Banksy, Banksy, Banksy, Banksy, Banksy, cinco vezes Banksy, seis, sete, mil vezes Banksy. Banksy nas paredes, Banksy nas galerias, Banksy no cinema, Banksy em Nova Iorque, Banksy nos Simpsons... Tanto Banksy já cansa, protestam alguns. De uma década para a outra, apaixonados e menos apaixonados pela arte, parecem conhecer de cor o seu traço, se bem que ninguém lhe conheça a cara. A polícia prende quem pinta paredes (pelo menos prendia), os holofotes cegam a criatividade, a ambos Bansky tem fugido com mestria. A sua biografia são as suas obras. Bristol o seu primeiro mural de trabalho.
- Às vezes esqueço-me de que temos obras como estas na cidade. Passo aqui todos os dias e nunca tinha tirado uma foto. Agora vi-o fotografar e tive vontade de fazer o mesmo – diz-me uma senhora, entre os sessenta e os setenta anos, iPhone na mão, cultura na ponta da língua. - Mais vale aproveitar antes que alguém apague.
- Ainda apagam?
- Agora menos, mas de vez em quando ainda acontece.
Este graffiti (Well Hung Lover) não é fácil ser apagado. Se bem que tenha umas marcas azuis que não foram feitas pelo autor. É da autoria de Banksy e um dos mais famosos. Fica numa parede de um edifício da Frogmore Street, mas foi pensado para ser visto da Park Street. O mais certo é que o leitor não saiba, nem queira saber onde fica a Park Street, nem isso interessa por agora, pois acabará por lá passar, afinal trata-se de uma das artérias principais, que liga o centro ao bairro de Clifton, a zona alta, nobre e verde da cidade. E com as melhores vistas. Aqui e agora a vista é outra. Um homem e uma mulher estão à janela. O homem olha em frente, à procura de alguém. Não consegue ver o que nós vemos. Por nós entenda-se eu, a senhora que tira a fotografia, os cerca de 500 mil habitantes da cidade e mais cerca de meio de milhão de turistas que por aqui passam todos os anos. E o que todos nós vemos é outro homem da parte de fora da janela, nu, com uma mão no parapeito e outra nos genitais, cara de pânico e corpo de amante. Na rua ao lado, para onde olha o marido traído, fica uma clínica especializada em problemas sexuais. É isto Banksy. Um (eterno) provocador, ele que é já considerado um veterano nestas andanças, um movimento normalmente associado aos mais novos. Terá nascido em 1974/1975.
- Gosta? – pergunto.
- Adoro. Em 2009, ele fez uma exposição no Bristol Museum, que fica ali em cima. Foi a primeira e acho que a única grande exposição que ele realizou numa galeria. Foi tudo feito em segredo e foi um sucesso. O meu neto também já anda agarrado às latas, mas está a começar, coitadinho.
Nem sempre foi assim. No final da década de noventa, início do século XX, as autoridades locais não eram propriamente adeptas dos jovens que pintavam as paredes da cidade. Vandalismo, gritavam. Outros havia que, não sabendo o valor das criações que tinham na parede dos seus edifícios, davam uma demão ou de a lixívia para purificar as paredes e o ambiente. Uma espécie de jogo que durou muitos anos. O que vem a seguir já está escrito. Banksy tornou-se famoso, quase um mito, com ele cresceram e desenvolveram-se várias gerações de artistas locais, as autoridades e a população habituaram-se a respeitar os grafittis e, hoje, mais do que vandalizar, temem é que estes sejam roubados. Sim, um pouco por todo o mundo há quem já tenha roubado obras de Banksy. Roubar uma obra destas significa, em muitos casos, levar um bom pedaço de parede, pedaço que mais tarde pode vir a render qualquer coisa como um milhão de euros em leilões de coleccionadores de arte. Algumas obras valem mais do que as próprias casas. - É um privilégio que a nossa cidade seja uma espécie de tela ao ar livre - conclui Elizabeth. - Como a Rainha!
Bristol é uma aristocrata excêntrica que coloca os quadros do lado de fora da parede.
Nos passos de Pessoa
Há como fugir a tudo isto, naturalmente, a Banksy e à street art, mas não compensa, sobretudo para viajantes como eu, como (quase) todos nós, turistas curiosos por natureza. Bristol é assim. Bristol é mais Bristol agora que é assim. Os responsáveis e os comerciantes locais sabem disso e tiram natural proveito. Mapearam todas as obras, pelo menos as mais importantes, criaram festivais, desenharam diferentes tipos de tours organizados, fazem workshops, nas ruas e nos mercados vendem-se réplicas famosas a meia dúzia de euros para colocar nas paredes de casa. Em 2013, durante uma residência artística de um mês em Nova Iorque, Banksy montou uma barraquinha à venda com obras originais a 50 euros que valiam milhares, pelo sim pelo não compro meia dúzia, não vá ele ter repetido a gracinha.
Enquanto o golpe de sorte não se confirma opto por um tour grátis que vejo anunciado numa das paredes do hostel.
- Queria confirmar se há passeio amanhã - pergunto por mensagem, já depois das dez da noite. A resposta não tarda.
- Tomorrow, 11am outside the Marriott Hotel on College Green. See you tomorrow. James Bogie.
Amanhã é sábado. Hoje é sábado, nove da manhã, o hostel fica junto ao rio, na área do antigo porto, hoje em dia uma zona recheada de galerias, restaurantes, bares e museus, aproveito por isso para explorar a área enquanto a hora não chega. Entre os museus está o M Shed, espaço moderno, onde não só é possível ter uma das melhores panorâmicas sobre esta parte da cidade, mas também ficar a conhecer a sua história, desde da sua participação activa como ponto de partida e de chegada de escravos, até aos seus anos dourados na construção naval e aviação. A The Bristol Aeroplane Company, fundada em 1910, foi uma das primeiras e mais importantes companhias britânicas. Em frente ao museu quatro estruturas em ferro, enormes, que serviam para descarregar e carregar os barcos lembram o seu perfil industrial. Um pouco mais à frente, ainda no porto, o SS Great Britain, construído em 1843, o maior navio da época, é actualmente um dos maiores pontos de romaria.
A água, a força e a magia da água, sempre presente. Culpa do rio Avon, cujos braços se estendem quase até ao centro da cidade. O mesmo Avon que liga ao Canal de Bristol, braço de mar que, por sua vez, se encarrega de fazer a ligação ao Atlântico.
Fala-se em Atlântico e encontra-se logo Fernando Pessoa. Passo mais uma ponte em direcção a sul, à Tobacco Factory, já fora da zona central, uma associação e uma área com forte pulsar cultural e eis que dou de caras com um grafitti do escritor português. A cara é Pessoa, as palavras são de Ricardo Reis. Em bom inglês.
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.
- He’s big - diz-me o homem do café junto ao qual está pintado o mural, perante a minha insistência em tentar meter a realidade numa imagem.
- Sempre contamos consigo? – diz-me agora o telemóvel.
Ganho a manhã, mas perco as horas. O frio britânico não congela a falta de pontualidade portuguesa. Peço desculpa, digo que vou a correr.
- Não corra, podemos encontrar-nos no St. Nicholas Market, se quiser, almoçamos sempre aí – responde-me mais uma vez James Bogie, sempre solícito. - Somos um grupo de dez pessoas. Tenho uma camisola vermelha com coração amarelo.
James estuda medicina e criou estes tours de duas horas e meia por amor à cidade. Todos os sábados, sempre às onze, sempre grátis, embora não tenha nada contra as gorjetas. Não chegámos a encontrar-nos, reproduzo apenas o que li na Internet.
No mercado já não havia camisolas vermelhas com corações amarelos, apenas decorações de Natal e um sem número de pessoas, britânicos e não britânicos, turistas e estudantes, à procura do melhor prato marroquino, inglês, italiano ou português. Um mercado criado em 1743, o mais antigo da cidade e um dos dez mais icónicos do Reino Unido, rezam os estudos de opinião. O ambiente é semelhante aos novos mercados de Campo de Ourique ou da Ribeira, em Lisboa, apenas mais genuíno, descontraído e barato. Entre as muitas barraquinhas está o Portuguese Taste, de Maria de Lourdes Papanca, dona e uma das cozinheiras.
- Pode ser meia dose de bacalhau com natas bem servida, por favor – pede um jovem casal de grafitters à minha frente.
- Não há meias doses bem servidas. Meia dose é meia dose, uma dose é uma dose. São servidas como tem que ser.
Bristol no seu melhor. A nossa pátria é o feitio português.
Cidade verde
Bristol não é — nem quer ser — Londres, não tem a mesma dimensão, a mesma multiculturalidade (palavra também ela mil vezes repetida por estes dias), mas tem uma geografia, arquitectura e personalidade que a tornam surpreendentemente rica e familiar. Bastam quatro ou cinco dias e já é um pouco nossa.
Maria, 33 anos, nasceu e cresceu em Madrid, fez Erasmus em Bristol, seguiu para Londres e voltou à sua casa adoptiva depois de dois anos na capital britânica. Trabalha para o turismo, está a fazer um inquérito e quer as minhas impressões, mas é ela quem faz, afinal, o diagnóstico.
- Bristol é uma cidade média, com uma vida cultural e artística de grande cidade, mas sem os problemas das grandes cidades. Pena não ter metro.
- Não precisa. Não seria a mesma. Bristol tem a dimensão certa para ser descoberta a pé. Nem tudo é perto, nem tudo é plano, é certo, mas a cabeça anda sempre levantada, à procura de mais edifício histórico, de mais uma galeria, mais um grafitti gigantesco no topo de um prédio. De tal forma impressionantes, gigantes e tão lá no alto que há momentos em que não se percebe muito bem se foram os homens que subiram aos céus, se os deuses ou anjos mais rebeldes que desceram à terra para pintar.
O autocarro turístico também é uma das boas opções. Sim, The City Sightseeing Bristol open-top bus tour, isso mesmo. Não é cool, é artificial, é turismo de pacote, é um lugar-comum, enfim, está longe de ser a melhor forma de conhecer um destino, toda a gente sabe, sobretudo para um jornalista de viagens, mas aconteceu. Que isto fique só entre nós. A história é simples. Estava sentado numa paragem de autocarro a aproveitar a rede wireless de uma loja ali ao lado quando o autocarro parou.?
- Mais cinco minutos e saímos - diz-me o motorista.?
- Sorry?!?
- Mais cinco minutos e saímos para o passeio.?
É Dezembro, já o disse, era Dezembro, estava um frio inglês e pensei why not? Nem sequer pensei, na verdade, apenas fui incapaz de dizer que não ao homem, paguei as 13 libras e lá fui para o piso de cima, que era como estar na rua, mas com mantinha incluída. Os tais cinco minutos e algumas pessoas depois lá seguimos viagem.
Uma viagem de cerca de 90 minutos, com vinte pontos de interesse, do centro à Clifton Bridge, ponte suspensa sobre o rio Avon, passando por The Downs, o pulmão da cidade. Um imenso manto de natureza silenciosa habitada por mansões vitorianas e por dezenas e dezenas de britânicos a correr, à chuva, atrás de uma bola. Como se tivessem inventado o jogo nessa tarde e tivessem a escrever a História. Um paraíso para quem gosta de natureza, o postal perfeito para qualquer jogador amador.
- É um campeonato amador, de fim-de-semana, com mais de 50 equipas, sendo que tem a particularidade de os jogos serem todos efectuados ao mesmo tempo – diz o guia. Não se esqueça de que inventamos o futebol.
Não esquecemos. Mas o que as autoridades locais não querem mesmo que os turistas esqueçam é precisamente esta serena e saudável veia que atravessa a cidade, não lhe tivesse sido atribuído o título de Capital Verde da Europa 2015. Um título que em 2016 será ostentado por Ljubljana e para o qual Cascais, Lisboa e Porto estão na corrida em 2017. Os dados divulgados aquando da decisão — que teve lugar precisamente em Dezembro, em Copenhaga, na Dinanarca — mostram que tudo isto não foi obra do acaso nem apenas truque para aparecer na fotografia. O melhor dos dois mundos — o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável parece impossível de atingir para o resto do mundo —, mas eles tentam. Vejam-se alguns exemplos: possui o menor indicador de emissões de CO2 per capita entre as grandes cidades do Reino Unido, mesmo assim pretende reduzir os números em 40% até 2020 e em 80% até 2050; a eficiência doméstica em termos energéticos melhor cerca de 25% na última década; quase um quinto dos habitantes vai a pé para o trabalho: cerca de 90% da população vive a 300 metros de um jardim ou da água; possui oito reservas naturais e mais de 400 parques… E por aqui poderíamos continuar durante mais algumas linhas.
É também por aqui que fico, em The Downs, mesmo não sendo a minha paragem, e por onde caminho durante horas à procura de mais um cliché, o pôr do sol na Clifton Suspension Bridge, porventura o maior ex-líbris da cidade. Uma ponte com mais de 170 anos sobre o rio Avon, em pleno Avon Gorge, desfiladeiro com cerca de 1,5 quilómetros de comprimento. Lá em baixo, dois homens fazem escalada, enquanto cá em cima, nos braços da mãe, uma criança tenta que o pai responda aos seus acenos, ignorando que a sua cidade não só é a capital da street art e Capital Verde da Europa, mas também por várias vezes considerada a cidade com mais qualidade de vida no Reino Unido. Uma cidade que, ainda por cima, tem cor e vida própria, algo que nem sempre as cidades com mais qualidade de vida têm.
GUIA PRÁTICO
Quando ir
Não há grandes segredos. É Inverno, é Inglaterra, por esta altura as temperaturas rondam os zero graus, mas não é uma altura proibida para viajar. Bem pelo contrário. Como país desenvolvido que é, poucos são os locais em que o ambiente não é acolhedor, desde o melhor dos restaurantes a um simples café ou no autocarro. Ainda assim, e para os mais friorentos, a Primavera e o Verão talvez sejam as estações ideais. Época em que a cidade fica mais verde do que nunca, sendo possível tirar o melhor partido das suas quatro centenas de parques. Este ano, e como Capital Verde da Europa, haverá muitos eventos, por isso convém estar de olhos na agenda (www.bristolgreencapital.org).
Como ir
É relativamente barato chegar a Bristol. A easyJet (www.easyjet) voa para a mais populosa cidade do sudoeste inglês a partir de Lisboa e Faro, sendo possível encontrar bilhetes por pouco mais de 35 euros por trajecto (taxas incluídas). A partir de Março, também passará a haver ligações desde a cidade do Porto, três vezes por semana.
Onde ficar
YHA Bristol, eis uma boa opção para quem procurar uma viagem a baixo custo, ainda assim, com o mínimo de conforto. Algo que este hostel permite por cerca de 20 euros. Fica de frente para o porto, no Harbourside (www.yha.org.uk/hostel/bristol). Quem quiser subir o nível e ficar numa área mais central, a dois passos do St. Nicholas Market, tem na Brooks Guesthouse Bristol (www.brooksguesthousebristol.com) uma unidade com todas as condições. Pequena, descontraída, com charme quanto baste e onde nada falta, inclusive um pátio para os dias de sol. Na zona de Clifton, ficam duas moradas que aparecem sucessivamente nas listas do que melhor se pode encontrar na cidade em termos de alojamento: Thirty Eight e The Avon Gorge Hotel. O primeiro (number38clifton.com) é uma casa apalaçada com dez quartos e um luxo e charme discretos, já o The Avon Gorge Hotel é um hotel maior e menos personalizado, mas com uma vista única para a Clifton Bridge.
Onde comer
Longe vão os tempos em que se comia apenas fish and chips em Inglaterra. Pelo menos nas cidades de grande e média dimensão. Em Bristol são inúmeras e extremamente variadas as opções e nem sempre tão dispendiosas como se possa pensar. O St. Nicholas Market (www.stnicholasmarketbristol.co.uk), situado na Corn Street, no coração da cidade velha, é um dos nomes incontornáveis. Pelo ambiente e pela comida, das especialidades britânicas a cozinhas dos quatro cantos do mundo. Aberto de segunda a sábado das 9h30 às 17h. O antigo porto (Harbourside, www.harboursidealive.co.uk) tornou-se também numa zona de visita obrigatória, área com vista para o rio Avon que junta a gastronomia ao entretenimento. O Glassboat Restaurant, por exemplo, (www.glassboat.co.uk) é uma boa morada para quem quiser uma refeição mais exclusiva e romântica, pois trata-se de um restaurante flutuante. O Zaza Bazzar (www.zazabazaar.com) é opção ideal para quem for em grupo e tiver gostos diferentes. Hambúrgueres, pizzas, pastas, comida chinesa, tailandesa, sushi...Tudo com música e ambiente festivo a acompanhar. No bairro de Clifton há mais charme e recato. Para quem estiver em modo low cost — esta pode muito bem ser uma viagem de baixo custo, das ligações áreas às refeições, passando pelo alojamento — pode sempre optar pelas completas lojas de conveniência britânicas. Desde que não se importe de comer na rua.
A visitar
Há muito para descobrir em Bristol, sendo vários os museus, actividades e galerias de entrada grátis. A Walking Bristol (www.walkingbristol.com) organiza passeios de duas horas e meia pela cidade. Sem qualquer custo. Quem quiser algo mais completo, sobretudo no que à street art diz respeito, tem na Wherethewall (www.wherethewall.com) o parceiro ideal. Há tours direccionados especificamente para a obra de Banksy e também organizam pequenos cursos de iniciação ao grafitti. Passear de barco é outra das experiências a ter em conta (www.bristolferry.com). Tal como uma visita ao gigante SS Great Britain (www.ssgreatbritain.org), navio transatlântico construído em 1843 e que nos últimos anos se tornou um dos pontos de romaria na cidade. Uma visita merecem também a galeria Arnolfini, situada de peito aberto para o porto (www.arnolfini.org.uk), o British Museum (www.bristolmuseums.org.uk/bristol-museum-and-art-gallery) e a bonita catedral local (www.bristol-cathedral.co.uk).