Fugas - Viagens

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    Gare do Oriente, Lisboa Enric Vives-Rubio
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    Museu Nacional Ferroviário, Entroncamento Enric Vives-Rubio
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    Estação de Entroncamento Enric Vives-Rubio
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    Castelo de Almourol Enric Vives-Rubio
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    Torre Dom Dinis, Idanha-a-Nova Enric Vives-Rubio
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    Rio Tejo Enric Vives-Rubio
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  • Museu Nacional Ferroviário, Entroncamento
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    Estação do Pinhão Enric Vives-Rubio
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  • Largo do Toural, Guimarães
    Largo do Toural, Guimarães Enric Vives-Rubio
  • Mr. Miyagi no Laboratório das Artes, Guimarães
    Mr. Miyagi no Laboratório das Artes, Guimarães Enric Vives-Rubio
  • Centro Cultural Vila Flor, Guimarães
    Centro Cultural Vila Flor, Guimarães Enric Vives-Rubio
  • Plataforma das Artes e da Criatividade, Guimarães
    Plataforma das Artes e da Criatividade, Guimarães Enric Vives-Rubio
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    Pequeno almoço das Pousadas de Juventude Enric Vives-Rubio
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    Pousada de Juventude de Vila Nova de Cerveira Enric Vives-Rubio
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    Praia do Barril, Tavira Enric Vives-Rubio
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Intra_Rail: Portugal em títulos de viagem

Por Rute Barbedo

O mais difícil é querermos fazer como Delfos: conhecermo-nos a nós mesmos. Mas uma boa maneira de começar é partir numa viagem de comboio pelo país. Desde Dezembro que é possível fazê-lo com o cartão Intra_Rail, cujo uso deixou de estar delimitado por zonas.

Vamos ler bem isto: caminhos-de-ferro. São de ferro porque resistem a tudo. Ao tempo, ao uso, ao peso das mercadorias e à leveza do turismo, mais ou menos moldados em linhas que aumentam e encolhem como uma lagarta, consoante o movimento e as finanças. O primeiro troço nacional, de 37 quilómetros, foi inaugurado em 1856 e unia Lisboa ao Carregado. Cento e cinquenta e nove anos depois, a rede da CP é um traçado de 1995 km, aberto aos viajantes até aos 30 anos por um preço e período máximos de 146 euros e sete dias, através do cartão Intra_Rail. As dormidas (em quarto múltiplo) e o pequeno-almoço são assegurados pela Movijovem, que gere a rede nacional de Pousadas de Juventude.

Mas mais do que factos, encarrilar num Intra_Rail é assumir que o planeta começa no Minho e termina no Algarve assim que se entra na maquinaria onde “as distâncias percorridas pelos cerca de 1400 comboios [operados pela CP], a cada dia útil, equivalem a duas voltas ao mundo”, como ilustra Ana Portela, da Comunicação Institucional da empresa Comboios de Portugal.

Hoje o mundo resume-se à volta de um regional – o único que liga Lisboa a Castelo Branco em dia de greve no sector ferroviário. Mas não é certo que, havendo comboio, existam autocarros até Idanha-a-Nova, que fica a 38km da estação mais próxima. Na Gare do Oriente, em Lisboa, a paralisação sente-se numa fila irrequieta de 40 minutos até à bilheteira, enquanto na Beira Baixa domina o mundo parado dentro do tempo. “O autocarro chega mesmo junto à pousada, mas só há dois por dia: um de manhãzinha e outro à tarde”, explica-nos, por telefone, a recepcionista da Pousada de Juventude de Idanha-a-Nova, a primeira paragem da Fugas nos sete dias de Intra_Rail Xplore. “Seja o que a greve quiser”, respondemos.

O tal regional

Vamos num balouço para Castelo Branco. É difícil urinar assim. Mas depois de treinado o equilíbrio desde o assento até à toilette, as pernas seguem menos bambas. Da janela, o Castelo de Almourol percorre um travelling suspenso sobre o rio e há um trilho pedestre na outra margem, para os lados de Fratel (onde foi gravada a série Estação da Minha Vida), a perfurar as rochas beirãs.

Enquanto a figura de Cândida (nome fictício) faz parte de um quadro do Tejo, a conversa com o marido abre-se à carruagem. “Ele já não vem cá para lá de seis meses. Tem muito trabalho… E isto é longe. Sair de Lisboa e andar isto tudo até cá cansa muito.” Falarão do filho, do neto... Desconhecemos. Sabemos que o interior é longe, com toda a relatividade que isso implica. E descosemos o resto da história com a facilidade de uma linha solta, já que o comboio atira a intimidade para os carris, mesmo que todos julguem viajar numa cabine à prova de som.

Catarina Silva, 21 anos, estudante de Gestão, já fez três intra_rails em Portugal. Enquanto conta os apeadeiros, também se põe à conversa, joga às cartas, lê revistas. Diz que a vontade e a curiosidade em conhecer melhor “o nosso pequeno cantinho do mundo” é algo que os pais sempre a ensinaram a procurar. Em Fevereiro, foi com o namorado, Duarte Monteiro, 20 anos, conhecer o Norte. Queria “experienciar cada tradição, cada sotaque, cada iguaria culinária e traço cultural”. “Nunca se sabe o que vai acontecer a tão poucos quilómetros de casa”, reconhece.

Duarte confessa à Fugas que a primeira hipótese pesada para as férias foi viajar para o estrangeiro, mas depois ambos pensaram melhor. “Apercebemo-nos de que não conhecíamos assim tão bem Portugal”, conclui. Por isso, partiram rumo a Coimbra, fazendo a ponte com Guimarães, Porto e Braga, a paragem que os conduziu ao Parque Nacional Peneda-Gerês e à Pousada de Vilarinho das Furnas, a maior da rede e uma das mais concorridas. “É espectacular! Está isolada no meio das montanhas, mas ao mesmo tempo tem tanto a oferecer”, solta Catarina do alto da juventude. Mas a opção por um Intra_Rail não foi das mais comuns. A média de utilizadores no país ronda os 1000 por ano, sendo que a grande maioria dos amantes do comboio prefere atravessar fronteiras, recorrendo ao famoso InterRail.

Embora a experiência intra seja apenas possível até aos 30 anos (quando a CP lançou o Intra_Rail+30, a procura foi “praticamente inexistente”, adianta a empresa), a juventude que mais conta nas pousadas é a de espírito. “Isto é da juventude, mas vem cá gente de todas as idades”, confirma Nuno Santos, recepcionista em Idanha-a-Nova, que nos indica o Vamos ao Manteigas para o jantar tardio de quem chegou à campanha algumas boleias falhadas depois (desde Castelo Branco, são 38,70 euros de táxi. Se a greve não nos tivesse apanhado, o bilhete de autocarro teria custado 4,10 euros).

É nas margens de uma bifana, perto das ruínas do castelo, que nos contam dos preparativos da romaria. “Este fim-de-semana são as Festas da Nossa Senhora do Almortão. Chegam a estar cá 7000 pessoas.” Talvez por isso, “amanhã a pousada vai encher”, comenta Nuno. Mas mesmo sem romaria, a vila de senhores e pastores, das rotas da Egitânia e dos Barrocais vale o acordar numa manhã de nevoeiro. Nem que seja para partir cedo rumo a outras paragens. É que estar aqui pode ser para sempre, já que Idanha é “a terra das oportunidades”, como declarou em Março o presidente da autarquia local no lançamento do programa “Recomeçar”, que visa atrair novos moradores à ruralidade.

“Aguentar o comboio”

Embora aliciados, trocamos a terra pelo ferro, dando corda à viagem. É preciso um dia para chegar a Alijó, com um autocarro, uma merenda, paragens no Entroncamento, no Porto e no Pinhão, boleias ausentes, costelinhas de assuã e um táxi pelo meio. À sexta-feira, o inter-regional que liga o Entroncamento ao Porto segue cheio. “É um comboio mais para os militares”, anota o funcionário da bilheteira, prevenindo do tempo apertado entre ligações: “Só têm 10 minutos para trocar no Porto, mas se virem que vão atrasados, falem com o revisor para ele aguentar o comboio.”

Graffiti de um lado a esconder os montes, janelas translúcidas viradas para o Douro. Em tempo de guerra, não se limpam vidros. A carruagem enche de cabelos louros e pernas esguias. São estrangeiros que ouviram falar do Alto Douro Vinhateiro como o lugar onde as uvas formaram em sumo o paraíso. Desde que a região foi classificada como Património Mundial da Humanidade, em 2001, o turismo tem aumentado significativamente. No ano passado, 600 mil pessoas viajaram pela Via Navegável do Douro (mais 45 mil do que em 2013), segundo o Instituto da Mobilidade e dos Transportes.

Na chegada ao Pinhão sente-se o peso disso. Manuel (nome fictício) barra a saída da estação com uma boina quadriculada e a pergunta persistente: “Táxi? Táxi? Táxi?” No restaurante-residencial em frente, o senhor Zé usa a linguagem gestual sobre a barriga farta para perguntar quem precisa de dormida. “Querem quarto?”, pergunta a mulher, desde a cozinha, e o senhor Zé abana a cabeça desconsolado.

“Agora as pessoas apanham sobretudo o autocarro para Vila Real e dali é que partem para outros sítios”, conta-nos o taxista, a caminho da Pousada de Alijó. Por esse motivo, não fazia este serviço “há muito tempo”. Por outro lado, no Douro, “a linha cada vez é mais curta.” Chegou a ir até Madrid, nos anos de 1960, depois contraiu até Barca d’Alva e agora termina no Pocinho. “Daqui a bocado pára na Régua”, teme o taxista.

Como na Beira Baixa, também aqui os autocarros rareiam. Quem vem para estes montes escadeados utiliza sobretudo o automóvel. Mas também há “os turistas americanos”, que “vão a pé todos os dias até lá abaixo ao Pinhão” (são 16km de caminho), sublinha a funcionária de limpeza da pousada. É adepta do turismo pedestre. “Mais para cima destes terrenos, onde eram tudo lameiros, há muito por onde andar. Temos também o parque de lazer e as piscinas, lá em baixo, e o Miradouro de Santo António, de onde se tem a vista toda de Alijó.” 

Mas num sábado curto como o de hoje a vida faz-se da igreja para o café, a ouvir os sons durienses. À porta do Apolo, assobia-se o Zumba na Caneca. Lá dentro, bebe-se Favaios pela manhã, não fosse este moscatel produzido a cerca de oito quilómetros. “Ó Paulo! Vê lá se não tropeças!”, brinca um homem de idade para lá das curvas com quem acaba de entrar no café com as calças mais curtas da freguesia. Na corrida para a estação, esperamos não tropeçar também.

Cidade-laboratório

Fica a faina do Douro por fazer, que esta viagem é caminho. Às 12h17 há um comboio rumo a Ermesinde, onde se faz a ponte com a linha de Guimarães. Como se não bastasse a ideia de Minho, chove ao longo do rio Ave. Dizem “sarrabulho” em voz alta e a cidade rebenta entre as verduras com a vida acelerada, sobretudo sendo ela Guimarães, terra de gente despachada, que come bucho e chama Pito do Machado ao arroz de cabidela (no restaurante Nicolino). Posto isto, se nos contarem que Afonso Henriques bateu na mãe, acreditamos.

Ondulam-se os quelhos do centro histórico, com aroma a vinho e enchidos, para encontrar uma das melhores pousadas de juventude do país. O ribeiro de Couros corre-lhe em frente, com uma área de tanques onde se lavavam e tratavam peles para a produção de couros do senhor Cidade, o mentor do negócio e antigo proprietário da casa onde funciona hoje a pousada. “Ligam para aqui a perguntar a morada e eu tenho quase sempre de repetir: ‘Não, não é na rua da Cidade; é do Cidade, que era o nome do senhor que aqui morava’”, relata Júlia, recepcionista fafense a trabalhar em Guimarães, até porque aqui “os bolos são muito bons”.

Os lençóis sabem bem, mas mesmo sendo esta a cidade-berço há muito mais para fazer do que dormir, como incentiva um panfleto no quarto. O castelo, as igrejas de São Pedro e da Nossa Senhora da Oliveira, o Paço dos Duques de Bragança, a Plataforma das Artes, o Museu Alberto Sampaio, a Praça da Oliveira e, lá no alto, a serra da Penha, de onde vem a água que nos colocam à mesa, são alguns exemplos.

De um edifício plantado em plena Praça do Toural – junto ao café Milenário, que na verdade tem 63 anos –, saem acordes acelerados, “música de contra-ataque”, como cataloga a banda. Sabendo que há um antes e um depois de Guimarães ter sido a Capital Europeia da Cultura, em 2012, não nos espanta que assim aconteça. Deixam-nos subir ao Laboratório das Artes, onde decorre o sound check para o concerto dos vianenses Mr. Miyagi. Na sala voltada para o sol recente, fumam-se cigarros e comem-se batatas fritas. “É um espaço que está um bocado ao abandono”, expõe o produtor da editora vimaranense Revolve, que decidiu movimentá-lo esta noite.

Mas é ao Centro Cultural Vila Flor que vamos, para embarcar no Westway LAB Festival, que privilegia a música independente. Os Sensible Soccers enchem a sala e o peito. São quase 200 ouvintes psicadélicos, na faixa entre os 20 e os 30 anos, a rezar para que as cadeiras sejam dançantes. Saem em corrida para o Grande Auditório ainda a acabar de bater palmas. Noiserv é a seguir. Oferecem-nos bilhetes. “Tomem lá. Não queremos ir.” Guimarães continua, até à Praça da Oliveira, até que a juventude aguente, até aos lençóis da pousada, já a cabidela irá longe.

Sereia à vista    

Até Vila Nova de Cerveira são pouco mais de três horas. Quanto mais se sobe, mais Minho é. Se não fosse impossível, perfuraríamos túneis de choupos e carvalhos à velocidade de domingo, com o rio e a Galiza a espreitarem de folha em folha. Num pequeno ilhéu de Cerveira, Gonçalo, que parece ter cinco anos, insiste convicto: “Estava ali uma sereia! Eu vi!” A mãe apenas ralha para que ele não caia na água. Não sabemos se por medo da sereia.

A vila plantada neste beiral de Espanha foi, desde sempre, dada à imaginação, não fosse o vale do Minho nascente de dezenas de lendas, como a da Fonte dos Porcos ou do Rei Cervo, que formam a espinha de muitos projectos teatrais do grupo Comédias do Minho (CM). Encontramo-los à hora do acaso no restaurante Luso Galaico a comer filetes de pescada em dia de espectáculo.

Apesar de o “luso” vir primeiro, fala-se mais galego do que português, como, de resto, na vila inteira, mas também porque hoje é a apresentação da peça El Barco de Ávila, da Compañia Lagasca, de Castela e Leão. “Somos cinco grupos de teatro amador, um por município: Melgaço, Monção, Paredes de Coura, Valença e Vila Nova de Cerveira. E as pessoas que os compõem são muito distintas”, explica Celeste Domingues, responsável de comunicação. Criaram-se as CM há 11 anos para que os minhotos comunicassem entre si e a eles, mais tarde, juntaram-se companhias da Galiza e de Castela e Leão.

À entrada do CineTeatro, na calmaria de domingo à noite, o director artístico, João Pedro Vaz, natural do Douro e agora entregue ao pano mais verde de Portugal, comenta que o Minho lhe parece mais “igualitário”. “Há mais associativismo, o que, aliás, se manifesta nas muitas festas do Minho. De Junho até ao final de Agosto, quem quiser pode andar sempre em festa!”

Para já ficamo-nos pelo teatro. Do cimo da serra d’Arga, o cervo moldado por José Guimarães vigia-nos os passos até à pousada, antiga escola primária voltada para o rio. De manhã, a bilheteira há-de estar cerrada e os bancos à espera do comboio vindo de Valença.

Margem soul

Há viajantes de Intra_Rail para além da Fugas? Não os vemos. Nem nas pousadas, nem nos comboios. Permitimo-nos pensar que o mundo rural dá azo a isto e que Guimarães foi um acaso fora do tempo. Mas também sabemos que é nos períodos de férias escolares que o número de reservas nas pousadas dispara.

Depois de um polvo na portuense Casa Aleixo e de uma mão de tremoços em Lisboa, levamos um saco de lambujinhas para experimentar a cozinha comunitária da Pousada de Almada, a nossa quinta paragem. Quem não tem cão, caça com gato, por isso, planeiam-se lambujinhas à bulhão pato. “Hum… Isso é que vai ser mais difícil. Não temos cozinha”, nota o recepcionista, na casa dos 20 anos, que enverga orgulhosamente uma sweatshirt a dizer “Margem Soul”. “Se calhar podem ver no Youtube como se fazem amêijoas no micro-ondas…”, improvisa.

Quase todas as pousadas têm cozinha comunitária, para além de salas de convívio, muitas vezes áreas de jogos e equipamentos desportivos (em Almada, pode-se jogar futebol de cinco, por exemplo). Nós é que antecipámos erradamente. Mas numa varanda como esta, onde o espanto não tem pausas ao ver Lisboa ao fundo, a Ponte 25 de Abril e o Cristo-Rei, as lambujinhas até poderiam servir-se cruas. Daqui não dá vontade sair, ainda que a estadia seja curta.

Al Mutamid, o poeta

Aceleramos. Pelo menos em mente. Na estação de Santa Clara, no concelho de Odemira, há mochileira à vista. Cathelijne, de 34 anos, carrega primeiro a filha e depois a bagagem para dentro da carruagem. Vai a caminho de Faro, para apanhar o avião, depois de mais uma visita ao Alentejo. “Descobri Portugal há 15 anos. Tinha um namorado português e viajávamos muito de comboio. Tínhamos o tempo que precisávamos para olhar, fazer as nossas coisas... Ainda me lembro dos comboios velhos, com a porta aberta virada para o rio e o sol a entrar...” Mas o caminho-de-ferro tornou-se, para Cathelijne, mais romântico do que prático. “Venho da Holanda, onde podemos apanhar um comboio em qualquer lado. E acho que em relação a isso Portugal é um pouco limitado. Sobretudo em zonas como o Alentejo”, constata.

Da Estremadura ao Algarve, o caminho é de papoilas e pastos quentes. Não tarda e seguimos mar adentro: Albufeira, Loulé, Faro, com um regional à nossa espera e nós à espera de Tavira, onde, para além da fala em línguas que não a nossa, ferve a mouraria toda. Entramos em terras de Al Mutamid, o ex-govenador de Silves e rei-poeta que chorou o destino, o amor e a juventude durante o cativeiro em Aghmat, em Marrocos. “A mão da aurora havia-me roubado as estrelas”, escreveu, para que o imaginássemos sobre os lençóis da ria a observar flamingos e cegonhas. E quando detalhamos o mapa, entre atravessar as águas de barco para a ilha de Tavira ou apanhar um comboio-miniatura em Pedras d’El Rei, pensamos em Al Mutamid.

Ao chegar à praia do Barril, há um cemitério de âncoras sobre o areal. Até aos anos de 1960, viviam ali uns 80 pescadores, ligados sobretudo à faina do atum. As casas ao fundo, que eram as suas, são hoje restaurantes e lojas, como a da dona Amélia (nome fictício), que ali está há 30 anos a vender calções de todas as cores e que diz que “este ano há pouco turismo”.

É também em Pedras d’El Rei onde vive o ser mais antigo do país: uma oliveira com mais de 2000 anos, que nos deixa um mundo oco para nos sentarmos lá dentro a ver ramos mais fortes do que 60 gerações. O espanto faz-nos perder o autocarro para o centro de Tavira e ganhar a hipótese derradeira de uma boleia. À margem das alfarrobeiras, há um carro que pára. Homem de Lisboa a viver em Vila Real de Santo António. Acredita que as boleias já não são de hoje e conta que não trocaria o Algarve por nada. Quando nos deixa junto às salinas, percebemos porquê. Receamos, inclusive, o regresso à carruagem da vida rápida. Tavira tem tempo para mostrar as ruas pedonais, o rio Gilão, as galerias de arte, as imobiliárias como enxames a apanhar oportunidades de mel para os estrangeiros.

Após seis dias em viagem, sabemos que o descanso chega ao sétimo, no regresso a casa. “Os vossos bilhetes, por favor.” Aquiescemos, com o cartão do Intra_Rail num dedo e o bilhete a zeros no outro. “Estão a fazer um Intra_Rail, é? Então eu já cá venho”, adia o revisor. Nunca havíamos conhecido um assim, como Nélson, cabelos longos e louros até ao meio das costas, conversador com as senhoras de tom moreno que circulam paralelas ao Mediterrâneo. Riem-se dengosas; nós olhamos a ria Formosa. Nélson volta, aconselha um restaurante em Faro, conta que é um homem do metal, onde “são tudo pessoas pacíficas, muito calmas”. Deixa-nos picar os bilhetes, em brincadeira de criança. “Façam mais!”, incita.

E aqueles furos imensos no papel eram as viagens infinitas e sempre diferentes no transporte que revolucionou o mundo. Porque como sabia Álvaro de Campos, nascido em Tavira pelas mãos de Pessoa, “o lugar a que se volta é sempre outro; a gare a que se volta é outra”. 

A saber

- O Intra_Rail pode ser utilizado por jovens até aos 30 anos em duas versões – Xcape (três dias de viagem e duas noites em Pousadas de Juventude, com pequeno-almoço) e Xplore (sete dias de viagem e seis noites de estadia com pequeno-almoço). O cartão é válido nos comboios regionais, inter-regionais, intercidades (2.ª classe) e urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra. Os preços variam entre os 58 (Xcape com Cartão Jovem) e os 146 euros (Xplore sem Cartão Jovem). Existe, ainda, o Intra_Rail Live Trip, para grupos de 12 a 40 pessoas, sem limite de idade (três dias de viagem e duas noites de alojamento).

- A primeira Pousada de Juventude em Portugal foi a de Catalazete, inaugurada em 1959. O conceito de albergue da juventude surgiu na Alemanha, em 1912, pela mente de Richard Schirmann.

- “Das 40 Pousadas de Juventude em território continental, 23 estão localizadas a menos de 10 quilómetros de estações de comboio, 17 das quais a menos de dois quilómetros e meio”, destaca o presidente da Movijovem, Ricardo Araújo.

Museu Nacional Ferroviário: Do século XIX à levitação magnética

Cinco anos de obras depois, o Museu Nacional Ferroviário reabre ao público dia 19 de Maio exibindo 150 anos de história dos caminhos-de-ferro portugueses. Situado junto à estação do Entroncamento, o espaço distribui-se por 4,5 hectares com 19 linhas férreas, o Comboio Real e o Comboio Presidencial, carruagens-auditório onde haverá cinema, 36 mil objectos ligados ao sector, dezenas de veículos e plataformas multimédia onde caberão desde as primeiras locomotivas até aos “comboios do futuro”. Junto à área lounge, o restaurado painel As profissões, de Cottinelli Telmo, repousa para que o olhemos com tempo.

Depois da experiência em 2007 de uma pequena exposição dedicada ao quotidiano dos trabalhadores ferroviários, o museu obteve o apoio do QREN e do Turismo de Portugal para regressar com uma nova cara. “Embora a CP já tivesse pequenos núcleos históricos, nada tem esta dimensão”, explica à Fugas Maria José Teixeira, coordenadora do projecto, destacando o “espólio riquíssimo mas desconhecido” do museu, que pretende ser “um território de reflexão e experimentação de relações entre o património cultural e o papel histórico, simbólico e tecnológico do transporte ferroviário em Portugal”, abordando, em simultâneo, a história internacional do comboio.

Além da colecção permanente, serão inauguradas as exposições temporárias 9 Land / Site Specific Art, da associação cultural P28; Algumas razões para uma arte não demissionária, com trabalhos da Escola Superior Artística do Porto; e uma mostra de ferromodelismo sobre Composições Portuguesas organizada pelo grupo Módulos do Norte.

O renovado Museu Nacional Ferroviário, composto também pelos núcleos de Santarém, Macinhata do Vouga, Lousado, Nine, Arco de Baúlhe, Valença, Chaves e Bragança, prevê receber cerca de 150 mil visitantes por ano.

Entrevista: “O Estado incentivou as pessoas a largarem o comboio”

Manuel Tão, professor de Economia na Universidade do Algarve e doutorado em Economia dos Transportes pela Universidade de Leeds

Na sequência do Plano Estratégico dos Transportes 2011-2015, o país assistiu à desactivação das linhas do Tua, Corgo e Tâmega, do ramal da Figueira da Foz e do troço Beja-Funcheira. Foi a “revolução” mais recente no caminho-de-ferro português, considerado por Manuel Tão “uma carta fora do baralho” político. Entrevistado pela Fugas por telefone enquanto percorria o troço Tomar-Lisboa, o especialista na área ferroviária critica a falta de actualização da rede e a aposta num sistema dependente do petróleo.

Como vê a redução progressiva da rede de caminhos-de-ferro nacional?

Somos um país a contra-ritmo do resto da Europa. Decidiu-se construir estradas e auto-estradas e o caminho-de-ferro é uma carta fora do baralho. O nosso caminho-de-ferro, neste momento, é uma coisa que vai de Braga até Faro e depois tem um ramal aqui e ali. Desde 1986, desapareceu qualquer coisa como 1300 km!

O que revela esta opção política em relação ao sector ferroviário?

Revela um país onde a mobilidade, por uma série de opções e interesses, está cativa de concessões rodoviárias e de uma política dependente do petróleo. Nos últimos 25 anos, o Estado incentivou as pessoas a largarem o comboio. Temos uma política que nos afasta do resto da Europa e que nos põe a par de países como o Brasil, onde os caminhos-de-ferro existem à volta das grandes cidades, servem para as camadas mais pobres, e depois o resto anda de automóvel e de avião.

Não temos acompanhado a carruagem europeia?

A pensar nas grandes distâncias e na alta velocidade, muitos países estão a transformar o seu território e a reduzir as distâncias. Por exemplo, de Madrid a Barcelona são 620 km e a viagem leva cerca de duas horas e meia. Isto permite algo de extraordinário, em termos de mercado de trabalho, imobiliário e de turismo. O que acontece é que eles estão a ficar pequenos e nós estamos a ficar muito grandes.

Mas em Portugal muitos troços foram desactivados sob o argumento do número reduzido de passageiros.

A questão da pouca utilização tem a ver com as infraestruturas, que têm de ser renovadas. O que lá estava era uma estrutura que tinha quatro ou cinco vezes mais do que um ciclo de vida normal. Se nós tivéssemos uma auto-estrada Lisboa-Porto com um tapete de asfalto de 60 anos, seguramente que o volume de tráfego seria inferior.

O facto de o eixo mais utilizado ser o que une Braga a Faro não é um reflexo da migração das populações para o litoral?

A questão da litoralização da população não está directamente relacionada com os tráfegos. Quando consultamos as estatísticas das deslocações diárias em muitos sítios do Alentejo onde outrora existia comboio, verificamos que, apesar de a população ter diminuído, as viagens são em maior número, porque os serviços e empregos concentraram-se nas capitais de distrito. Atendendo a isto, esperava-se que a oferta de transportes públicos, nomeadamente autocarros, fosse maior, mas não. Toda a gente foi incentivada a viajar de automóvel e o comboio começa a ser algo de exótico.

Enquanto no resto da Europa o comboio é o transporte do presente e do futuro, aqui é uma espécie de relíquia.

Mas o conceito de transporte colectivo cabe na sociedade contemporânea, marcada pelo individualismo?

Eu não penso que a sociedade portuguesa seja mais individualista do que a espanhola ou a francesa. Há a ideia de que as pessoas já não andam de comboio porque melhoraram o nível de vida. Mas se assim fosse, um país como a Alemanha, que é o terceiro maior do mundo em viagens de comboio per capita, era um país onde as pessoas tinham um salário miserável. E sabemos bem que não é assim.

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