Fugas - Viagens

  • Da Mole Antonelliana, projectada como sinagoga, os Alpes parecem abraçar a cidade.
    Da Mole Antonelliana, projectada como sinagoga, os Alpes parecem abraçar a cidade. Reuters
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  • Rute Barbedo
    Rute Barbedo
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    Rute Barbedo
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    Rute Barbedo
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    Rute Barbedo
  • Rute Barbedo.  Cavallerizza Reale
    Rute Barbedo. Cavallerizza Reale
  • Rute Barbedo. Murazzi
    Rute Barbedo. Murazzi
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    Rute Barbedo.
  • Rute Barbedo. Museu do Cinema
    Rute Barbedo. Museu do Cinema
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Turim, a cidade invisível

Por Rute Barbedo

Competir com Roma, Veneza ou Florença não é para Turim. Estratégias de turismo e autocarros de dois andares com disparos de flash a incendiar o céu? Hum…, também não. Quem quiser a pérola de Piemonte, tem de a viver para crer.

Primeira parte: as luzes

Em frente às igrejas de Turim, há demónios. Não encontraríamos alternativas, aliás, para este lugar de fronteira, vértice do triângulo da magia branca (juntamente com Lyon e Praga) e, ao mesmo tempo, cidade de magia negra (como Londres e São Francisco). Nostradamus, que terá habitado a capital piemontesa algures no século XVI, deduziu as tensões da cidade de forma bíblica: “Aqui há o paraíso, o inferno e o purgatório.” Em Turim, somos julgados, bailados pelos anjos alpinos e conduzidos pelos pecados de Baco e do chocolate (não fosse a região de Piemonte berço do Nutella e do bicerin). 

Enquanto nos sentamos a ver o eléctrico verde cruzar a janela, contam-nos que há templos satânicos debaixo da terra, que se alcança o infinito pela fonte Angelica e que da Piazza Statuto se abrem as portas do Inferno (era ali que, no século XIX, funcionava a guilhotina). “É uma cidade onde devemos andar sempre com a cabeça virada para cima”, aconselha Marina, formada em História e guia turística nos tempos livres, pousando o tempo dos olhos em ornamentos barrocos que perfuram o céu. Tirou a manhã para nos passear pela Turim dos mármores e abóbodas de pompa, dos parques verdes e barcos que flutuam sobre o Pó. Explica que, como primeira capital de Itália e residência oficial da família Saboia, a cidade é feita de ostentação em talha dourada e de palácios com grandes pátios.

Numa corrida sob as muitas arcadas da cidade (são 25 quilómetros delas, no total), a arquitectura densa suga-nos a caneta para o mapa. Travamos junto à estação de Puorta Nuova — onde os comboios ainda separam a primeira da segunda classe com trejeitos da era industrial — para redesenhar ângulos rectos num guardanapo do café Cervino. “Um marrochino, por favor.” Chega-nos à mesa um belo gianduja (a invenção dos piemonteses que uniu o cacau ao creme de avelã) trespassado por café e espuma de leite. Os turinenses repetem a fusão em diversas variantes, tanto para beber como para adocicar o final de uma refeição. 

São tão pétreas e altas as ruas de Turim que é difícil ter a noção de amplitude, como se o mundo se escondesse atrás de pórticos e esquinas. Mais: queremos ver os Alpes em volta, sabemo-los a olhar para nós, mas as nuvens continuam a assombrar o sopé urbano. “Apenas algumas pessoas conseguem entender Turim, sentir a sensação real de estar aqui. Não é uma cidade turística no sentido clássico, nem sequer temos os atractivos típicos de alguns estereótipos italianos, mas temos um coração muito particular, que está escondido e que pode tornar as pessoas mais criativas, esotéricas ou enlouquecê-las”, analisa Enrico Francone, 22 anos, explorador da vida. O quadro não tranquiliza. Já Bèla Tarr nos havia avisado no seu derradeiro filme, O Cavalo de Turim, que foi nesta cidade anfíbia que Nietzsche conheceu a loucura. Ser tanto terra como água bate-nos certo, e a Enrico também: “Turim é gelo no topo mas queima por baixo. E, à noite, tudo muda.”

Nada como uma fatia de pizza absorta em gorduras saturadas para nos ofuscar esta ideia. No país da suposta slow food, são aos milhares as heresias praticadas por rolos de massa e colheres de pau rapidamente deslindadas em mesas de plástico. Se os Saboia pudessem ouvir as micro-ondas, certamente desmaiariam em seco sobre moldes de ketchup. Mas avancemos, que o mundo continua. Marina pousa as mãos sobre o plástico para nos guiar à sobremesa. “Andiamo al bicerin”, irrompe, afoita em salvar a honra da gastronomia italiana. E nós vamos, porque Marina sabe. “Este, e só este, é o bicerin”, aponta, contundente, o homem respeitoso do lado de lá do balcão centenário. Na boca, são bigodes gulosos de chocolate, café e creme de leite; na carta, é a bebida-símbolo de Turim (mãe do marrochino de que falámos lá atrás, mas com traços secretos na receita). 

Marina faz reaparecer a História, contando dos reis que ali vinham sentar-se para adoçar a alma, mas é como se apenas a ouvíssemos dizer “bicerin-bicerin-bicerin”, de lábios cerrados num trote minimalista. Paramos de súbito na realidade, às portas do santuário da Consolata. “Esta é a igreja mais importante para nós. Apesar de a catedral onde está o Sudário [a de San Giovanni] ser mais visitada pelos turistas, é aqui que os turinenses vêm à missa”, explica a nossa guia. É na imponência barroca deste santuário que vive a patrona da cidade, a Virgem da Consolação, figura que ofereceu o ombro ao povo turinense nos momentos de aflição em que a fé terá subido mais alto. O peso do catolicismo italiano e do quanto a Igreja pôde investir em arte brilha intenso no interior da Consolata, onde as paredes pouco respiram de vazio, com tantas imagens, altares e oferendas somados desde o século XVIII. 

Ainda as nuvens pousam densas sobre as nossas cabeças quando a catedral de San Giovanni surge solitária sobre um passeio de mármore. É ali que repousa o Santo Sudário, o véu de linho que terá coberto o corpo de Jesus Cristo após o martírio da crucificação. “Desta vez, a fachada é renascentista”, congratula-se Marina, guardando espaço para uma adversão: “Mas sabem como é o interior?” “Barroco”, adivinhamos, como se de uma aula de liceu se tratasse, mas sem chocolate para a resposta certa. “Ecco.” 

À primeira aterragem, Turim é isto: uma herança forte dessa Itália católica que todos conhecemos de imaginário, a par com a beleza material e impressionante deixada pelos Saboia, que souberam aproveitar a riqueza dos rios e uma geografia de colinas convidativa ao deslumbre. Há aterragem, sim, mas não há primeira vista, porque Turim é invisível. Assim que se fecham os guias da História, o que os tempos mostram na pedra polida não é barroco. São vontades, é alguém que acende um cigarro numa garagem de música, é política.

Segunda parte: o golpe do tapete

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