Fugas - Viagens

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Sete dias na vida dos intha, os astuciosos filhos do lago

Por Sousa Ribeiro

Exótico e misterioso, o lago Inlé, na Birmânia, é fonte de inspiração e de lendas intermináveis, um cenário por onde se passeiam algumas das minorias que dão vida às aldeias e mercados. E, pelo meio, elegantes e silenciosos mosteiros.

Alaung Sithu, o rei de Bagan no século XII, puxou do sabre e abriu uma fenda na montanha que, imponente, se posicionava à frente da sua embarcação durante uma expedição pelas fronteiras do seu glorioso reino. De imediato, as águas do rio começaram a inundar o vale e, desta forma, nascia o lago Inlé, onde Alaung Sithu, acompanhado de 36 famílias, decidiu instalar quatro núcleos — e ainda hoje, quase mil anos depois, o lugar abriga quatro aldeias principais: Heya Ywa Ma, Nam Pan, Pan Pon e Naung Taw.

Na sua placidez e na sua quietude tão doce, o lago Inlé, um dos cinco lugares mais visitados na Birmânia, é uma fonte de inspiração e de lendas intermináveis que os 70 mil intha, os “filhos do lago”, se encarregam de preservar e popularizar.

Dois irmãos, nativos de Dawei, no Sul do país, chegaram a Yaunghwe (o nome original de Nyaungshwe) em 1359 para servirem, com a força dos seus braços, o Shan sao pha local (o senhor dos céus). O chefe tribal ficou de tal modo satisfeito com a capacidade de trabalho dos dois irmãos que, pouco tempo depois, convidou mais 36 famílias daquela cidade birmanesa — e é destes migrantes que descendem todos os intha que vivem em redor deste lago com 22 quilómetros de comprimento e seis de largura, abraçado por duas cadeias montanhosas, Sin Taung para leste e Than Taung para oeste, culminando a 1500 metros de altitude.

O menino, um dos descendentes desses pioneiros, com uma expressão sorridente, olhos negros como o carvão, dentro das suas roupas decoradas com dezenas de quadrados e uns chinelos nos pés, ensaia uma dança sincronizada com as raquetes de ténis de mesa que lhe oferecera na véspera; não tarda a cansar-se da coreografia e marcha agora à minha frente, como um soldado, para cá e para lá, erguendo os braços e as pernas com elegância e movimentos delicados, indiferente, como eu, ao rumor que sobe do rio sulcado por centenas de barcos ou aos transeuntes que calcorreiam a estrada de terra batida que se estende para lá do pátio.

- Brother, já lhe trazem a bicicleta. Um ou dois minutos, assegura-me Yin Yin.

- Obrigado, sister.

- O que quer comer hoje, brother? Peixe ou carne?

- É indiferente, sister. Deixo ao seu critério.

A criança senta-se ao meu colo, com o seu carrinho de plástico, sob o alpendre de ripas de madeira de múltiplas tonalidades da Four Sisters Inn, fazendo da minha perna uma estrada onde inventa curvas antes de Ma Pyone, outra das irmãs, o levar pela mão quando a bicicleta que alugara dobra a esquina.

Um casamento

Todos os sons pareciam amigáveis naquela manhã dolorosamente clara: o monge cruzando a ponte no seu passo vagaroso, a criança, despida de roupa e de preconceitos, brincando com a sua bóia improvisada nas águas escuras do canal onde as mulheres, sem erguerem o olhar, lavam as suas roupas, o ininterrupto vaivém de bicicletas que se movem silenciosamente e os cheiros intensificados pela humidade das águas banhadas pelos raios filtrados pelas folhas das árvores.

- Mingalaba, mingalaba – a saudação repete-se até à exaustão neste território onde o sorriso é eterno.

E, de repente, travei, impressionado por aquele colorido, como se a Primavera acabasse de despontar; o meu olhar curioso, fixado num ponto, despertou a curiosidade alheia e, ainda respirando com dificuldade, após o esforço despendido, senti a mão de um estranho agarrando o meu braço direito, mão tão amigável com os sons, conduzindo os meus passos para uma das mesas do restaurante onde fui literalmente obrigado a servir-me de chamuças, de chá e de cigarros que enfeitavam as mesas dispostas sem obedecer a qualquer ordem.

- Eles fazem questão, aceite por favor, para não os desiludir. É uma família pobre mas extremamente educada e muito querida no nosso bairro.

Pu Sue Sue, também ela uma “filha do lago”, falando fluentemente inglês e contrariando a tendência naquele espaço acolhedor, faz as apresentações.

- Este é Mg Kyi Soe.

O noivo estende-me a mão e, ao mesmo tempo, numa demonstração de respeito, baixa a cabeça.

- Esta é Ma Phyu Win.

A noiva, ainda mais tímida, sorri com os olhos e estreita-me a mão.

Trocam, entre eles, palavras que não entendo mas percebo que perguntam algo a Pu Sue Sue. Ela, com a sua tez escura, esboça um sorriso, olha uma vez na minha direcção e, depois, volta a pousar o olhar no casal.

- Mg Kyi Soe diz que se sente imensamente orgulhoso por tê-lo entre os convidados e pede-me para lhe perguntar se não se importa de tirar uma fotografia com eles.

Um homem de estatura baixa, com um chapéu de palha enterrado na cabeça, estende-me um prato com mais chamuças e sinto, perante aquele olhar tão impregnado de simplicidade, que não posso recusar.

- Importa-se? – questiona, de novo, Pu Sue Sue.

Encaminho-me para um palco coberto com tapetes, antecedido, numa posição central, por um ramo de flores viçosas onde sobressaem algumas rosas vermelhas. Em fundo, um pano avermelhado encimado por uma tarja amarela e com alguns caracteres onde – explica-me depois Pu Sue Sue – se podem ler os nomes de Mg Kyi Soe e Ma Phyu Win que, eternamente envolvidos por uma aura de timidez, como se aquela não fosse a festa deles mas de todos os outros que cirandam à sua volta, se sentam num cadeirão protegido por um cobertor que, com as suas cores avermelhadas, alaranjadas e acastanhadas, personifica, naquele momento de comunhão, um elemento decorativo e não de conforto, a sua função básica.

Mg Kyi Soe veste uma camisa sem colarinhos imaculadamente branca, com uma rosa na lapela, e um longyi de minúsculos quadrados brancos e rosados que lhe cobre parcialmente os pés; de rosa traja também Ma Phyu Win, um longo vestido da cor dos chinelos semi-escondidos, transparente na parte superior e onde, à esquerda, no ombro, desponta uma espécie de laço; num dos braços, um relógio; no outro, o direito, uma pulseira de prata, combinando com o colar ao pescoço e os brincos.

- Este é Win Haing, o irmão mais velho de Mg Kyi Soe.

E ele, sem palavras e todos os sorrisos, serve-me mais chá.

Os recém-casados saem para a rua, os tinidos festivos ressoam no ar, à saída do restaurante há uma mesa com todos os presentes dos convidados. As mulheres saúdam a noiva efusivamente e incitam-na a juntar-se às brincadeiras tão pueris, procurando apartá-la de Mg Kyi Soe; mas ela mantém aquele semblante envergonhado e eu sinto, por breves instantes, que retiro protagonismo aos noivos, um sentimento que logo se dispersa quando escuto, uma vez mais, as palavras de Pu Sue Sue:

- Mg Kyi Soe, bem como toda a família, convidam-no a ir a casa deles. Pedem-me que lhe transmita que é um lugar simples, humilde, de gente pobre, mas onde se sentirão honrados em recebê-lo.

Basta atravessar a estrada, à esquerda ergue-se uma construção inacabada em madeira e, espalhados um pouco por todo o lado, ao ar livre, apetrechos de cozinha, resquícios de uma fogueira e galinhas errando sem destino, debicando aqui e acolá.

- Esta é a casa onde eles vão morar. Está a ser construída por Mg Kyi Soe, com a ajuda dos familiares e de alguns amigos nas poucas horas livres que lhes restam. Mg Kyi Soe trabalha como empregado de mesa num pequeno restaurante mas o grande sonho dele, desde criança, é ser jogador de futebol profissional, revela Pu Sue Sue.

Subo um lanço de escadas, deixo os chinelos à porta e entro num pequeno espaço, desprovido de mobília e assente em pilares de madeira, que serve de sala de visitas. Num quarto anexo, com uma única janela virada para a rua, onde o sol deposita os seus raios, os noivos vão abrindo os presentes.

- Esta é Daw Htwe, a avó de Mg Kyi Soe, apressa-se a dizer-me Pu Sue Sue quando regresso à sala onde já se agrupa uma grande parte da família. Há um relógio, uma televisão, um espelho, alguns utensílios de cozinha e uma mesa baixa onde repousa um termo.

- Ela pergunta se deseja chá ou café, traduz Pu Sue Sue quando os recém-casados se juntam a nós. Mg Kyi Soe murmura algumas palavras, audíveis mas indecifráveis, que Pu Sue Sue escuta atentamente e eu passo o olhar pelas muitas fotografias que decoram a sala, fixando-me numa em que o noivo posa com um equipamento desportivo e um troféu, ao lado de peças de bronze sobre uma prateleira encimada por um conjunto de medalhas. Pu Sue Sue vira-se na minha direcção.

- Mg Kyi Soe diz que o ídolo dele é Cristiano Ronaldo.

Prometo (e cumpro) enviar-lhe uma fotografia, tirada em 2004, na qual estou com o jogador português, durante uma entrevista, no Parque das Nações, em Lisboa. Ele sorri e volta a recorrer a Pu Sue Sue.

- Mg Kyi Soe agradece e gostaria de o convidar a assistir à final do torneio de futebol, em Nyaungshwe.

A avó, com resquícios de tanaka (uma mistura de água e sândalo usada, há mais de 2000 anos, como protector solar e maquilhagem — porque uma pele mais branca é sinónimo de beleza — por mulheres e crianças) na face, volta a encher-me a chávena, acende um charuto e estende-me outro.

- Daw Htwe nunca fumou um cigarro mas fuma charutos com regularidade, observa Pu Sue Sue.

Estes charutos, com pouco tabaco e muitas ervas aromáticas, são fabricados no lago Inlé e são o sustento de centenas de famílias — em média, cada mulher faz entre 800 a 1000 por dia, a troco de qualquer coisa como dois euros.

A tarde avança apressada quando, sentindo-me grato pela experiência, me faço à estrada e, na maior parte do tempo acompanhado apenas de um silêncio tão apaziguador, chego ao cruzamento onde, numa tabuleta de madeira, está escrito Red Mountain Estate, uma das duas produtoras de vinho na Birmânia. A subida é íngreme, levo a bicicleta pela mão e o suor escorre-me pelo rosto enquanto vou olhando as vinhas que se espraiam ao longo do vale vestido de um verde intenso. É tempo para um copo de Chardonnay e para a vista se perder no horizonte. O lago, como um espelho, reflecte a imponência das montanhas sob um sol já moribundo que pinta no céu os últimos suspiros alaranjados.

Hino à originalidade

Desperto com o ruído dos motores dos barcos que rasgam as águas do rio situado a meia dúzia de passos da Four Sisters Inn e caminho até uma das margens para ver de perto o intenso movimento das primeiras horas da manhã, ainda praticamente órfã de turistas. Enormes cestos, cheios de tomate, são transportados pelas embarcações até um armazém onde camiões, provenientes das mais diferentes zonas do país, se abastecem. Os intha, eternamente laboriosos e engenhosos, produzem mais de 40% de tomate do país, bem como, ainda que em menor escala, outros legumes que crescem nos seus jardins e hortas flutuantes atravessados por estreitos canais que permitem aos agricultores fazer a recolha sem abandonarem os barcos. Na verdade, os intha desenvolveram um sistema de cultura original perfeitamente adequado ao meio ambiente, construindo pequenas parcelas (um ou dois metros de largura e entre cinco a dez de comprimento) compostas por raízes que emergem da água e cobertas com terra, conferindo-lhe uma riqueza que é exacerbada por um aglomerado de algas utilizadas como fertilizante. Uma parte substancial da produção é canalizada também para os mercados que funcionam de forma rotativa no lago Inlé — um dia, uma aldeia, em Kaung Daing, depois em Maing Thauk, seguidas de Nam Pan, de Indein e, finalmente, de Thandaung e assim sucessivamente.

É um jovem intha quem me conduz ao longo do rio e, mal o lago se abre como uma boca, banhado pelos primeiros raios de sol que acentuam os prazeres da manhã, familiarizo-me com outras das facetas desta comunidade: a pesca. Apoiados sobre um pé, numa das extremidades da piroga, os pescadores mantêm-se num equilíbrio que aos meus olhos me parece precário, enquanto a outra perna, envolvendo o remo (o lago tem uma profundidade entre os três e os cinco metros), permite propulsar as suas frágeis embarcações. Astuciosos, os intha beneficiam desta técnica exclusiva para avistarem mais facilmente os peixes e os obstáculos mas, mais ainda, para ficarem com as mãos livres para manobrar, atirar à água ou recolher as oak saung, as suas grandes redes cónicas que há muito se transformaram num dos postais mais mediáticos desta espécie de Veneza da Birmânia.

Verdadeiros acrobatas sobre as águas, os intha pescam tanto nga-igyin, as grandes carpas saltitantes, como nga-yan, as enguias e os peixes-gato, uma actividade que intervalam com a agricultura (pescadores durante a manhã e agricultores pela tarde fora) e da qual, muitas das vezes, não retiram mais do que dois ou três euros ao fim de um dia esgotante e rodeados de um cenário que, aos olhos do turista — e só deste —, se afigura como magnificente, qual quadro poético e charmoso. O que muitos — e são cada vez mais — ignoram é que, se não forem tomadas medidas, o lago Inlé pode não passar de uma memória dentro de menos de cem anos, transformando-se num simples vale, tão elevados são os níveis de assoreamento em algumas partes. As causas são fáceis de enunciar: exploração próxima do limite (há cada vez mais pescadores, menos peixes e algumas espécies tendem a desaparecer), alterações climáticas (a água é cada vez mais fria), sobrepopulação (o lago e as suas aldeias acolhem 400 mil habitantes), proliferação de jacintos de água que obrigam à drenagem constante dos canais e acentuam a sedimentação, desflorestação (o abate de árvores é comum entre a população indígena, carente de meios económicos que lhe garantam o acesso ao combustível), um mar de fenómenos que, de uma forma ou de outra, contribui para perturbar o equilíbrio já de si frágil de um lago que ocupa hoje menos de metade da área que cobria há apenas 70 anos.     

De forma gradual, o governo tem vindo a inculcar no espírito dos locais a necessidade de, em conjunto, promoverem medidas que evitem o que seria uma verdadeira catástrofe (para a agricultura, a pesca e o turismo) e, nesse sentido, os últimos tempos têm produzido uma série de iniciativas (não ignorando a situação social, económica e ambiental da população, já que, de um total de 400 mil, 25% vive abaixo do limiar da pobreza) que tornam o futuro menos sombrio: se, em 2010, ano de grande seca, o nível das águas superou todos os mínimos, nos últimos cinco anos as melhorias em termos de conservação já se fazem notar, com a plantação de árvores, criação de equipas que se responsabilizam pela limpeza, incremento do cultivo em terraços e desenvolvimento do sistema sanitário e de enterro. Há planos a longo prazo para tornar o lago sustentável mas para já — e por um período de cinco anos — está em marcha um projecto que conta com o apoio da UNPD (programa de desenvolvimento sem fins lucrativos das Nações Unidas) e do governo norueguês que, em conjunto, disponibilizaram cerca de 2,5 milhões de euros para a conservação e reabilitação do lago Inlé, abrangendo 71 aldeias. 

Despertar no mosteiro

A alvorada já se anuncia quando percorro a estrada de asfalto que me leva, sem grandes demoras, até Shwe Yaunghwe Kyaung, menos de três quilómetros a norte de Nyaungshwe, de encontro a um dos mosteiros mais fotografados do Shan State, com as suas janelas ovais que, uma vez, ou outra, servem de moldura para os jovens monges sorridentes. As primeiras horas da manhã, ainda sem qualquer turista — saltam dos autocarros, fotografam a correr, como se estivessem a roubar e a correr voltam para os autocarros — são as melhores para errar por este território tão embebido de silêncio, assistindo ao ritual do despertar, da primeira refeição, gozando do privilégio de me identificar com as suas vidas, com a sua rotina, pisando o soalho onde dormem, tão desprovido de conforto, austero, meia dúzia de livros e um ou dois cadernos guardados religiosamente numa caixa sem pretensões, por vezes encimadas por posters de jogadores de futebol famosos. Quando todos eles, terminadas as suas tarefas matinais, se perfilam, descalços, para dar início a uma caminhada pelas ruas da vizinhança, recolhendo alimentos — designação tão abrangente quando, na verdade, se trata apenas de arroz — sinto que também é o momento de me retirar e de pedalar de volta à cidade, com destino ao mercado de Mingala, logo à entrada de Nyaungshwe.

Uma jovem, com um rosto bonito, parcialmente coberto de tanaka, lança-me um sorriso, seguido de uma saudação e eu, por muitas voltas que dê ao cérebro por entre o labirinto das vielas do mercado, onde erram intha e outras minorias, como os pa-o ou os palaung, não consigo estabelecer uma relação entre aquela demonstração de simpatia e um hipotético encontro, algures, durante a minha permanência no lago Inlé. Mais à frente, quando fotografo o interessante jogo de luz e sombra sobre as bancas, deparo com Pu Sue Sue, conduzindo um grupo de turistas para as compras da sessão conjunta de culinária, um curso rápido para uma confecção lenta que ela, juntamente com o marido, ministra de há uns anos a esta parte.

- Viste Ma Phyu Win? Ela anda por aí, às compras.

Pu Sue Sue percebe a minha hesitação.

- A noiva.

Fez-se luz sobre o meu cérebro apagado. Aquele sorriso, como uma dádiva, pertencia-lhe e, por breves instantes, cobri-me de vergonha por não ter reconhecido Ma Phyu Win.

- Vais ver o jogo, logo mais? A família vai estar toda lá, para apoiar Mg Kyi Soe, e tenho a certeza de que vão sentir-se muito felizes se perderes alguns minutos da tua vida para assistir à final do torneio.

A manhã ainda se espreguiça, limito-me a ser um vagabundo sem pressa, ora visitando pagodes dourados com as suas agulhas ameaçando furar o céu azul, ora entrando a medo em construções mais recentes, observando os monges a trabalhar, com um rádio de pilhas por perto, erguendo e baixando enxadas ao ritmo da música e sorrindo eternamente; ora perscrutando, como um turista num museu, à distância, o monge que toma banho com um fundo de roupas de uma tonalidade que me faz lembrar sangue seco, ora, mais à frente, vendo um grupo deles, divertido e fascinado, jogando à bola e tudo fazendo para que aquele objecto mágico não toque no solo. 

E chego, sob uma abóbada já com algumas nuvens, a uma clareira onde identifico duas minúsculas balizas, uma bola, já gasta de tanto pontapé, bem no centro, uma vaca caminhando por aquele palco, não coberto de relva mas de terra e pedras que, de tão pontiagudas, ameaçam rasgar a pele. O jogo começa, Mg Kyi Soe, com a sua camisola de riscas brancas e azuis, publicidade da AirAsia no peito, número 7 nas costas, como Cristiano Ronaldo, não precisa de muito tempo para expressar a sua superioridade perante os outros. Corre, cai, levanta-se, o sangue escorre-lhe pelas pernas, olha na minha direcção, cabeceia, faz um sprint, cobra um livre, marca um golo, fita a câmara que carrego e, do outro lado, sentada sobre a terra que o vento sacode, por entre a multidão, a família festeja. Alguém, segurando o microfone, no final, anuncia o momento da consagração: a equipa de Mg Kyi Soe é a vencedora e, num misto de orgulho e timidez, Mg Kyi Soe, o melhor marcador, ergue o troféu contra o céu.

Alaung Sithu, o rei de Bagan no século XII, ou o Shan sao pha local, muitos anos mais tarde, nem desconfiavam, nessa altura, que os intha poderiam mostrar mais atributos além da capacidade de trabalho.

Como Mg Kyi Soe, um “filho do lago”.

GUIA PRÁTICO

Como ir

Há muitas maneiras de chegar a Rangum, na Birmânia, mas nenhuma companhia aérea oferece voos directos desde Portugal. Uma das opções mais económicas passa por viajar com a TAP até Amesterdão e, desde a capital holandesa, com a Singapore Airlines, com uma escala em Singapura antes de efectuar o percurso final, por vezes operado pela Silk Air, até à mais importante cidade birmanesa. A tarifa para um bilhete de ida e volta ronda os 940 euros mas, com um pouco de tempo, é possível obter preços mais em conta, viajando até Kuala Lumpur e, daqui, com a Airasia ou a Malaysia Airlines, até Rangum, onde poderá recorrer ao transporte aéreo ou terrestre para chegar ao lago Inlé — este último, embora mais demorado (cerca de 12 horas), é bem mais barato e permite-lhe, ao longo do trajecto, começar a identificar-se com a população local. Viajando de autocarro ou de avião até ao aeroporto mais próximo, Heho, situado a 35 quilómetros de Nyaugshwe, implica sempre o pagamento, à chegada, de uma taxa de dez dólares (cerca de oito euros), o que lhe confere o direito a visitar todos os locais turísticos (não há qualquer controlo e nunca lhe será pedido o comprovativo). A única forma de percorrer a distância entre o aeroporto e a principal cidade em redor do lago é de táxi — e o preço varia entre os 20 e os 30 euros. Com um pouco de sorte, poderá sempre encontrar outros turistas e reduzir a despesa mas, caso não pretenda correr esse risco, o ideal é reservar através do hotel onde pretende ficar instalado (por norma praticam preços mais apelativos). 

Quando ir

A melhor altura para visitar o lago Inlé é entre Novembro e Fevereiro, período em que as temperaturas oscilam, durante o dia, entre os 20 e os 26 graus — quando a noite cai a diferença é abismal e os termómetros baixam drasticamente. A época mais quente estende-se de Março a Maio — muito perto dos 40 graus — mas, uma vez mais, devido à altitude, as noites são por norma frias. A chuva faz a sua aparição em Junho e prolonga-se até Outubro, tornando intransitáveis muitos dos trilhos nas proximidades do lago — logo uma fase do ano de todo desaconselhável para os amantes das caminhadas. 

Onde comer

Nada como falar da nossa experiência quando a temática é o palato — e se é em casa que, pelo menos muitos de nós, apreciamos os sabores, nada melhor do que tentar os pratos confeccionados com prazer no Four Sisters Inn, onde apenas tem de deixar expresso, pela manhã, antes de alguém se deslocar ao mercado, se prefere peixe ou carne, um ou outro acompanhados de uma cerveja Myanmar. De todas as vezes em que estive em Nyaugshwe apenas testei um outro e não me senti de forma alguma frustrado — o Lin Htett Myanmar Traditional Food, na Yone Gyi Road, uma atmosfera hospitaleira e uma gastronomia deliciosa. Mentira, ainda passei por outro espaço — a não perder —, não um restaurante, mas pelo mercado nocturno, com as suas bancadas de comida deliciosa e empregadas sempre sorridentes. 

Onde dormir

Em 2003, quando visitei a Birmânia pela primeira vez, facilmente se encontrava alojamento, mesmo sem ter feito qualquer reserva. Em 2012, quando me embrenhei pelo país para uma segunda experiência, a realidade era já bem distinta: a taxa de ocupação dos hotéis atingia níveis inimagináveis quase dez anos antes e encontrar um hotel com disponibilidade poderia inculcar no cérebro do viandante uma única palavra — pesadelo. Finalmente, na terceira incursão, em 2014, o número de turistas, embora superando todos os máximos, já rivalizava com o crescimento da capacidade hoteleira e não se revelava de todo difícil arranjar um quarto nas proximidades do lago Inlé.

Tanto em 2003 como em 2012 e, ainda, em 2014, sempre fiquei instalado no mesmo lugar, não propriamente um luxo mas um espaço que me fazia sentir como se estivesse em casa, convivendo com a minha família: dá pelo nome de Four Sisters Inn (foursisters102@gmail.com), no número 105, em Nan Pan Quarter, e, na verdade, elas são mesmo quatro irmãs, mesmo tendo duas o estatuto de emigrantes (uma na Holanda e outra na Alemanha), há duas resistentes que gerem o negócio como se acolhessem, a cada dia, não clientes mas amigos que, mais dia menos dia, regressam para reviver momentos que a memória se vai encarregando de apagar. Os quartos são básicos, pequenos, nem sempre com água quente na casa de banho, mas impregnados de uma aura romântica que faz esquecer tudo o que, por norma, está à nossa disposição em casa — e o preço não ultrapassa os 20 euros.

Nos últimos anos, os hotéis, como cogumelos, cresceram na área do lago Inlé, a maior parte construções inestéticas que visam o presente, ignorando o futuro e escamoteando o passado. Prevendo o afluxo do turismo em massa, o governo tem vindo a canalizar verbas para o aumento da capacidade hoteleira — no fundo, limitando-se a acompanhar a tendência das grandes cadeias internacionais — mas há espaços que, por tradição, continuam a atrair os clientes, como o Golden Island Cottages (www.gicmyanmar.com), em Nampan, em pleno lago e gerido por uma cooperativa tribal (Pa-O) e com preços por noite, para um duplo, que variam entre os 60 e os 80 euros. Mas o que não falta em Nyaungshwe, mais central, são bons hotéis, como o Teakwood Guest House (teakwood.htl@gmail.com), na Kyaung Taw Anouk Road, muito popular entre viajantes independentes veteranos (preços entre os oito e vinte euros) ou o Hotel Amazing Nyaung Shwe (www.amazing-hotel.com), na Yone Gyi Road (duplos a partir de 60 euros e suites entre os 80 e os 120).

A visitar

Há muitos lugares com interesse para visitar nas redondezas do lago e, entre eles, conta-se o Nga Hpe Kyaung, famoso pelos seus gatos treinados pelos monges para saltarem perante o olhar e as câmaras fotográficas dos turistas. Mas os monges que, por tradição, devem respeitar 228 regras monásticas, passaram, pelo menos no lago Inlé, a cumprir mais uma de há três anos a esta parte: não ensinar os felinos a saltar. Mesmo assim — ou talvez por isso — é um local que não deve ignorar, observando em silêncio a admirável colecção de imagens de antigos budas.

Informações úteis

Os cidadãos portugueses precisam de visto para visitar a Birmânia (não mais de 28 dias e sem a possibilidade de extensão). Em Portugal, não há qualquer representação diplomática mas pode tentar obter autorização para entrar no país através de alguns websites (visto à chegada) ou, ainda mais barato e eficiente, enviando o passaporte, duas fotografias, formulário devidamente preenchido, 25 euros num envelope (contendo um outro com a sua morada e dinheiro suficiente para um selo de retorno) para a embaixada em Paris (60, Rue de Courcelles 75008-Paris), que se encarregará de lhe devolver, no prazo de duas ou três semanas, o visto — também pode ser obtido nas embaixadas da Birmânia em Kuala Lumpur ou em Banguecoque, um processo rápido e pouco dispendioso. Um euro equivale a pouco mais de 1300 kyats, a moeda local. Depois de um período de total isolamento, desencorajando os turistas a visitar o país, a Birmânia abre as suas portas e, nas grandes cidades, já estão disponíveis, desde 2012, caixas multibanco espalhadas um pouco por todo o lado, apenas um entre tantos outros sinais de transformação visíveis no país. Levando dólares (as séries mais antigas já não são aceites) ou euros, é importante ter em conta que as notas devem estar bem conservadas (sem vincos ou riscos), sob pena de serem recusadas nas casas de câmbio.

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