Construída em camadas de história e de modernidade, entre pirâmides e arranha-céus, Lima é para todos e não é para ninguém. Tivéssemos nós mais tempo, até poderíamos chegar a amá-la.
Herman Melville disse que Lima era a cidade mais triste que se pode conhecer. Ou melhor, pôs esta reflexão na cabeça de Ismael, o protagonista de Moby Dick, quando este desmontava a natureza e o simbolismo (aterrorizador) da cor branca, a mesma da baleia que perseguia:
“E Lima tomou o véu branco; e há um horror maior nesta brancura da sua desgraça. Tão antiga como Pizarro, esta brancura mantém estas ruínas para sempre novas; não admite o alegre verdor da decadência total; espalha sobre as suas muralhas quebradas a rigidez pálida de uma apoplexia que corrige as suas próprias distorções.”
O branco em Lima era o céu, permanentemente coberto pela garúa (“garoa” no Brasil, onde é associada a São Paulo) como chamam a esse manto que envolve (quase) constantemente a cidade (entre Janeiro e Março, no Verão, portanto, abre) devido a condições atmosféricas especiais, resultantes do encontro das correntes oceânicas com a cordilheira dos Andes. Agora, o branco do céu limenho só perdura sobre o oceano, sobre a cidade o céu é de um cinzento quase imutável, produto da poluição atmosférica (um relatório da Organização Mundial de Saúde coloca Lima no topo das cidades mais poluídas da América Latina).
E agora Lima não tem tempo para ser triste, embora se mantenha solitária entre o oceano Pacífico e a cordilheira dos Andes, o deserto a norte e sul. Os ventos da mudança chegaram ao Peru, que apaziguou as suas tensões políticas e encontrou uma bonança económica que está a provocar um formigueiro por todo o país com reflexos óbvios na sua capital.
Depois de anos sentindo-se como um patinho feio, Lima está fervilhante de projectos e esperança e, nesse processo, a recuperar a auto-estima da cidade que foi capital do poderoso vice-reino do Peru. Não é um processo simples, há uma história muito mais recente que é necessário ultrapassar, aquela que Mario Vargas Llosa, o prémio Nobel da literatura peruano, resumiu na abertura do seu Conversa n’ A Catedral, com a interrogação “Em que momento se fodeu o Peru?”. Ainda que de lá (o livro foi publicado em 1969) para cá muita coisa tenha mudado, houve, contudo, tempo de continuar a procissão de golpes de estado, governos militares, ditaduras, corrupção, guerrilhas, atentados.
Mas vamos a Lima, então. E não nos custa assumi-lo: não é uma cidade fácil. E é banal mencioná-lo em grandes metrópoles, mas tudo começa no trânsito, que é babelesco. “Na hora de ponta”, sublinha o nosso guia. E quando é a hora de ponta?, queremos saber. Uma pausa para reflectir. “É sempre.” Por isso o tempo foge-nos em Lima, escapa-se-nos nos intermináveis minutos que passamos no bailado louco do tráfego, quando as ruas e avenidas de repente ganham faixas de rodagem e quando pensamos que já estamos milagrosamente espremidos, lá vem um veículo inventar espaços vazios.
E se vemos sinais a proibir buzinas sabemos que não são mais do que curiosidades para turistas; quase como as passadeiras, avisam-nos — os limenhos tomam-nas como sugestões. O que não parece sugestão são os traga-monedas, os casinos, que são um dos traços mais constantes da paisagem da cidade: pela quantidade deles, os limenhos gostam mesmo de jogar e, a julgar pela arquitectura, os traga-monedas gostam de ser kitsch.