lago aparecerá noutro local” — a própria Posada Amazonas, num cotovelo entre dois rios, “provavelmente será lago em breve”. É que o rio e a floresta são cíclicos: “Dizem que a cada 400 anos volta ao sítio onde esteve.”

Guia prático

Como ir

A Fugas viajou com a Air France (ida) e KLM (volta). Os voos partem de Lisboa e fazem escala em Paris e Amesterdão, respectivamente. Os preços, em ambas as companhias, começam à volta dos 900€ (ida e volta).

Onde ficar

Ficámos alojados no Country Club Lima Hotel, monumento nacional peruano. No bairro de San Isidro, um dos mais elegantes da capital peruana, foi construído em 1927 em estilo neocolonial, tem 83 quartos e interior museológico — peças emprestadas pelo Museu Pedro de Osma. Preços desde 200€ (quarto duplo).

A Fugas viajou a convite do Ministerio de Comercio Exterior y Turismo do Peru e da Embaixada do Peru em Portugal

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