Caminhamos em terra mas assim que entramos no Museu do Ar, junto à Base Aérea N.º1, em Sintra, parece que não paramos de voar. Num imenso hangar onde os olhos passeiam por aviões e partes de aviões por todo o lado, recebem-nos os pioneiros da aviação — ali uma passarola, ali o João Torto que tentou voar com as suas próprias asas, além imagens, quadros, fotos históricas que percorrem a história da TAP e da aviação. O Museu do Ar, com sede principal aqui, inclui muito mais aviação mas agora é tempo de celebrarmos a TAP e é o seu núcleo histórico que nos faz voar até estas paragens.
Quando por cá passeámos, estávamos a dias da comemoração da data fundadora da companhia aérea nacional, 14 de Março de 1945, data em que Humberto Delgado assinou a ordem que criou os Transportes Aéreos Portugueses. Este sábado, é com festa e muitas memórias que se celebram, também aqui no museu, os 70 anos da TAP. Não é só o núcleo histórico da companhia que estará sob o foco: é inaugurada uma grande exposição dedicada à lendária Linha Imperial, iniciada a 31 de Dezembro de 1946, e mostra-se um monumental trabalho, o do restauro de um DC3 Dakota, preparado ao milímetro para nos fazer viajar a esses tempos primordiais por uma equipa de voluntários dedicados. É ele o centro deste espaço e em seu redor há ainda muita gente a aperfeiçoá-lo e a ultimar preparativos enquanto outra equipa vai terminando detalhes da mostra histórica, mais um pormenor que explica por que é que a TAP está interligada com a identidade nacional.
Como se estivéssemos também prestes a levantar voo, ao longo do passeio por esta casa em base aérea nunca deixamos de ter os aviões nem no olhar nem nos ouvidos. Lá dentro, num cubículo, Adelina Arezes, responsável pelo Museu da TAP, escolhe peças que são réplicas de fardas dos anos de 1940. “Qual é o número da Cristina?”, pergunta. Ainda ninguém sabe. Adelina, que foi assistente de terra mas é também licenciada em história de arte, dedica-se agora à história da companhia e aos objectos que a mostram. Passeamos com a especialista por entre narizes de aviões, velhos aparelhos de controlo, grandes e cinematográficos painéis, carros de ensaio de pista, malas repletas de aparelhos ou precursores dos simuladores de voos (ali um parece quase uma diversão infantil vintage). Além um poster promete “samba holidays” no Rio com a TAP, ao fundo desfilam anos de fardas (e “que marcavam também as modas cá fora”, confirma-nos Adelina). O conjunto de fardas acompanha também os tempos, as modas e as necessidades, das mais antigas (como as réplicas dos fardamento da equipa de voo da Linha Imperial, com ar de gente aventureira dos anos 1940, que inclui botas “para os mosquitos e os escorpiões não lhes morderem”), até aos tempos mais modernos, passando por peças assinadas por estilistas. “É uma pequena mostra do que há, há muitos mais uniformes, claro.” Muitos deles, tal como loiças e muitas outras peças, poderão igualmente ser vistos em breve numa grande exibição da imagem da TAP ao longo dos anos no Mude — Museu do Design e da Moda.
Curiosos são também os serviços de refeições usados. Do plástico das classes económicas às porcelanas e vidros para as superiores. Até barro: tempos houve em que o caldo verde era servido na sua tradicional malga, assim como até o frango na púcara tinha direito ao seu recipiente vermelhinho com o nome da especialidade em letras branquinhas. Ou aquele serviço em alpaca, uma liga de prata, para as linhas de África, que incluía conjunto para servir caviar.
No hangar museológico, admiramos maquetas. “São muito delicadas e estragam-se com facilidade, ou vêm com uma janelinha mal colocada. Mas os modelistas e voluntários dedicam-se com ‘paixão’ a restaurar e solucionar tudo”, explica a responsável.
Pelas paredes, toda a história da TAP é lembrada. E há momentos emocionantes (não) perdidos no tempo. Como a foto do Almirante Gago Coutinho, o homem que com Sacadura Cabral fez a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, em 1922, sentado num avião moderno durante uma viagem experimental pré-estreia da rota Lisboa-Rio. Tinha 86 anos. “Já muito velhinho, foi convidado como consultor técnico, era uma viagem experimental e ainda foi fazendo cálculos…”
Enquanto nos distraímos na história, Adelina continua a trabalhar na finalização da mostra A Linha Imperial - uma ponte entre a Europa e África. “Era uma aventura”, resume. Imagine-se um voo de 24.540km, em 12 escalas, num destes DC3 que estão a restaurar à nossa frente. Materiais históricos ajudam-nos a perceber melhor este milagre aéreo, intrinsecamente ligado à história do país. Ali vemos o relatório de viagem do serviço inaugural ou talões de embarque (um dá conta do pagamento de quase 30 contos por passagens). E veja-se o horário: na quarta-feira às 14h saía de Lisboa, na terça às 18h aterrava em Lourenço Marques. Foi você que pediu uma volta a África? Ia parando, Marrocos, Senegal, Gana, Gabão, Luanda (sendo algumas paragens apenas técnicas)… Até Maputo, ainda haveria paragens no Congo ou Zimbabué. O preço total do voo de Portugal a Moçambique não era low cost: 14.470 escudos ($9,607 para Luanda) — e como mandava a tradição então, lê-se, estas tarifas eram “oneradas por taxas de aeroporto e imposto do sêlo”.
O avião da história
“Isto é tudo muito bonito. Mas se não houvesse o grupo de voluntários não havia avião restaurado nem havia festa”, lembra Adelina.
É que o avião no centro deste mundo, o Douglas DC3, C3-TDE, é a menina do olho da celebração e foi restaurado graças ao trabalho árduo de quase duas centenas de voluntários e à iniciativa do comandante Carlos Tomás, na TAP desde 2001, que coordena a equipa de recuperação do Dakota. É “o homem do avião”, dizem-nos. A “paixão” chegou a tal ponto que o grupo criou uma associação a partir do projecto, o Vintage AeroClub. Em redor do avião, os voluntários ultimam os trabalhos e sente-se ainda o cheiro das tintas que ajudam a devolver ao aparelho o exacto aspecto que teria um exemplar igual que voasse na Linha Imperial.
Este aparelho em específico nunca voou comercialmente na TAP mas teve uma grande vida: bateu-se pelos Aliados na Segunda Guerra Mundial (Carlos sonha trazer cá se não quem o usou pelo menos familiares desses militares), passou pela Aer Lingus e Israel e chegou à Direcção-Geral de Aviação Civil, que o passaria à TAP para funções paralelas, como voos técnicos e de treino. Nos anos 1980 foi para o museu.
“Estava todo cinzento, o tecto estava a cair.” Vale a pena consultar o site do AeroClub, que acompanha a recuperação passo a passo, para ter uma ideia do “milagre” aqui feito. Propôs-se à TAP a recuperação do avião, mas “não havia pessoal, não havia dinheiro”, conta-nos Carlos. Depois “apareceram voluntários cheios de vontade de mexer num avião” e criou-se o grupo. A TAP apoiou a ideia, cedendo materiais e oficinas. Mas mesmo trabalhadores da empresa trabalham voluntariamente, fazendo as partes do restauro que lhe cabem fora das horas de trabalhos de manutenção e outros. No grupo, contam-se 71 voluntários fora da TAP, 96 que trabalham para companhia. Houve ainda outras ajudas, como visitas de escolas, alunos que colocaram parafusos e aprenderam história ao vivo.
O avião foi estudado de alto a baixo, dos detalhes mais técnicos às molduras de madeira das janelas ou às formas das alcatifas usadas. Para conseguir “rigor e realismo”, agarraram em referências conhecidas mas também tiveram que “inventar” outras. “Esta curvinha na linha azul da pintura é o que nós achámos que numa época retro se faria assim, porque não há fotografias deste sítio”, “só há três fotografias dentro de uma cabine destas num avião da TAP a preto e branco”. Foram procurar instrumentos antigos, os bancos, os tecidos, as cores, refez-se a casa de banho (era com balde…). Mas “não se sabe tudo”, será este azul, não será?. Mas tenta-se respeitar a história ao pormenor — “o melhor que sabemos”. “Limpou-se a corrosão, levantou-se o chão, andou-se dentro das entranhas do avião.”
E optou-se por um aparelho de duas faces, duas histórias: de um lado, o aparelho voltou ao cinzento metalizado que os seus “irmãos” ostentavam noutros tempos e lê-se Transportes Aéreos Portugueses – Secretariado da Aeronáutica Civil; do outro, mantém-se a imagem da Direcção-Geral da Aeronáutica Civil. Agora estará restaurado e visitável para “40 ou 50 anos”. Ou mais. O certo é que ninguém resistirá a entrar avião adentro e sentar-se num dos bancos durante a visita guiada para sentir-se passageiro desses anos de 1940 (e apostamos que ninguém vai resistir à respectiva selfie..). E será que este avião ainda poderia voar, perguntamos? “Tudo é possível”, responde Carlos.
Enquanto deixamos esta TAP museológica, Adelina, Carlos e companhia continuam atarefados no seu trabalho de preservação da nossa memória colectiva. Cá fora, na parede do museu, uma frase eterna inscrita na fachada deixa o aviso para os tempos que passaram e para os que aí vêm: “O dever da memória”.
TAP 70 anos
O programa de celebrações da TAP inclui várias iniciativas, como um site dedicado ao aniversário, concurso de ideias TAP Creative Lauch, passatempos e promoções, um novo vídeo de segurança ou a preparação de uma outra grande exposição no Mude - Museu do Design e da Moda dedicada ao “design, identidade e imagem da companhia aérea nacional”. Para esta mostra, a empresa está a pedir a todos que tenham “cartazes, objectos ou indumentária da TAP” para entrarem em contacto com os responsáveis pela selecção (via tap70anos.mude@ gmail.com ou T:218171898).
Museu TAP no Museu do Ar
Granja do Marquês
2715-021 Pêro Pinheiro, Sintra
Horários: De terça-feira a domingo, das 10h às 17h. Encerra à segunda-feira.
Tel.: 219678984
www.emfa.pt/www/po/musar