Fugas - Viagens

Rocío (ya) no es virgen

Por Rute Barbedo (texto e fotos)

Imagine-se um mapa de Espanha visto de cima e centenas de carreiros de formigas a convergir para um mesmo ponto. A romaria de El Rocío é isto, mas as formigas usam saltos altos e chapéus, cantam sevilhanas e rezam sobre peitos queimados pelo sol. Este ano, a festa começa a 22 de Maio.

De onde quer que se parta, o caminho até El Rocío é longo. Atravessa o calor árido da Primavera andaluz – Verão para quem não olha ao calendário – até perfurar um oásis: o Parque Nacional de Doñana, uma das maiores reservas biológicas da Europa, onde cabeças febris se acalmam à sombra de zimbros e pinheiros mansos, regados por uma imensidão de lagoas e ribeiros. É nestes terrenos da província de Huelva que acampam os rocieros do mundo, de violas debaixo dos braços e tachos lançados às fogueiras. Começam o dia entre chouriços e paella caseiros, surgidos desse universo de possibilidades que é a marmita. “¿José, donde está la pimienta?” Ela está ali, mesmo em frente, pronta a sacudir a língua.

Há mais de oito séculos que se caminha para El Rocío. A cada ano, são mais e já ultrapassaram o milhão, porque a fé na “Blanca Paloma”, a virgem padroeira, anda de boca em boca e não morre nas novas gerações. Mas à chegada, aquém de ténues silhuetas e chapéus gastos pelo sol, o que vemos ao deixar a A-483 é sobretudo pó, como se nos tivessem engarrafado num western religioso em que os fósforos atiçados junto às esporas são para acender velas e cigarros.

Dizíamos, lá atrás, que o caminho até El Rocío é longo... Agora sabemo-lo como um deserto de sede pronta a morrer em vinho. Ignorássemos nós o culto mariano por detrás da romaria e, antes de passar a linha da aldeia, imaginaríamos uma festa pagã, de vestidos vermelho-sangue e têmpera cigana, de mãos brutas que assam carne de porco e lambem o sal aos dedos. Enquanto a gordura pinga em brasas lentas, a letra faz-se rouca de copo na mão: “Andalucía es mi tierra, yo soy del sur. Me gusta el mosto en Noviembre y mirar al cielo azul!”

É Dolores, com 40 anos de vida e mais de 20 de El Rocío, que nos dá paz às inquietações. “Existem as celebrações de penitência e as de glória. E a romaria de El Rocío é de glória. Para mostrarmos o nosso amor à virgem não temos de penitenciar-nos e sofrer. O amor mostra-se cantando, dançando, fazendo da nossa alegria a alegria de El Rocío!” Portanto, nada de comparações ao 13 de Maio português. Nesta Andaluzia de saltos altos, a história é outra.

Já os olhos se habituaram um pouco ao pó, e o lenço se cerra firme sobre o nariz, quando nos surge a primeira aparição à porta da aldeia, nesta sexta-feira (o núcleo da festa avança até segunda-feira): um circo montado de polícias, negociantes de terrenos baldios feitos em parques de estacionamento e vendedores de quartos, trajes e adereços andaluzes para os menos precavidos. Tudo o que se ouve são vozes duras. Gente do Sul. Gritam em euros e intercalam com os ditos da romaria. “Viva la Virgen del Rocío!”, repetem em jeito de compasso, ou assobiam rocieras na recepção aos caminheiros e curiosos. Contam-nos que alguns aguardaram o ano inteiro pela segunda-feira que aí vem, debruçada sobre o Domingo de Pentecostes (50 dias após a Páscoa), o ponto alto da festa. E agora que os ouvimos cantar, parecem ter poupado as vozes inteiras dentro do corpo para gastá-las de um fôlego por estes dias.

Com cuidado para não pisar vestidos, seguimos pelo chão de areia neste pueblo encantado até às portas do saloon, onde se bebem tintos de verano e cafés para enganar o sono soalheiro. Ficamos a ver passar cavalos bravos sobre o Charco de la Boca, até que se teça o silêncio do meio-dia, hora em que a aldeia pára para receber, com cerimónia, as mais de 100 irmandades (“associação leiga que tem fim devoto”, diz-nos o dicionário, para sermos precisos) frente ao santuário branco que esconde a virgem da festa.

Vieram em carros, carroças, a cavalo ou a pé de lugares como Sevilha, Barcelona ou Bruxelas, dormindo aos cinco, dez e doze em carruagens forradas de pano e pesadas de panelas, mantas, vestidos, como armazéns ambulantes de curiosidades. Muitos encontram nesta aldeia uma história de espanto que as instiga a viver com mais força. Ela começa com Gregorio Medina, caçador nas terras de Huelva, que um dia terá encontrado na cova de uma árvore a imagem de uma virgem em vestes de linho. Deslumbrado pela beleza e pela energia densa, decidiu carregar a imagem até Almonte, para mostrá-la aos seus, mas caiu exausto a meio do caminho. Quando acordou, na manhã seguinte, virgem alguma dormia consigo. A imagem havia tornado ao lugar onde a encontrou Gregorio Medina pela primeira vez. E do episódio fantástico entre os caminhos de Huelva nasceu a devoção e crença no milagre, erguendo-se entre 1280 e 1285 o santuário de El Rocío, em honra da “Blanca Paloma”.

Todos os dias são de romaria

Aos 70 anos, Diego Ramírez, membro da Hermandad de la Ronda e administrador da página Rocio.com, já não se mete em loucuras sem motor de fazer 200 quilómetros numa carroça puxada a cavalos e alimentada a tortilha. Mas continua a vir a El Rocío sem falhas para dar corpo à devoção que iniciou com a família há 30 anos. Canta porque as letras fazem parte do texto do ano inteiro. “Acompanho diariamente os acontecimentos rocieros”, afirma Diego, como se todos os dias do ano fossem de romaria.

Mas o que impele o señor Ramírez a procurar o enclave rociero a cada Primavera? “Quando vi tudo isto, impactou-me a religiosidade e a devoção; deixei-me contagiar”, explica à Fugas, recordando o caminho para trás, “cheio de marcos que emocionam”, como a passagem pela ponte de Ajolí ou nas construções romanas de Coria, onde se cruzou com as irmandades que, como ela, ali pararam para descansar, cantar e contar as histórias do caminho. Por outro lado, Diego entende que a festa se tem tornado cada vez mais especial, muito pela dimensão crescente e pela reunião de “pessoas de muitas partes de Espanha e do mundo num lugar que tem algo de mágico”.

Mesmo em dias sem festa rija, El Rocío sofre de uma espécie de magnetismo oculto. Os alpendres de madeira a guardar as cabeças do sol, os cavalos à porta e a vida suspensa nas cordas que não se desenlaçam dos corrimões são o começo de clichés gerais, quando os clichés dizem muito. Também o desemprego bateu ali, como em toda a Espanha, conta-nos Manuel Romero Triviño, de 55 anos, habitante da aldeia há 16, para justificar a calmaria e o sono da aldeia na ausência de festa. Fora isso, os empregos são de passo lento, como pede o corpo em terras meridionais, e ligam-se sobretudo à natureza e ao turismo.

Assim, conduzir na A-483 sem romaria à vista, depois de uns bons quilómetros de bosque, e avistar a placa que aponta para El Rocío pode ser o início de um bom imprevisto. Seguindo-se o instinto, dá-se conta da vida western num cenário a sul: as esplanadas são matutinas para quem reza por um café sentado na areia, os olhos pousarão sobre quem sai e entra, e os bons dias virão dos criadores de gado, guardas florestais (do Parque Nacional de Doñana), cultores de morangos e comerciantes de recuerdos. Depois do café com leite e da tostada com azeite, todos seguirão firmes para a igreja, um a um. Como Triviño ilustra, aqui, “tudo gira em torno da ermida, onde vive a melhor vizinha do mundo”, a quem os habitantes prestam “uma visita obrigatória” ao início e final de cada dia. Pedem que os ajude nas colheitas, que lhes dê saúde, que esteja presente. É que “há um momento na vida em que o homem precisa de se agarrar a algo, acreditar que existe um ser superior”, caso contrário o mundo deixa de fazer sentido. Por isso, enganam-se os que chegam à aldeia em dia de romaria e que se ficam pelo primeiro plano. “El Rocío não é a festa, não é o que se vê, sobretudo na televisão. É antes o que ela [a Virgem], do seu altar, consegue ver, que no fundo é Deus convertido em pastor. Só quem entender o que digo é que conseguirá compreender o que é verdadeiramente El Rocío”. 

Ofertas da casa

Ainda que o evento seja pura e duramente católico – com direito a homens que se atiram enérgicos ao andor determinados a carregar a Virgem, mulheres vertidas em lágrimas e crianças benzidas em ânsia junto ao santuário –, laicos sentam-se à mesa com cristãos sem que as conversas se inflamem. Na Hermandad de Jaén, (outro) Diego tira cervejas à pressão para copos de plástico na madrugada de sábado para domingo. Entramos a perguntar pelo preço de uma. “Mira, hombre, no es nada… Está en la casa [É por conta da casa]!” O restante discurso enrola-se na algazarra das mesas e nos preparativos do almoço do dia seguinte.

Ainda não nos conhecemos e Diego já nos pousa a mão nas costas para convidar a comer e a beber. Pão, presunto, azeitonas e umas sobras do aqui e do além. Chama a esposa para ajudar, que se há lugar para receber bem o viajante – categoria mais alta do que a de católico por estas paragens, ao que parece –, esse lugar é El Rocío.

 O dia seguinte será de comer bem, por isso, às três da manhã os ponteiros não marcam descanso para todos. Diego tem um restaurante de comida regional em Jaén, pelo que a irmandade que anima em El Rocío não pode ficar atrás quanto aos prazeres do prato. “Precisamos de comer bem para aguentar toda esta actividade, não?!”, exclama o rociero, de barriga farta a desafiar os botões da camisa. E no rigor dos temperos e tempos percebemos que Rocío também é isto: um festival gastronómico de Espanha numa aldeia vestida de branco.

Prestes a abandonar a mesa para descansar no vagão que a trouxe até aqui, Rosana mancha de vinho o vestido verde. Dá-nos tempo de imaginar: pelo tecido e rendas, terá custado uns 300 euros. É que, pouco antes, ao balcão da irmandade de Jaén, nos haviam confessado que os trajes das rocieras andam entre os 100 e os 500 euros. “E há muitas que têm mais de dez vestidos!”, acrescentava Esmeralda, com a mão em frente à boca madrugadora, já sem bâton. Mas nem por isso Rosana chora. “Um pano com álcool resolve”, improvisa, num recurso de ápice aos ensinamentos de família.

As noites são de festa acelerada em El Rocío, seja nestas moradias amplas com pátios andaluzes, seja em casas privadas com alpendres voltados para ruas de areia. Porque o turismo é um dos poucos negócios possíveis nesta aldeia católica, além de se venderem velas e imagens da “Blanca Paloma” nas mais variadas formas, também as casas de família são alugadas e transformam-se em dormitórios para 20, 30 ou 40 pessoas. As camas ficam no primeiro piso (mulheres de um lado, homens do outro), já que, rente à rua, as salas de estar são pistas de dança e os varandins são postos de tapas e cantorias. Repetem-se o rum amado da Andaluzia, as sevilhanas, as mãos torneadas por cima das cabeças. O último a sair que feche a porta.

Ressaca e oração

Às oito da manhã de domingo, os bancos estalam de ressaca. “Un café, por favor” e chegam chávenas largas ao balcão para mergulhar o pão torrado. Os olhos bambos preparam-se para a missa das 10h, no Real do Rocío, onde se dá a coroação da Virgem. Até lá, os caminhos são procissões, fotografias sem descanso, irmandades que exibem trajes e estandartes até ao santuário. Maria de vermelho, Rosana de azul, Lola de amarelo. Gargalhadas e cadeiras de rodas. Miúdos de pontapé na bola e padres de crucifixo em riste. Bocas cerradas e olhos em lágrimas – pela fé e pelo pó. Peitos inflamados pelo sol. No fim da celebração e do cantar no peso de um coro afinado, todos tornam às suas casas e cozinhas.

Parece não haver mais fôlego para tanta folia, mas, na verdade, vamos só a metade, ainda que já roucos. O auge das celebrações é de domingo para segunda-feira, madrugada em que a Virgem sai à rua pelas mãos dos irmãos de Almonte, para se encher de pétalas e louvores vindos da multidão. Desmaia-se em El Rocío. Todos querem tocar a imagem do milagre. Uma criança desliza até à Virgem pelas centenas de mãos erguidas ao céu. “Bendita, bendita, mi pequeña!” A criança chora. Nunca andou num carrossel assim, com um milhão de pessoas a gritar por ela. Mas, a seguir-se a tradição, a família há-de tornar à aldeia mágica da Andaluzia no ano seguinte, para mais um caminho, mais uma volta.

GUIA PRÁTICO

Quando ir

A data da romaria varia de ano para ano, sendo o auge da festa na segunda-feira a seguir ao domingo de Pentecostes (50 dias depois da Páscoa). Normalmente, a celebração em El Rocío acontece entre os meses de Maio e Junho. Este ano, o ponto alto é a 25 de Maio, mas a romaria começa pelo menos uma semana antes, com festa pelos caminhos de Espanha.

Como ir

De carro

Cerca de quatro horas separam Lisboa de El Rocío, se as auto-estradas e os itinerários principais forem os caminhos privilegiados. Há três rotas possíveis: de Lisboa até à costa algarvia, atravessando a fronteira em Vila Real de Santo António e seguindo na direcção de Huelva e Almonte; utilizando a A2 e o IP8 para passar por Beja e chegar a Espanha junto ao vale do Guadiana, continuando rumo ao Sul; ou passando pelo eixo Elvas-Badajoz e aproveitando para uma paragem em Sevilha (a viagem é mais longa mas mais prazerosa, para quem vai com tempo).

De avião

A Iberia e a TAP praticam preços entre os 140 e os 170 euros para Sevilha, desde Lisboa e Porto. Os voos com partida em Faro, operados pela TAP, rondam os 230 euros. A melhor forma de chegar da capital da Andaluzia até El Rocío é nos autocarros da Costasur. O preço é de 6,35 euros por percurso.

Como um rociero

O caminho de Sevilha é o mais conhecido e concorrido entre todos os que desembocam na aldeia de El Rocío. As diferentes rotas possíveis convergem em Ajolí e, em La Juliana, as hermandades aproveitam para acampar durante a noite, seguindo caminho até Lopaz, mais um ponto de paragem e de festa com viola na mão. Os peregrinos prosseguem até ao pinhal de Aznalcazar, passam por San Diego e Coria, seguindo as linhas que os conduzem até às vias arenosas junto a El Rocío.

Para além do caminho de Sevilha, há muitas outras rotas possíveis (a consultar em rocio.com), incluindo o caminho europeu, que começa em Bruxelas.  

Onde ficar

Casas particulares: os habitantes da aldeia abrem as portas aos visitantes durante as celebrações de Pentecostes, disponibilizando quartos para uma média de seis pessoas. O preço é variável.

Hotéis e pensões da aldeia ou em povoações próximas (as reservas devem ser feitas com cerca de um ano de antecedência)

Acampamentos: são o lugar garantido em El Rocío para quem não teve oportunidade de se organizar com tempo. À entrada da aldeia, são visíveis as várias zonas do pinhal onde é permitido acampar.

O Parque Nacional Doñana

Declarado Reserva da Biosfera pela UNESCO em 1980, o Parque Nacional Doñana é ninho de 300 espécies de aves, casa de 33 espécies de mamíferos e habitat de mais de 900 tipos de plantas. O cenário de flamingos a sobrevoarem o estuário será um dos mais emblemáticos deste lugar onde o Guadalquivir encontra o mar, mas são muitas vezes os elementos mais raros – como o lince ibérico ou a águia imperial – a atrair os amantes da natureza ao local.

Dada a proximidade aos continentes europeu e africano e ao eixo onde se misturam o oceano Atlântico e o mar Mediterrâneo, Doñana tornou-se um ponto de passagem e de hibernação para muitos animais. A riqueza da fauna fez com que o lugar tivesse sido utilizado, até ao século XX, como área de caça para a realeza espanhola.

O parque é dotado de quatro centros de interpretação abertos ao visitante, onde se disponibilizam mapas (existe um percurso predefinido ao redor da Lagoa do Acebuche), informações e conselhos sobre o local. No centro de El Acebuche (que fica a aproximadamente a três quilómetros da localidade de Matalascañas), é, ainda, possível marcar um passeio de jipe ou a cavalo pelo parque natural. Para quem preferir o barco, existem expedições desde Cádiz e outras actividades de passeio que podem ser agendadas através do website visithuelva.com.

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