Fugas - Viagens

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China: A noite com o dragão não passou de um sonho

Por Ireneu Teixeira

Selvagem, secreta e silenciosa. Uma viagem serpenteante pela Grande Muralha da China.

Wangfujing, Pequim. Final de tarde de um pardo Abril mais gélido e melancólico do que o habitual. No átrio da despretensiosa guesthouse, detenho-me na imagem da grande muralha, que parece querer ultrapassar a moldura da revista ilustrada. Vejo-me assaltado pela postura curiosa de um Mao “qualquer-coisa-que-não-entendi”, um nome popular entre os Han, povo que, habitualmente, designamos por chinês, mesmo que a nação seja a junção de variadíssimos grupos étnicos.

- Não, não e não! Se queres sentir o 'monstro' nem penses ir a Badaling.

Reconhecendo a lustrosa imagem, interpelou-me num tom despótico, fazendo jus ao nome de baptismo. Justificou-se, depois, já em decibéis menos sonoros.

- Essa zona, e não apenas essa, está apinhada de turistas, e a maior parte são grupos de chineses, disse, desalentado, este guia-taxista, na expectativa de um serviço de ocasião.

Estando eu em Pequim, que, à letra, significa “Capital do Norte”, tinha perspectivado passar revista àquela obra descomunal, e, obviamente, tencionava poupar-me a aglomerações indesejadas de cariz turístico. Questionei-o, então, sobre outras hipóteses, que agregassem a beleza do lugar à paz de espírito.

- Se quiser, levo-o já amanhã bem cedo a um local esquecido, juntamente com outras quatro pessoas. O mais bonito de todos. E é para passar lá a noite.

O mais bonito de todos? Evidente exagero de vendedor de sonhos, pensei; já o “passar a noite” inquietou-me os sentidos, perante repto tão sedutor. Dois dias de caminhada de esforço físico tido como aceitável, e acampar numa das maravilhas do Mundo parecia-me concebido a pedido de boca.

Estava, de facto, bem documentado sobre Badaling, a zona mais demandada pelos turistas. É “vendida” como o cartão-postal da Muralha, até por ter sido o local onde incidiram grande parte das obras de restauro. Localizada na cidade de Yanqing, Badaling foi a primeira secção da Grande Muralha aberta ao público. Com 3741 metros de comprimento, possui uma importante posição estratégica na defesa da capital do Reino do Meio (Celeste). Há várias empresas que fazem excursões de um dia, com saída de Pequim, em direcção às secções de Badaling e Mutianyu, na Grande Muralha da China, a 65 e 80 quilómetros, respectivamente, ambas a Norte da capital. Para além da grande afluência de visitantes, menor nesta altura do ano, o tempo despendido na viagem só permite duas horas de passeio na Muralha, insignificante para quem procura um contacto mais íntimo com a obra. Estava decidido a embarcar o mais rapidamente possível. De entre as várias informações entretanto recolhidas, apenas uma me desassossegava o espírito: o frio nocturno que me aguardava naquela área remota.

Respeitando o agendado, às oito da manhã estaciona uma carrinha branca à porta do pequeno hotel. Contrariando as expectativas, e, de certo modo, defraudado, Mao não estava presente - fiquei a saber, entretanto, que era um simples intermediário de uma agência de viagens local. Ao lado do motorista estava John – os chineses, e orientais em geral, baptizam-se com nomes ocidentais para, dessa forma, serem mais facilmente contactados -, personificava a boa disposição. E, afinal, também não eram quatro os turistas que adquiriram igual pacote, mas três – eu, sim, era o quarto elemento. Um jovem casal da Islândia e o andaluz Javier seriam os meus colegas de caminhada ao longo de dois dias e uma noite, e cerca de 30 quilómetros que prometiam ser inesquecíveis.

O veículo seguiu à velocidade de caracol por entre o caótico trânsito da área metropolitana. À medida que nos desprendemos da teia urbana, a auto-estrada fica desimpedida e bastam duas horas para percorrer os 145 quilómetros até ao povoado de Gubeikou, no noroeste deste país descomunal. Acidentado, o percurso intimida pelas descidas e subidas vertiginosas, e o gelo acumulado em pequenas lagoas e poças ao longo da estrada anuncia temperaturas indesejadas no exterior.

Sem pronunciar qualquer vocábulo em inglês, o motorista freia a viatura em frente à bilheteira. John já tinha adiantado serviço e só levámos o indispensável à jornada: capa para a chuva, água e máquina fotográfica. As mochilas ficaram na carrinha, que nos esperaria no final de uma caminhada de cerca de 12 quilómetros, em Jinshanling. O solícito guia encarregava-se de transportar o almoço.

Muralha sempre a crescer

John é um jovem gracioso. Comunicativo, expressivo e, sobretudo, genuíno. Estudou História numa faculdade de Pequim “e em casa, através da Internet e de livros”, conta o autodidacta descomplexado. A dimensão exacta da muralha continua a ser o tema do momento, alimentando a discussão entre os especialistas. Primeiro, media seis mil e tal quilómetros para, numa segunda contagem, aumentar para mais de 8850. E agora mais do que duplicou.

- O último estudo garante que, afinal, a estrutura tem cerca de 20 mil quilómetros de comprimento. A nova medida resulta de cálculos apresentados por topógrafos chineses que se juntaram para medir o monumento com a maior precisão possível, salientou, entusiasmado o guia de serviço.

Na verdade, os números até nem são recentes; já têm uns anos, mas, para John, são de ontem, frescos como a manhã que teima em não se abrir ao sol. A medida descomunal, cerca de meia circunferência do planeta Terra traçada pela linha do Equador, contempla todas as paredes alguma vez construídas, muitas delas já inexistentes. Isto porque, e contrariamente à crença popular, a Muralha da China é um conjunto de inúmeras fortificações, em que muitas nem se tocam, construídas ao longo de dois mil anos, por ordem de 13 dinastias. As muralhas erguidas a mando da dinastia Ming (1368-1644) são as que resistem em melhores condições, as mesmas que hoje são calcorreadas por milhões de visitantes.

- A parede Ming só foi medida duas vezes: a primeira por ordem do imperador Kangxi, em 1700; e, a segunda, em 2006. E, durante a avaliação, foram encontrados e identificados cerca de 43 mil (!) locais históricos, acrescentou John, com visível entusiasmo.

A aula de história ao ar livre prossegue a ritmo lento, enquanto, em grupo, nos aproximamos de uma parede que ao longe parecia de escala humana. Num plano sempre inclinado, a caminhada provoca algum desgaste físico e calor corporal, amenizados pela brisa gélida que sopra do Sul da Mongólia. A paisagem abre-se-nos em leque. Para onde quer que se olhe, os muros, altos, sólidos e imensos, acompanham as paredes da montanha, sinuosas, de altos e baixos, como o corpo de um dragão. Uma estranha sensação de pequenez assalta-nos o espírito. É impossível impedir a mente de viajar perante aquela paisagem esmagadora, aquele cenário imóvel, pincelado do verde-terra árido ao prateado sujo da muralha para terminar, mais acima, no cinza-chumbo do céu carregado de nuvens.

Sentamo-nos no muro semidestruído, virados para Sul, centrados num horizonte sem fim. Logo no início da caminhada, John aponta para o chamado tijolo de carácter, que continha a marca deixada pelo artesão ou oleiro, cinco séculos depois.

- Em Badaling já não existe nada disto, pelo facto de ter sido restaurada e pelo impacto negativo que provoca a presença diária de milhares de visitantes.

Um pormenor interessante mas nada suplanta o sossego de um lugar mágico. Não se avista vivalma. A paisagem é de cortar a respiração: o muro sobe sobre os picos das montanhas para, em seguida, resvalar por ravinas profundas, em desafio à gravidade. Uma vez que a área de Gubeikou era uma passagem estratégica para Pequim, as mais de 40 torres de observação pelas quais passamos estavam muito próximas umas das outras. Ao contrário da maioria, estas foram muito reforçadas e construídas com tijolos até sete metros de altura. O objectivo era o de impedir que os invasores do Norte, as tribos mongóis, alcançassem o coração da China. Este trecho da muralha, que vai até Jinshanling, o destino do nosso primeiro dia, é considerado um óptimo exemplo da construção na dinastia Ming, erguido entre 1568 e 1583 no lugar de uma relíquia de mil anos construída pela dinastia Qi do Norte (550-577).

Fisicamente, a jornada ultrapassa os níveis de exigência anunciados. O problema maior prende-se com os infindáveis degraus conducentes às torres de observação, para além de apresentarem danos provocados pela acção de elementos naturais.

Não há estrelas no céu

Com o aproximar de Jinshanling e já com as pernas doridas de caminhar sobre um terreno irregular, muitas vezes pedregoso e, amiúde, sobre muralha alguma, aproveitei a paragem do almoço, ao estilo piquenique, para questionar sobre o local de acampamento. Circunspecto, John apontou pela moldura da janela de pedra da torre de vigia, em direcção à montanha escarpada do parque de Yanshan, na província de Hebei.

- Se acamparmos, será mais lá adiante, numa das torres de observação, perto do nosso destino, onde está o material.

Aquela dúvida, aquele “se”, provocou-me uma sensação de desalento, como se a longa marcha fosse infrutífera, o que não era verdade. O panorama ímpar e a obra grandiosa eram o deleite de qualquer viajante: de Marco Polo, da qual nunca fez relato, a Vaz de Camões, que dá testemunho da sua existência, no Império do Meio, de um “edifício nunca crido” (Os Lusíadas, X, 130, 1-4), que a própria cartografia chinesa só no século XVI começa a registar. E, de repente, sentia-me um dos cerca de um milhão de soldados que, em permanência, defendiam o muro e consequente nação do ataque das tribos mongóis. Se olharmos de uma torre de vigia para as infinitas e sombrias dobras da acidentada encosta da montanha, não é difícil imaginar o sofrimento dos soldados inimigos, especialmente no Inverno, enquanto marchavam ou cavalgavam desde o Norte, durante meses, para realizarem um ataque. As torres de vigia estão situadas de forma a fornecer uma vista o mais abrangente possível, e com uma série de mensageiros a cavalo, prontos a alertar os defensores noutros pontos da muralha, os chineses tornavam-se imbatíveis. Mas aquele manto de nuvens tenebrosas, que acampara nos céus, era mau augúrio. Pouco tempo depois, fomos obrigados a descer das muralhas e a caminhar sobre um terreno enlameado, que, virado a Norte, nunca olhara o Sol de frente.

- No seu limite, esta zona é ainda utilizada como instalação militar e não temos autorização para percorrê-la.

Caminhamos durante hora e meia pelo chão, ladeados por aquela parede de pedra encaixada como peças Lego. Uma forma diferente de apreciar a obra gigante, agora atravessando plantações de milho, canais de irrigação, por vetustas choupanas cercadas por mato bravo e flores do campo. Daqui percebia-se bem o estado precário em que se encontra esta extensão da muralha de Gubeikou, por nunca ter sido restaurada – a não ser por reparos específicos em áreas de risco.

Passadas largas horas, para lá das cinco, nada de sol nem de pessoas. O frio e a época do ano explicavam uma parte do deserto de gente, a outra era a remota localização dos roteiros turísticos. Ainda que acompanhado, sentia-me entregue à solidão que abraçava com regozijo, mesmo nada ali tendo, sentia-me pleno de tudo.

Jinshanling, que significa Montanha da Escarpa Dourada, estava à distância de um olhar, onde avistáramos os primeiros sinais humanos. O vilarejo converteu-se ao turismo e a maior parte dos locais assentou arraiais junto à muralha, à espera da chegada dos visitantes. E foi aqui que recebemos a notícia do pesaroso guia.

-Não há estrelas no céu. Não vamos poder dormir sob o dorso do dragão.

Até o vento parou de assobiar. Fez-se um silêncio cortante. John prosseguiu na explicação.

- Não vão querer passar a noite numa das torres de vigilância durante a tempestade que se aproxima. É muito perigoso.

Mostrámos determinação em ficar – mais acérrimos, os islandeses falaram da sua ilha de fogo e de gelo – até porque as torres eram cobertas, ainda que as janelas, abertas, não filtrassem a chuva que pudesse cair.

A contragosto, tentando recusar o óbvio, seguimos, na viatura que nos levou até Gubeikou, para uma quinta numa aldeia ali perto. Espartanos, os quartos apenas albergavam as camas de ferro individuais e um roupeiro que resistia contra a acção da humidade. Havia água morna e a cama tinha colchão, mas adormeci a pensar no chão duro e enregelado da muralha e na tenda que me serviria de tecto. Um viajante nunca saberá lidar com a frustração por ter falhado um propósito.

A lenda de Hei Gu

Choveu a noite toda. Exausto, nem a ouvi cair, mas o exterior ensopado não deixava margem para dúvidas. A precipitação passara o testemunho à humidade e ao nevoeiro. De regresso a Jinshanling, passámos por alguns turistas de idade avançada a caminhar na beira da estrada, apoiando-se em robustos cajados. Pela moldura dos vidros baços da viatura fitava a altaneira muralha, guardiã da nação milenar. Aqui, no chamado Segundo Vale, o muro exibia-se ainda mais deteriorado do que anteriormente. Já acomodado nas costas do dragão de pedra, fico extasiado com o clima sombrio que a neblina incutia às ruínas. Mais baixas do que na véspera, as nuvens engoliam a muralha no alto das escarpas. A humidade não permite perpetuar o momento em imagens, mas eterniza-se-me na memória. Era preciso seguir para Oeste, em direcção a Simatai, a uns 10 quilómetros de distância, o equivalente a quatro horas de caminhada, dependendo do tempo de cada paragem. Para lá de Simatai, alerta-nos John, “o percurso torna-se demasiado perigoso, sobretudo a partir do 12.º castelo”.

A paisagem acidentada mantém-se invariavelmente rude, de vegetação rasteira, praticamente inexistente, ornamentada por uma imensa coroa de pedra, que circunda montes, vales e montanhas, sempre pelas cotas mais elevadas. No início, quando se sai de Jinshanling, a muralha encontra-se em bom estado de conservação, facilitando o aquecimento das pernas para a impiedosa série de degraus que nos levam de uma a outra torre de observação. À medida que se avança lentamente para Simatai, volto a sentir a magnitude deste gigante dragão de pedra. Talvez sejam os membros inferiores a clamar por um piso regular cada vez menos presente nesta área e que se agudiza a cada lance de escadas semidestruídas. Há trechos que estão, literalmente, a cair aos pedaços. Há partes onde somos forçados a sair da muralha, ou porque ela não existe ou porque as escadas para ascender à torre seguinte são um amontoado de pedras roliças e perigosas. Depois, há torres inteiras, torres sem tecto e torres sem parede alguma. Há secções onde se caminha sobre pedra lisa e gasta, outras sobre tijolos irregulares e outras simplesmente sobre as pedras do interior do muro.

- O grau de preservação varia muito, mas, por norma, esta zona, terá uns 300 anos de idade, informou John numa altura em que o cinza nubloso cede, finalmente, lugar ao azul celestial, conferindo um brilho mágico ao lugar. Aquela luz foi o catalisador para o resto da jornada, depois da decepção provocada pelo São Pedro chinês do dia anterior. À medida que a Muralha se aproxima de Simatai, o estado de conservação (na verdade de modificação) vai-se acentuando, mas pelo menos ainda é possível ver as pedras originais da dinastia Ming. Com o bom tempo apareceram os vendedores vindos do nada, como invasores das tribos mongóis. Naqueles tempos, um infindável número de soldados protegia a Grande Muralha de atacantes. Agora são os visitantes a lidar com esta espécie de praga que retira fascínio ao lugar. Fazem lembrar aqueles bonecos de peluche movidos a pilhas alcalinas, sem parar, correndo em passos curtos de um lado para o outro. Oferecem t’shirts de gosto duvidoso, água, bolos caseiros, café e, até, cerveja. São peritos em negociar: uma senhora de pele tisnada e enrugada pela acção do sol apresentou-me uma proposta curiosa.

- Está cansado? Ofereço-lhe uma cama por 100 RMB/hora (cerca de 13€), anunciou numa mescla de inglês com mandarim.

Uma cama? Sorri perante proposta tão inusitada, sem perceber onde raio a vendedora, de baixa estatura e enfiada em vestes grossas e tradicionais, ia arranjar a dita cama. Mas nem quis saber, e por todas as razões – querer prosseguir caminho e livrar-me dos vendedores da área.

Após cerca de uma hora de caminhada, o insólito aconteceu. Adivinhem quem me aparece novamente na muralha? Ela mesmo, a baixinha persistente e divertida.

- Agora a cama é mais cara, porque vejo que estás cansado.

Não contive a gargalhada e perguntei-lhe como tinha surgido do nada. Ou não entendeu a pergunta ou não me quis deslindar o mistério. Fiquei a pensar na miríade de segredos que deveria encerrar a Muralha, ocultos dos visitantes de passagem como eu e respectivos companheiros de jornada.

Simatai estava cada vez mais próxima. Agora sem “poluição” humana, visual e auditiva por perto, apenas a forte presença dos elementos da natureza. O percurso estava praticamente concluído, após conquistadas, com suor e sem lágrimas, três dezenas de torres neste segundo dia de caminhada. Acima de Simatai, uma moderna ponte giratória atravessa agora o rio e os mais aventureiros poderão realizar um último percurso de descida para o vilarejo por meio de uma roldana deslizante sobre um hirsuto cabo. Os islandeses nem pestanejaram e seguiram que nem tarzans (vikings?), deslizando por modernas lianas. Quanto a mim, pareceu-me pouco romântica a forma brusca como me despedia de um dos mais aclamados monumentos terrestres.

A descer para a última etapa, John relata-nos, a mim e ao Juan, a lenda de Hei Gu, a menina negra.

- Hei Gu  era filha de um general da dinastia Ming. Estava aqui para cuidar do pai, mas acabou por morrer numa das torres de vigia, atingida por um raio numa noite de tempestade.

A história de John parecia-me uma justificação tardia para o facto de não termos acampado na Grande Muralha. Não me pronunciei mas o guia mostrou-nos uma placa, onde se podia ler, em mandarim e inglês, para as pessoas abandonarem o local durante as tempestades, por o lugar ser fortemente vulnerável a raios.

Parece que, afinal, foi uma ideia feliz a de não ter passado a noite com o dragão.

 

GUIA PRÁTICO

Quando ir

É aconselhável visitar a Grande Muralha, e demais pontos de interesse na China, entre Maio e Outubro, quando o clima é mais ameno, embora estejam abertos ao visitante em qualquer altura do ano. Ainda assim, uma ressalva para três períodos a evitar: durante o Festival da Primavera (em Janeiro ou Fevereiro), no Dia Internacional do Trabalhador (1-7 de Maio) e no feriado do Dia Nacional (1-7 de Outubro). Estes feriados prolongam-se por sete dias, permitindo aos chineses partir em massa rumo aos pontos principais do país, levando à escalada dos preços e sobrelotação dos hotéis.

Como ir

Apesar dos 13.755 km de distância e das cerca de 15 horas de voo (consoante a companhia aérea), já com uma escala, conseguem-se preços inferiores a 600 euros entre Lisboa e Pequim. A partir da capital chinesa, a forma mais simples e barata de alcançar a muralha é de transporte público. Para Badaling "basta" apanhar a linha 919, mas apenas os autocarros que se encontram no estacionamento de Shing Mun. Já para Gubeikou, a opção para quem quiser um contacto mais íntimo com a muralha ou, se o clima o permitir, pernoitar no grande dragão, aconselha-se a marcar com uma agência em Pequim ou a alugar um táxi e fazer o percurso a expensas próprias.

Onde ficar

Se optar por viajar de forma independente, pode alojar-se no hospitaleiro hostel Great Wall Box House, com quartos duplos ou dormitórios, localizado em Gubeikou, ainda que o vilarejo pouco ou nada tenha para oferecer. Por seu turno, Jinshanling dispõe de vários restaurantes e locais para pernoitar

Conselhos úteis

Há várias agências que tratam das caminhadas com possibilidade de acampar, ainda que algumas empresas operem apenas entre Maio e Setembro. Os preços também variam consoante a oferta, mas tente integrar um pequeno grupo, de modo a partilhar a viagem e, sobretudo, as despesas, já que um viajante individual pode ter de pagar entre 200 e 400 euros pela experiência. Leve bastante água e comida rápida (de preferência, traga algo de Pequim, já que Gubeikou tem pouco comércio) e calçado apropriado. O preço contempla quase tudo. E este “quase” prende-se com algumas “portagens” a meio do caminho, principalmente para atravessar pontes. São quantias de pouca monta, mas obrigam o caminhante a levar dinheiro.

Informações

A Grande Muralha é cada vez mais demandada, apesar dos esforços para restringir o número de visitantes. A apinhada secção de Badaling foi limitada a pouco mais de 50 mil pessoas/dia, mas garante-se que esse número duplica (triplica?) nas épocas altas, sem qualquer tipo de controlo. E como Badaling e os mausoléus Ming são apenas duas das 16 secções da Grande Muralha abertas aos visitantes, ninguém sabe ao certo quantas pessoas visitam anualmente a obra colossal. A viagem perfeita seria a de visitar este enorme conjunto de panos de muralha desde o mar Amarelo até às planuras do deserto de Gobi. Talvez assim fosse possível sentir a sua colossal dimensão – física e histórica – e compreender a função que teve, de defesa do império chinês, face aos invasores do Norte, da Manchúria e da Mongólia. Mas esta viagem é utópica. Por um lado, a dimensão da obra fez com que as várias muralhas (muitas nem se tocam) fossem construídas em diferentes locais, de diferentes materiais – pedras de calcário, tijolos ou granito – e de técnicas construtivas variadas. Estão também em diferentes estados de conservação: a manutenção foi feita de modo desigual, dada a extensão do monumento. Por outro lado, a estrutura organizativa da China não facilita a visita. Não há, fora das grandes cidades, apoio de hotéis, restaurantes ou bombas de combustível. Esta realidade é agravada pela impossibilidade de comunicar noutra língua para além da local – o mandarim, ou variantes.

Sabia que...

...A muralha foi construída por milhares de camponeses que, em troca do trabalho, eram dispensados do pagamento de impostos? Há registos a garantir que, devido à má alimentação e do frio, cerca de 80% dos operários morriam enquanto trabalhavam.

…A dinastia Ming (1368-1644) criou tijolos resistentes, feitos de barro aquecido a 1150 graus? Saindo dos fornos, alguns a 80 quilómetros do muro, eram levados em carroças? A argamassa era feita com barro e farinha de arroz.

…As torres de vigia abrigavam até 50 militares? A distância entre elas variava, mas seguia um critério: cada torre tinha que visualizar os sinais emitidos pela vizinha.

...A comunicação entre as torres era feita através de sinais de fumo preto? No auge da muralha, o combustível mais usado era esterco misturado com palha. Na falta desse material, os soldados improvisavam com bandeirinhas pretas ou brancas.

...As torres eram ligadas por passagens de seis metros de largura, suficientemente grandes para permitir a rápida movimentação das tropas em caso de ataques dos inimigos.

...Em 1211, Gengis Khan (1162-1227) venceu os chineses que se defendiam na área Leste da construção? E que a muralha salvou a China em 1482, quando os mongóis ficaram presos contra as fortificações?

...Na década de 1950, durante o reinado de Mao Tse Tung, o governo exortava a população a “fazer o passado servir o presente”, incitando os camponeses a demolir a muralha e a reutilizar a pedra e os tijolos nela usados nas suas casas (foi, aliás, nesse tempo que o governo chinês ordenou a destruição das muralhas de Pequim, para edificar fábricas do Estado)?

...Durante muito tempo, a Grande Muralha foi tida como a única edificação humana visível deste a Lua? Em 1938, ainda antes da conquista do espaço, no livro Second Book of Marvels , Richard Halliburton escreveu: "Os astrónomos dizem que a Grande Muralha é a única obra humana, no nosso planeta, visível a olho nu a partir da Lua". Posteriormente, com o estabelecimento de estações espaciais em órbita baixa, o mito renasceu, desta vez com a pretensão de que seria visível a partir da Estação Espacial Internacional (EEI). Apesar de a EEI orbitar cerca de mil vezes mais próxima que a Lua, continua a ser um desafio observar a Grande Muralha sem ajuda óptica, conforme reconheceu Yang Liwei, o primeiro astronauta chinês, que assumiu não a ter conseguido ver.

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