Primeira parte: as luzes
Em frente às igrejas de Turim, há demónios. Não encontraríamos alternativas, aliás, para este lugar de fronteira, vértice do triângulo da magia branca (juntamente com Lyon e Praga) e, ao mesmo tempo, cidade de magia negra (como Londres e São Francisco). Nostradamus, que terá habitado a capital piemontesa algures no século XVI, deduziu as tensões da cidade de forma bíblica: “Aqui há o paraíso, o inferno e o purgatório.” Em Turim, somos julgados, bailados pelos anjos alpinos e conduzidos pelos pecados de Baco e do chocolate (não fosse a região de Piemonte berço do Nutella e do bicerin).
Enquanto nos sentamos a ver o eléctrico verde cruzar a janela, contam-nos que há templos satânicos debaixo da terra, que se alcança o infinito pela fonte Angelica e que da Piazza Statuto se abrem as portas do Inferno (era ali que, no século XIX, funcionava a guilhotina). “É uma cidade onde devemos andar sempre com a cabeça virada para cima”, aconselha Marina, formada em História e guia turística nos tempos livres, pousando o tempo dos olhos em ornamentos barrocos que perfuram o céu. Tirou a manhã para nos passear pela Turim dos mármores e abóbodas de pompa, dos parques verdes e barcos que flutuam sobre o Pó. Explica que, como primeira capital de Itália e residência oficial da família Saboia, a cidade é feita de ostentação em talha dourada e de palácios com grandes pátios.
Numa corrida sob as muitas arcadas da cidade (são 25 quilómetros delas, no total), a arquitectura densa suga-nos a caneta para o mapa. Travamos junto à estação de Puorta Nuova — onde os comboios ainda separam a primeira da segunda classe com trejeitos da era industrial — para redesenhar ângulos rectos num guardanapo do café Cervino. “Um marrochino, por favor.” Chega-nos à mesa um belo gianduja (a invenção dos piemonteses que uniu o cacau ao creme de avelã) trespassado por café e espuma de leite. Os turinenses repetem a fusão em diversas variantes, tanto para beber como para adocicar o final de uma refeição.
São tão pétreas e altas as ruas de Turim que é difícil ter a noção de amplitude, como se o mundo se escondesse atrás de pórticos e esquinas. Mais: queremos ver os Alpes em volta, sabemo-los a olhar para nós, mas as nuvens continuam a assombrar o sopé urbano. “Apenas algumas pessoas conseguem entender Turim, sentir a sensação real de estar aqui. Não é uma cidade turística no sentido clássico, nem sequer temos os atractivos típicos de alguns estereótipos italianos, mas temos um coração muito particular, que está escondido e que pode tornar as pessoas mais criativas, esotéricas ou enlouquecê-las”, analisa Enrico Francone, 22 anos, explorador da vida. O quadro não tranquiliza. Já Bèla Tarr nos havia avisado no seu derradeiro filme, O Cavalo de Turim, que foi nesta cidade anfíbia que Nietzsche conheceu a loucura. Ser tanto terra como água bate-nos certo, e a Enrico também: “Turim é gelo no topo mas queima por baixo. E, à noite, tudo muda.”
Nada como uma fatia de pizza absorta em gorduras saturadas para nos ofuscar esta ideia. No país da suposta slow food, são aos milhares as heresias praticadas por rolos de massa e colheres de pau rapidamente deslindadas em mesas de plástico. Se os Saboia pudessem ouvir as micro-ondas, certamente desmaiariam em seco sobre moldes de ketchup. Mas avancemos, que o mundo continua. Marina pousa as mãos sobre o plástico para nos guiar à sobremesa. “Andiamo al bicerin”, irrompe, afoita em salvar a honra da gastronomia italiana. E nós vamos, porque Marina sabe. “Este, e só este, é o bicerin”, aponta, contundente, o homem respeitoso do lado de lá do balcão centenário. Na boca, são bigodes gulosos de chocolate, café e creme de leite; na carta, é a bebida-símbolo de Turim (mãe do marrochino de que falámos lá atrás, mas com traços secretos na receita).
Marina faz reaparecer a História, contando dos reis que ali vinham sentar-se para adoçar a alma, mas é como se apenas a ouvíssemos dizer “bicerin-bicerin-bicerin”, de lábios cerrados num trote minimalista. Paramos de súbito na realidade, às portas do santuário da Consolata. “Esta é a igreja mais importante para nós. Apesar de a catedral onde está o Sudário [a de San Giovanni] ser mais visitada pelos turistas, é aqui que os turinenses vêm à missa”, explica a nossa guia. É na imponência barroca deste santuário que vive a patrona da cidade, a Virgem da Consolação, figura que ofereceu o ombro ao povo turinense nos momentos de aflição em que a fé terá subido mais alto. O peso do catolicismo italiano e do quanto a Igreja pôde investir em arte brilha intenso no interior da Consolata, onde as paredes pouco respiram de vazio, com tantas imagens, altares e oferendas somados desde o século XVIII.
Ainda as nuvens pousam densas sobre as nossas cabeças quando a catedral de San Giovanni surge solitária sobre um passeio de mármore. É ali que repousa o Santo Sudário, o véu de linho que terá coberto o corpo de Jesus Cristo após o martírio da crucificação. “Desta vez, a fachada é renascentista”, congratula-se Marina, guardando espaço para uma adversão: “Mas sabem como é o interior?” “Barroco”, adivinhamos, como se de uma aula de liceu se tratasse, mas sem chocolate para a resposta certa. “Ecco.”
À primeira aterragem, Turim é isto: uma herança forte dessa Itália católica que todos conhecemos de imaginário, a par com a beleza material e impressionante deixada pelos Saboia, que souberam aproveitar a riqueza dos rios e uma geografia de colinas convidativa ao deslumbre. Há aterragem, sim, mas não há primeira vista, porque Turim é invisível. Assim que se fecham os guias da História, o que os tempos mostram na pedra polida não é barroco. São vontades, é alguém que acende um cigarro numa garagem de música, é política.
Segunda parte: o golpe do tapete
Nos tempos que correm, explorar Turim num Fiat Cinquecento é o mais honroso que podemos fazer à mítica marca que abandonou a Itália no ano passado, depois de 115 anos no país. Nele, cirandamos pela Turim de luzes acesas, onde poucos parecem dormir. A sensação é de que a gigante Fábrica Italiana Automobilística de Turim (FIAT), na zona do Lingotto, se mantém parte do ecossistema e que todos os funcionários terão saído à rua para celebrar a vida-depois-de-picar-o-ponto. Olga dá as coordenadas, Enrico traça as rugas de cada bairro periférico e Roberto conduz. “Se fôssemos de táxi, o nome dele seria Guido. Em Itália, todos os taxistas são Guido.” (Guido é nome próprio mas também a primeira pessoa do verbo guiar, em italiano) A gargalhada fácil faz abanar o Cinquecento.
Olhos na rua. À nossa esquerda, uma escola primária convertida em centro cultural e social. Mais à frente, a casa El Paso, uma antiga creche abandonada que se tornou há décadas, por ocupação popular, a meca dos concertos underground de Turim. Dois quarteirões adiante, o Spazio 211, um ex-centro (adormecido) de actividades ocupacionais para crianças e idosos que, com “a pressão da juventude para fazer música e dar concertos”, como conta o director, Andrea, se transformou num “pulmão da cultura turinense”. “E ali é a sede da Blackout!”, pulsa Enrico, entusiasmado com a rádio independente no ar desde 1992 e oxigenada por “ideais revolucionários”. Quatro histórias de reinvenção popular — sobre espaços que morriam desligados da comunidade — em meia hora de percurso à velocidade de um Cinquecento. “Tudo isto porque rodamos a periferia”, suspeita-se. Resposta: “Ah si? Poi andiamo al centro!”
Estávamos nos pulmões e Roberto acelera para o coração da cidade. À margem do rio e da lei, no centro de Turim, o passeio é tranquilo e silencioso. No tempo em que o Pó era comercialmente navegável, era junto a estas docas que se guardavam mercadorias. Mais tarde, os armazéns foram transformados em bares e espaços culturais, que traziam ebulição à noite de Turim. “Em 2013, os 20 ou 30 espaços que existiam deste lado do Pó foram obrigados a fechar portas. Todos. Também quiseram [agentes policiais] fazer o mesmo ao nosso espaço, mas não deixámos. Éramos centenas de pessoas com máscaras de Vendetta aqui à porta. Cortámos os ferros e voltámos a entrar. O CSA nunca deixou de ser nosso.” Quem relata a história é Fabrizio Perottino, 38 anos, os últimos 18 passados no CSA Murazzi, um centro social de inspiração anarquista a conviver com a lei e com os habitantes de Turim há mais de 25 anos.
“Sentem-se”, convida Fabrizio, improvisando uma esplanada com três cadeiras de plástico. (Não, não é um tipo de ar feroz com tatuagens de Lucifer nos braços. É franzino e pálido; bebe uma água sem gás.) Debaixo do olho impotente da polícia local, que vai “vigiando” a zona de candeeiros bem acordados, conta-nos que o CSA começou por ser uma casa ocupada onde as pessoas faziam música, discutiam política, delineavam caminhos. “Chamava-se Collectivo Spazio Metropolitani e era um lugar fora da lógica do mercado, sem dinheiro envolvido. Ainda hoje é assim: aqui todos são bem-vindos e são todos voluntários. Não há cá buotta fuori[seguranças], partidos ou instituições.” O CSA tem as portas abertas, pinturas fortes nas paredes, um palco para onde se arrastam as luzes do concerto de logo à noite. É um dos espaços de Turim onde o café é (bom e) mais barato, por isso as pessoas vão chegando e montando as suas próprias esplanadas para olhar o rio. Os concertos vão do reggae ao punk, passando pela música electrónica. Fabrizio é um daqueles tipos que já passou por muito, atento às mudanças de um lugar, por isso pedimos-lhe que nos explique de onde vem o fogo que arde em Turim. “Quando era puto, isto era apenas a Fiat. Não havia nada. Era este o preconceito que existia: o de um lugar triste sem nada para fazer.” Como “a cidade estaria morta se fosse apenas o dormitório de uma fábrica onde trabalhavam 300 mil pessoas”, algumas minorias decidiram reagir, tornando Turim num “ponto activo de Itália, com uma forte tradição de lutas, greves e resistência contra o fascismo” e uma marcada apetência para alimentar a cultura underground como espaço de expressão dos habitantes, sem castrações.
É então que Turim deixa de ser invisível. Basta-nos ler as paredes, uma a uma, para perceber a vontade latente de criar. (Há quem não acerte no alvo e profane igrejas, como a Basílica de Superga, situada no topo de uma das muitas colinas arborizadas que rodeiam Turim, cujos pilares de mármore são muro de inscrições a caneta). Deixamos o rio às escuras para ler mais. Uma das bibliotecas da Universidade — que fica a escassos metros da Mole Antonelliana, ex-líbris arquitectónico onde vive o Museu Nacional do Cinema — foi recentemente ocupada pelos estudantes. Na esquina seguinte, funciona a Cavallerizza Reale — um espaço semidevoluto de 40 mil metros quadrados que foi ocupado por artistas, desempregados, juristas, cidadãos (o movimento Assemblea Cavallerizza 14:45) focados em devolver o espaço à cidade com uma programação cultural regular. Na rua paralela, junto à distinta Mole Antonelliana, uma massa de gente senta-se no chão para ver cinema ao ar livre. Tudo isto acontece porque é Turim.
Afinal, não são apenas as periferias os centros de acção dos turinenses indignados — elas também souberam migrar para o centro, como fez Machno. Aos 39 anos, já com menos guelras para as cenas do punk hardcore e do garage, que lhe estão no sangue, decidiu deixar “um squat muito importante para a música underground em Turim, mais afastado do centro”, para abrir um bar onde copos de cerveja coabitam pacatamente com taças de leite ao pequeno-almoço. Sentamo-nos à mesa do Blah Blah com uma tela branca nas costas para Machno explicar que “esta foi a primeira sala de cinema em Itália e a segunda no mundo; foi o segundo lugar a projectar o primeiro filme dos irmãos Lumière”. Perguntamos-lhe o que faz um punk de espírito num lugar de tostas de salmão, cappuccini e clássicos do cinema à segunda-feira. “Nos anos de 1980 e 1990, foi a explosão do movimento underground e Turim era a meca do punk hardcore. Eu estava lá, sim, mas cansei-me da polícia, de ter de fechar a porta. É verdade que é mais difícil ter um bar, pagar taxas, não poder fumar no meu próprio espaço, não poder vender álcool a partir das três da manhã. Em Itália, é mais fácil viver na ilegalidade. Mas eu preferi ter um lugar onde se fizesse música para todos.”
Dolce far niente? O tanas.
GUIA
Como ir
Efectuando a Ryanair ligação directa desde Lisboa e Porto até Milão (Bérgamo), a viagem prossegue num comboio que atravessa as planícies de Lombardia e Piemonte, até Turim. No total, a despesa fixa-se numa média de 120 euros. A outra opção são os voos directos da KLM, Lufthansa e Brussels Airlines (por cerca de 200 euros) para o pequeno aeroporto de Caselle, 16 quilómetros a Norte de Turim.
Onde ficar
Há duas alternativas a serem estudadas numa visita a Turim: o alojamento no centro da cidade, com destaque para as zonas de San Mauro, Borgo Po e perto da Estação de Porta Nuova; e a dormida nos pés dos Alpes, em casas de turismo rural (sugerem-se o Le Soleil, em Cercenasco; e Il Vecchio Mulino di Bairo, em Agliè).
A não perder
Museu de Arte Contemporânea
O Castelo di Rivoli atravessou vários períodos, terminando num episódio de séria degradação que se inverteu apenas em 1979. Após o encerramento prolongado, o edifício reabriu ao público em 1984 como o primeiro museu de arte contemporânea em Itália. Hoje, a visita vale não só pela vasta colecção (que inclui obras de Franz Ackermann, Tudela, Edson Chagas, Helmut Newton ou Dennis Openheim) e exposições temporárias, como também — e muito — pelo confronto entre as bases clássicas do edifício com o arrojo de algumas obras contemporâneas.
Cavallerizza Reale
Ocupado desde Maio do ano passado por cerca de 300 activistas de vários sectores da sociedade turinense, o espaço onde funcionaram as cavalariças reais da cidade é hoje terreno fértil de artes e entretenimento feitos de e para a população. A programação pode ser acompanhada através da página de Facebook da Assemblea Cavallerizza 14:45 e integra desde concertos e peças de teatro a jantares e serões entre amigos.
Gran Balon
No segundo domingo de cada mês, o bairro mais multicultural da cidade, Porta Palazzo, recebe o Gran Balon, a “Feira da Ladra turinense” que acolhe tudo e todos num aglomerado de quinquilharia, antiguidades e roupa em segunda mão. Em meados do século XIX, era aqui que os negociantes de lixo e ladrões tentavam fazer valer o seu produto, pelo que a tradição foi-se adaptando aos tempos. Nos restantes dias da semana, a praça funciona sob o nome de Porta Palazzo, assumindo-se como o maior mercado ao ar livre da Europa — são 50 mil metros quadrados de comércio estendidos sobre a Piazza della Repubblica. Mas há mais 41 mercados a céu aberto e seis cobertos para explorar em Turim.
Cafés Mulassano, Torino e Al Bicerin
Para sentir a Belle Époque de Turim, nada como umas boas horas de café. Os exemplares centenários são muitos e ricos em histórias; o difícil é escolher. Deixamos um doce na boca: situado numa galeria ao estilo parisiense, o Mulassano exige horas de observação para que lhe consigamos acompanhar o detalhe. Mesas com tampo de mármore, cachos de uvas douradas nas paredes e jogos de espelhos hipnotizantes compõem a primeira vista da sala preferida da última rainha de Itália, Maria José da Bélgica (esteve no poder apenas 35 dias, em 1946). Os cafés e pastelaria são altamente refinados e nem por isso intocáveis (o preço de um expresso é dois euros).
Basílica de Superga
É bonito ver Turim do cimo de um morro onde vivem árvores frondosas e uma basílica de ar jovial. Superga é um lugar de refúgio com os Alpes como pano de fundo. O lado obscuro: é aqui que estão sepultados muitos dos elementos da família de Saboia; e também foi neste monte que se deu a Tragédia de Superga — em 1949, o avião que transportava a equipa do Torino FC na volta de um jogo amistoso com o SL Benfica colidiu com o morro. Não houve sobreviventes.
Parque Valentino
A amplitude permite uma boa caminhada nos trilhos que se estendem ao longo da margem do rio Pó. O parque inclui, no seu interior, um burgo medieval que foi totalmente recuperado, o imponente Castelo de Valentino, a Fontana dei Dodici Mesi e o belo Giardino Roccioso.
Vale de Lanzo
Situado a 30km de Turim, já na entrada dos Alpes, Lanzo é um vale de boas carnes, queijos, pães, verduras e frutas, para apreciar devagar. No centro, a vila de Lanzo Torinese faz-se de casas encavalitadas em telhados de lousa, uma feira aberta a estômagos exigentes (todas as terças) e a Ponte del Diavolo. Reza a lenda que sempre que os habitantes de Lanzo tentavam erguer a ponte sobre o afluente do rio Pó, as águas subiam a deitavam a construção abaixo. Perante o desespero geral, o diabo apareceu prometendo erguer a ponte desde que lhe fosse cedida a primeira alma que a atravessasse. A promessa cumpriu-se, mas o padre de Lanzo fez passar um cão em primeiro lugar. O diabo, furioso, bateu violentamente contra o piso rochoso, onde ainda hoje se conserva a marca profunda da sua pegada.