Fugas - Viagens

  • Rafael Polónia, bem acompanhado, em Laos
    Rafael Polónia, bem acompanhado, em Laos
  • Carla Mota, no Senegal
    Carla Mota, no Senegal
  • Rafael Polónia, Catedral Vank, Isfahan, Irão, com outros viajantes
    Rafael Polónia, Catedral Vank, Isfahan, Irão, com outros viajantes
  • Rafael Polónia, em Garmeh, no Irão, com uma viajante.
    Rafael Polónia, em Garmeh, no Irão, com uma viajante.
  • Rafael Polónia, um chá no deserto (Jordânia)
    Rafael Polónia, um chá no deserto (Jordânia)
  • Rafael Polónia
    Rafael Polónia

De viajantes para viajantes

Por Andreia Marques Pereira

Foi você que pediu um líder de viagem? Conversámos com Rafael Polónia e Carla Mota e espiamos algumas agências com viagens singulares e com guias especiais.

Há o começo e muitos recomeços na vida profissional de Rafael Polónia. Até ao momento em que ganhou a coragem para assumir a certeza que há muito tempo tinha. Esse momento foi no final de 2014 e 2015 nasceu com o futuro finalmente a fazer-se presente. Para trás ficam muitos anos nos bastidores, agora é protagonista q.b.. Deixada a direcção de cena, entre o Teatro Aveirense, o Centro Cultural Vila Flor e o Centro de Arte de Ovar, arroga-se de novas direcções. E velhas também. 

Depois de anos como viajante incansável, que o levou a demitir-se várias vezes de empregos para empreender longas jornadas pelo mundo, depois de ter vestido a pele de líder de viagens, que ele considera uma espécie de direcção de recursos humanos, vai abraçar as viagens como modo de vida — continuará a ser líder, sim, mas sabe que não tanto como gostaria, porque o passo que deu vai também mantê-lo um pouco nos bastidores, como o fundador de uma agência de viagens.

A Land.Escape está a nascer e já a ensaiar os primeiros passos. Vem na senda de uma série de agências de viagens criadas por viajantes para viajantes — não são uma novidade no panorama nacional, mas constituem um nicho que tem ganho visibilidade. Mais do que viagens, prometem experiências de viagem, são pouco convencionais nos destinos e trocam os luxos pela autenticidade. Mais ou menos aventureiras, mais ou menos culturais, com mais ou menos natureza, mais ou menos físicas, são viagens de férias ou viagens de uma vida.

No início destas agências há sempre uma história que se repete. A mesma de Rafael Polónia, uma vontade compulsiva de viajar. Foi assim com as agências pioneiras, surgidas ainda nos anos de 1990 e que continuam em actividade, como a Rota dos Ventos, que em 1992 abriu pela mão de Gonçalo Velez, “alpinista e economista”, “apaixonado pela vida na natureza e pelas viagens longínquas e exóticas”, lê-se no site; ou, seis anos mais tarde, em 1998, a Papa-Léguas, que surge como a ideia de um casal que quis, quer, “partilhar a paixão pelas viagens e por uma forma diferente de ver o mundo”.

Já nos anos 2000 surge a Nomad, por exemplo, “agência de viagens, aventura e expedições”, e mais recentemente The Wanderlust, agência sediada em Aveiro (“imagina que vais viajar com um amigo que conhece os melhores sítios, a melhor forma de lá chegar, o que deves fazer e ainda te poupa dinheiro”), para a qual Rafael Polónia fez a sua última viagem como líder por conta de outrem — anteriormente trabalhou com a Papa-Léguas.

É líder, não guia, como sublinha ele e também Carla Mota, que trabalha para a Nomad. “É para distinguir daquele que tem curso, que explica tudo. O líder é um viajante, não está tão preocupado com quem construiu, quem pintou... Eu, por exemplo, gosto muito de história e tento transmiti-lo”, explica Rafael. “Tudo depende do líder”, confirma Carla Mota, e essa é a diferença: “Um guia pega no grupo e sabe que tem um percurso totalmente delineado. Na Nomad vamos adaptando a viagem ao grupo, às condições no terreno.” O facto de a viagem ser pensada e desenhada pelo líder, que tem por missão passar a sua experiência, dá-lhe uma liberdade que é bem recebida pelos viajantes. 

Na primeira viagem que fez para a Nomad, Carla Mota sentiu “a necessidade de se pôr mais a par com a história” das regiões por onde passa — “na geografia estava à vontade”, brinca, ela que é doutorada na área, investigadora e professora do secundário. Então, aproveitava as noites para ler. “Estes grupos são muito exigentes, altamente formados”, explica. E a sua viagem é particularmente exigente, a Rota da Seda atravessa quatro mil quilómetros em três países — Uzbequistão, Quirguistão e China. “

São três semanas que passam muito rápido, com grandes choques culturais. As pessoas ficam fora da sua zona de conforto. Não é tão exigente pela intensidade física, como o é pela diferença.” Começa-se pela herança soviética, tem-se uma experiência nómada (estadia em yurts incluída) e entra-se na China por Xinjiang, uma região autónoma de maioria muçulmana (“zona complicada em termos políticos, com atentados na capital”, onde é necessário “gerir bem os sítios a visitar”) — um deserto ainda se interpõe antes da chegada à China imperial, que é como quem diz à Grande Muralha e ao exército de terracota.

E, provavelmente, esta China imperial é o mais reconhecível na viagem, que tenta aproximar-se do modo de vida dos locais visitados, com visitas a mercados e a outros locais comerciais típicos, deambulações pelas ruas, dormidas em guest-houses, albergues ou tendas, refeições em restaurantes tradicionais ou na rua, utilização de transportes públicos (comboios, autocarros e táxis partilhados), passando ao lado dos circuitos turísticos mais comuns. Mas também estes são incontornáveis nestas viagens.

Não importa se a viagem à Índia que Rafael Polónia vai estrear em Outubro passa por Khajurahu, com os seus templos preenchidos por esculturas eróticas: “Se vamos à Índia temos de ir ao Taj Mahal”. E quando é necessário, recorre-se a guias locais especializados em determinadas áreas. “Quando faço a viagem à Pérsia, por exemplo, contrato sempre um guia para nos acompanhar a Persépolis.” Da mesma forma, Carla Mota trabalha com agências no terreno sempre que os transportes públicos não permitem chegar a determinado destino, como a cidade-oásis de Kashgar — e como está num região em que há “reconhecidas violações dos direitos humanos do povo uigur” faz questão de trabalhar com esta minoria étnica. “Em qualquer lugar é assim, mas aqui ainda é mais importante.”

Conforto ou autenticidade?

Se nestas viagens o inesperado não é raro, são também comuns os improvisos. Rafael Polónia assume que tem sempre um plano mas chega a uma altura em que dá a escolher aos participantes, “é importante que as pessoas sintam que podem mudar um pouco o rumo das viagens”. “Querem continuar a ver mesquitas ou ir a um mercado?”, exemplifica, provavelmente influenciado pelas suas duas últimas viagens, a Istambul.

Estava, aliás, na cidade turca quando uma sinagoga foi atacada e já tinha um segundo grupo para levar — estudantes do secundário e três professores. Quando regressou a Portugal foi falar com os pais. “É preciso dar uma ideia de segurança, estabelecer uma relação de confiança.” O grupo manteve a viagem.

A verdade é que Rafael passa muitas horas por semana a conversar com as pessoas que viajam com ele, a esclarecer dúvidas, a tranquilizar, a estabelecer uma relação. Assume também que, por exemplo, a sua viagem ao Irão chama-se deliberadamente Pérsia para não criar anticorpos à partida. “Eu já lá estive muitas vezes, sei que é tranquilo, mas a imagem projectada não é assim.”

E os problemas de segurança são um dos imprevistos a que estas viagens estão sujeitas, dados os destinos que às vezes se situam em regiões de alguma turbulência social ou política; outros podem passar pelas condições meteorológicas ou burocracias várias. Como a passagem de fronteiras, que, conta Carla Mota, no caso da passagem do Quirguistão para China, implica a contratação de uma agência local para ir buscar os viajantes e pode ser um verdadeiro teste à paciência, com “esperas de três horas enquanto os funcionários não fazem mais nada” e até exploração minuciosa de telemóveis, fotografias incluídas.

Porém, estas são situações que fazem parte das viagens e mesmo com queixas os viajantes acabam por compreender. Aliás, depois são estas as peripécias que mais recordam: não o final de cada percurso mas o caminho até lá. 

Se não há, a maior parte das vezes, conforto convencional nestas viagens, a autenticidade está (quase) toda lá, porque a ideia não é ir olhar de fora para dentro mas deixar-se imbuir pelo quotidiano local, envolvendo-se com as comunidades, tradições e cultura. Esta é uma questão-chave: é praticamente comum às agências deste segmento o aviso nos seus sites sobre todas as vicissitudes das viagens — as previstas e as possíveis (algumas, como a Papa-Léguas, têm a indicação do nível de dificuldade e de conforto de cada roteiro). Assim como a indicação da ligação ao turismo social e sustentável, cultivando a aproximação ligação às comunidades. “É uma forma de o dinheiro ficar aí”, resume Rafael Polónia.

Ao longo dos anos, estas agências têm vindo a evoluir. Sem deixar a matriz e filosofia originais, alargam o seu âmbito, alargam a sua oferta. Se os líderes viajantes são algo recentes neste universo, guias especializados sempre fizeram parte deste cenário, fosse para actividades tão específicas como trekking ou montanhismo, como até para fotografia — aliás, para fotógrafos mais ou menos aventureiros, há uma agência especializada, a Fotoadrenalina; no entanto, algumas das agências organizam viagens sem líder, apenas com guias locais, aproximando-se nesse aspecto às agências mais tradicionais. No entanto, os grupos mantêm-se sempre pequenos e esta é uma característica destas viagens. Na busca pela diferenciação, a Land.Escape de Rafael Polónia vai lançar mão da sua ligação ao mundo artístico para criar experiências especiais. Neste primeiro ano, a agência vai funcionar consigo como único líder — passará as rédeas de uma viagem no final do ano — mas para 2016 já estão a ser preparadas viagens especializadas com músicos e fotógrafos. “A ideia é convidar um artista para viagens duas vezes por ano e que depois este crie um objecto artístico inspirado pelo seu olhar sobre o destino.”

Há três anos, uma agência já bem estabelecida no mercado nacional em formato tradicional também decidiu criar um diferenciador na sua oferta. Não porque as ofertas da Pinto Lopes Viagens fossem das mais convencionais — em termos de destinos sempre gostou de dar a conhecer novos mundos aos portugueses, ou não fosse também esta agência, inaugurada oficialmente em 1994, o produto da sede de viagens do fundador, Bismarck Pinto Lopes, que em 1973 organizou a primeira viagem “para amigos” e que, exceptuando o ano de 1974, não mais parou de o fazer (e ainda hoje continua a acompanhar as viagens para destinos que não conhece).

Foi uma bola de neve, diz Freddy Castro, um dos administradores, e nos anos de 1980 vários autocarros circularam pela Europa nestas “viagens de amigos”, antes de se introduzirem os transportes aéreos”. Tem a convicção, por exemplo, de que os autocarros da Pinto Lopes são os únicos portugueses a chegarem ao Cabo Norte, numa viagem de dois mil quilómetros a partir de Oslo. “Tem a ver com o carácter inovador e diferente” que sempre guiou a agência: “Chegar a locais onde as agências portuguesas ainda não tinham chegado”. Madagáscar, Etiópia, Salta (Argentina), a China do Shangri-La, Birmânia, Honduras (“creio que ainda somos os únicos”), Cazaquistão, Uzbequistão (“agora batidos”), enumera; “ainda hoje”, adianta, “somos dos poucos que temos viagens abertas para Austrália e Nova Zelândia”. Que costumam esgotar, diz, ainda que o preço seja pouco amigável. “Mas o nosso conceito é incluir tudo o que há para incluir. O cliente depois não terá muitas mais despesas”, refere.

Contudo, também na Pinto Lopes se sentiu a necessidade de fazer algo mais do que vender uma viagem ao cliente — esse algo mais também era uma experiência e aqui a opção foi transformar personalidades conhecidas em guias de viagens. Surgiram as “Viagens com autores”, sendo os “autores” a “apresentar o projecto do destino”, explica Freddy Castro, de acordo com o seu conhecimento pessoal, e, claro, a acompanhar, todas as visitas. Se no início houve uma coincidência entre estes “autores” com escritores — José Luís Peixoto, Gonçalo Cadilhe e Raquel Ochoa —, e estes com cenários dos seus livros, “permitindo aos viajantes verem as obras materializarem-se , a ganharem vida”, o leque de guias foi entretanto alargado, passando a incluir representantes de outras áreas, como o maestro Rui Massena e oschefs Hélio Loureiro e Henrique Sá Pessoa e o jornalista-escritor José Rodrigues dos Santos.

Já em 2015, a agência voltou a inovar. “Viagens com Arte e História” vem acentuar o carácter cultural da agência — “não temos destinos de praia”, resume Freddy Castro —, proporcionando “algo ainda mais específico, mais detalhado”. Com especialistas em história da arte, estudos orientais, arqueologia, arquitectura, egiptologia, Descobrimentos, as novas viagens vão de Istambul ao Sudão, do Porto à Índia, de Cracóvia ao Egipto e Israel na senda da viagem de Eça de Queiroz por estas paragens para assistir à abertura do canal do Suez, oferecendo um olhar distinto sobre os destinos. Sempre com a garantia das comodidades das tradicionais viagens de grupo.

Com mais ou menos luxos, o mundo das viagens não se esgota nos pacotes dos operadores turísticos. Mas quase sempre é necessário ter um espírito aventureiro e aberto a imprevisto para poder desfrutar dos locais mais remotos, exóticos e intocados do planeta. Ou, então, ter a carteira (ainda) mais recheada para aí chegar com tratamento VIP.

Viagens singulares

Não é incomum as agências de viagens terem um serviço normalmente chamado de “viagens à medida”. O que é menos habitual são agências especializadas neste tipo viagens, espécies de lâmpadas de Aladino em que os desejos mais insuspeitos são prontamente realizados: em vez de esfregá-las, conversa-se. São agências em que o conceito de atendimento personalizado é levado ao extremo e os impossíveis são poucos. Uma lua-de-mel à volta do mundo? Uma viagem solitária à Polinésia Francesa? Podiam ser extravagâncias do outro mundo, mas a Travel Tailors tornou-as possíveis neste mundo — neste momento, será das poucas agências de viagens portuguesas com este formato “à medida”.

Foi em 2010 que três amigas com diferentes formações universitárias decidiram unir esforços e dedicar-se a realizar sonhos — sonhos que compreendem bem, porque são elas próprias viajantes assíduas. A Travel Tailors nasce assim com vocação para atender viajantes que gostam de viajar sozinhos (maioritariamente mulheres) ou com amigos, nas datas por eles escolhidas, ou seja, “sem grupos ou datas obrigatórias”, explica Raquel Ribeiro. Recebem clientes com os desejos bem definidos e investigação feita na Internet e outros com ideias vagas.

Não se chega, porém, à Travel Tailors completamente “em branco”. O seu site apresenta diversos programas formatados que Raquel Ribeiro diz serem “propostas para inspirar os clientes e inteiramente abertas à customização”: algumas foram idealizadas pela agência, outras são viagens concretizadas para clientes que revelam potencial e há ainda itinerários de outras agências similares “que podem resultar mais económicos” em determinados contextos. Porém, nunca fizeram nenhum programa tal qual é apresentado no site, houve sempre adaptações.

Mesmo se há tendências de destinos anuais. Este ano, São Tomé e Malásia, que sucedem à Austrália e Nova Zelândia, ao Sudeste Asiático, aos safaris africanos e ao Peru e Argentina — e assim se contam os anos de vida da Travel Tailors. E quem busca estas viagens são normalmente quadros superiores ou profissionais liberais com formação superior e idade entre os 25 e os 55 anos. Isto entre os portugueses, porque também há “exportação”, ou seja, estrangeiros a visitar Portugal, sobretudo norte-americanos e canadianos, e aí a única diferença relevante é o nível etário, que sobe para os 50-70 anos. Todos buscam “conforto e distinção”, explica Raquel, “não tanto em preço como em serviço”. Gostam de cidades sofisticadas, de visitas “que permitam um contacto próximo com as culturas locais sem espírito de ‘excursão’ ou ‘rebanho’”, e, “num traço muito português”, sublinha, procuram combinar dias de intensa actividade cultural com o dolce far niente em praias exóticas. “A propensão para a aventura é moderada, não é um denominador comum.” E as luas-de-mel constituem dois terços do negócio.

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