Vamos ler bem isto: caminhos-de-ferro. São de ferro porque resistem a tudo. Ao tempo, ao uso, ao peso das mercadorias e à leveza do turismo, mais ou menos moldados em linhas que aumentam e encolhem como uma lagarta, consoante o movimento e as finanças. O primeiro troço nacional, de 37 quilómetros, foi inaugurado em 1856 e unia Lisboa ao Carregado. Cento e cinquenta e nove anos depois, a rede da CP é um traçado de 1995 km, aberto aos viajantes até aos 30 anos por um preço e período máximos de 146 euros e sete dias, através do cartão Intra_Rail. As dormidas (em quarto múltiplo) e o pequeno-almoço são assegurados pela Movijovem, que gere a rede nacional de Pousadas de Juventude.
Mas mais do que factos, encarrilar num Intra_Rail é assumir que o planeta começa no Minho e termina no Algarve assim que se entra na maquinaria onde “as distâncias percorridas pelos cerca de 1400 comboios [operados pela CP], a cada dia útil, equivalem a duas voltas ao mundo”, como ilustra Ana Portela, da Comunicação Institucional da empresa Comboios de Portugal.
Hoje o mundo resume-se à volta de um regional – o único que liga Lisboa a Castelo Branco em dia de greve no sector ferroviário. Mas não é certo que, havendo comboio, existam autocarros até Idanha-a-Nova, que fica a 38km da estação mais próxima. Na Gare do Oriente, em Lisboa, a paralisação sente-se numa fila irrequieta de 40 minutos até à bilheteira, enquanto na Beira Baixa domina o mundo parado dentro do tempo. “O autocarro chega mesmo junto à pousada, mas só há dois por dia: um de manhãzinha e outro à tarde”, explica-nos, por telefone, a recepcionista da Pousada de Juventude de Idanha-a-Nova, a primeira paragem da Fugas nos sete dias de Intra_Rail Xplore. “Seja o que a greve quiser”, respondemos.
O tal regional
Vamos num balouço para Castelo Branco. É difícil urinar assim. Mas depois de treinado o equilíbrio desde o assento até à toilette, as pernas seguem menos bambas. Da janela, o Castelo de Almourol percorre um travelling suspenso sobre o rio e há um trilho pedestre na outra margem, para os lados de Fratel (onde foi gravada a série Estação da Minha Vida), a perfurar as rochas beirãs.
Enquanto a figura de Cândida (nome fictício) faz parte de um quadro do Tejo, a conversa com o marido abre-se à carruagem. “Ele já não vem cá para lá de seis meses. Tem muito trabalho… E isto é longe. Sair de Lisboa e andar isto tudo até cá cansa muito.” Falarão do filho, do neto... Desconhecemos. Sabemos que o interior é longe, com toda a relatividade que isso implica. E descosemos o resto da história com a facilidade de uma linha solta, já que o comboio atira a intimidade para os carris, mesmo que todos julguem viajar numa cabine à prova de som.
Catarina Silva, 21 anos, estudante de Gestão, já fez três intra_rails em Portugal. Enquanto conta os apeadeiros, também se põe à conversa, joga às cartas, lê revistas. Diz que a vontade e a curiosidade em conhecer melhor “o nosso pequeno cantinho do mundo” é algo que os pais sempre a ensinaram a procurar. Em Fevereiro, foi com o namorado, Duarte Monteiro, 20 anos, conhecer o Norte. Queria “experienciar cada tradição, cada sotaque, cada iguaria culinária e traço cultural”. “Nunca se sabe o que vai acontecer a tão poucos quilómetros de casa”, reconhece.