Fugas - Viagens

  • Joost Raeymaeker
    Joost Raeymaeker Manuel Roberto
  • À Descoberta de Angola
    À Descoberta de Angola

Joost, o belga que escreveu o primeiro guia de Angola em português

Por Catarina Gomes

A história de Joost De Raeymaeker em Angola começou num anexo do quintal da dona Glória, no Porto.

“Tu não vás, tu vais morrer, há acidentes, matam pessoas.” Quando esteve pela primeira em Angola, em 2007, cinco anos depois do fim da guerra, a ideia de ir fazer turismo parecia, aos angolanos com quem Joost se cruzava, uma loucura. Talvez por não ter vivido ali durante a guerra, a ele parecia-lhe a coisa mais natural a fazer, estar num país que não se conhece, apanhar um autocarro e ir conhecer os sítios, ir falando com as pessoas que se conhece pelo caminho. E ele só queria ir até Benguela, pelo amor de Deus.

“As pessoas tinham traumas, que o autocarro ia ser assaltado pelo caminho, que as estradas estavam em más condições. ‘Morre-se muito na estrada’.” Fez os cerca de 400 quilómetros que separam Luanda de Benguela sem incidentes, à parte os buracos das estradas.

Joost descobriu que, de tal forma isso de querer fazer turismo em Angola não era usual que, quando voltou a Lisboa, não encontrou disponível qualquer guia turístico que o pudesse ajudar em andanças futuras. O primeiro guia, um Bradt sobre Angola, escrito em inglês, sairia apenas em 2009 mas constatou que “era só Luanda e pouco mais”. “Havia províncias com uma ou duas páginas.”

Pensou que podia ser ele a fazer o primeiro guia de Angola escrito em português. O livro que resultou das suas muitas viagens no país saiu em 2012, chama-se À Descoberta de Angola (foi editado pela Oficina do Livro). Depois de ter ido muito além de Benguela — o livro inclui 15 percursos de Norte e Sul — já pode dizer com propriedade que aquela cidade está entre os sítios de Angola de que mais gosta. Na sua lista de preferências estão o deserto do Namibe, a Restinga do Lobito, a província de Lunda Norte e do Uíje.

As diferenças da língua

Mas voltemos atrás. Não se pense que Joost De Raeymaeker, 47 anos, é um solitário aventureiro a quem apenas o acaso trouxe a este país africano. Pode dizer-se que a sua história com Angola começou num anexo do quintal da dona Glória, no Porto. Ele era um estudante belga, de 19 anos, a fazer o seu ano de Erasmus, o seu 3.º ano de História, numa cidade do Sul da Europa.

Acontece que no tal anexo da dona Glória viviam um russo, um senegalês e um são-tomense. Foi este último quem lhe foi apresentando a pequena comunidade africana que então, em 1992, existia no Porto, seriam umas 50 pessoas, de angolanos a cabo-verdianos.

“Conheci assim a minha primeira mulher”, uma angolana. Passado o ano de Erasmus acabou por voltar para viver quase seis anos no Porto. Casou duas vezes na vida, coincidência ou não, as duas eram angolanas. Tem uma filha de 17 anos do primeiro casamento que, quando acabar o 12.º ano irá estudar para a Bélgica, e outra de dois anos que não sabe onde irá estudar quando tiver idade de ir para a escola mas que agora vive com ele em Luanda.

Habita um triângulo cultural, Bélgica, Portugal, Angola, em que, às vezes, já lhe surge tudo misturado: “Já sonhei com a minha mãe [que é belga] a falar português, com a minha mulher [que é angolana] a falar flamengo.” Uma coisa é certa, diz Joost: “A minha língua é o português.” Que português?

Sentado numa esplanada da marginal de Luanda, na cervejaria Rialto, diverte-se a falar das diferenças da mesma língua em territórios distintos. Aqui em Angola às vezes “está complicoso”, “há makas” (problemas), pode ouvir-se alguém a dizer “cheguei atrasado “através” [expressão que significa ‘por causa de’] do trânsito”. Em Angola há o verbo calorear (ter calor) e desconseguir (que é quase o mesmo que não conseguir) e a palavra “ainda” pode ser sinónimo de “não”. Já fizeste? Ainda. O seu guia inclui um dicionário do português de Angola.

Aos que ainda pensam que é demasiado arriscado fazer turismo em Angola, aconselha: “Pega na tua mochila e vem.” E Joost nem sequer tem carta de condução — “a ver se tiro a carta um destes dias” —, as viagens que deram origem ao guia foram feitas de autocarro, em caixas de carga de carrinhas e camiões, como pendura de motos, 180 dias, de 2010 a 2011.

Em Luanda, aconselha ao conhecimento da cidade usando “a extensa rede de candongueiros”, que são carrinhas Hyace azuis e brancas que circulam por todo o lado e em que, de vez em quando, alguém abre a janela e grita um destino. Mas não se conte em circular na capital procurando por nomes de rua, a navegação da cidade é oral, não é feita de mapas nem endereços, assenta em referências de locais que por vezes já desapareceram. Há nomes gritados pelos candongueiros que ficaram com nomes de sítios que deixaram de existir, por vezes são nomes do tempo colonial que persistem como referências, mesmo que já tenham sido rebaptizados depois da independência.

Em Angola Joost sente que o encaixam numa categoria diferente da dos portugueses, o que lhe facilita a vida. Joost não é “tuga”, é “camone”. Ele é estrangeiro, não é português. Sente que, na relação com o povo colonizador, há “os saudosistas, os que dizem que “na altura é que as coisas funcionavam”, e outros “que não podem com os portugueses”.

Como estrangeiro também se sente mais livre do que no país onde nasceu. “Na Bélgica sentia-me mais preso”, e abana os ombros, como que a soltar-se, “mais amarrado às expectativas do que é esperado que faças da vida”. Estudou música e depois História, em Angola vive dos seus trabalhos como fotojornalista.

Mas Joost transporta consigo a sua educação belga, aquela coisa “de pensar sempre nas consequências” dos seus actos, mas também formas de agir que já são menos belgas. Sente isso quando volta a casa. “Na minha família já sou considerado ‘um caso’”, porque, por exemplo, já não chega a horas a lado nenhum. Um exemplo: quando diz que vai visitar o irmão “à tarde”, a família espera que ele apareça ao início da tarde. Ora, para Joost “a tarde é grande”. “Para eles a tarde é logo a seguir ao almoço.”

Há esse lado de soltura que o atrai nesta sua vida africana. Ele faz jogging pelos sítios por onde passa em Angola e é nessas corridas que se cruza com uma das coisas que mais aprecia no país, a espontaneidade. Quando corre na rua já ouviu todo o tipo de frases — já lhe disseram “Volta para a tua terra” ou “Agarra que é ladrão”, mas também “Esse cota corre bué”, ou “O pula [branco] até parece que voa”. E ele vai-se deliciando com estes comentários que, para o bem ou para o mal, diz que são sempre “autênticos”.

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