De onde quer que se parta, o caminho até El Rocío é longo. Atravessa o calor árido da Primavera andaluz – Verão para quem não olha ao calendário – até perfurar um oásis: o Parque Nacional de Doñana, uma das maiores reservas biológicas da Europa, onde cabeças febris se acalmam à sombra de zimbros e pinheiros mansos, regados por uma imensidão de lagoas e ribeiros. É nestes terrenos da província de Huelva que acampam os rocieros do mundo, de violas debaixo dos braços e tachos lançados às fogueiras. Começam o dia entre chouriços e paella caseiros, surgidos desse universo de possibilidades que é a marmita. “¿José, donde está la pimienta?” Ela está ali, mesmo em frente, pronta a sacudir a língua.
Há mais de oito séculos que se caminha para El Rocío. A cada ano, são mais e já ultrapassaram o milhão, porque a fé na “Blanca Paloma”, a virgem padroeira, anda de boca em boca e não morre nas novas gerações. Mas à chegada, aquém de ténues silhuetas e chapéus gastos pelo sol, o que vemos ao deixar a A-483 é sobretudo pó, como se nos tivessem engarrafado num western religioso em que os fósforos atiçados junto às esporas são para acender velas e cigarros.
Dizíamos, lá atrás, que o caminho até El Rocío é longo... Agora sabemo-lo como um deserto de sede pronta a morrer em vinho. Ignorássemos nós o culto mariano por detrás da romaria e, antes de passar a linha da aldeia, imaginaríamos uma festa pagã, de vestidos vermelho-sangue e têmpera cigana, de mãos brutas que assam carne de porco e lambem o sal aos dedos. Enquanto a gordura pinga em brasas lentas, a letra faz-se rouca de copo na mão: “Andalucía es mi tierra, yo soy del sur. Me gusta el mosto en Noviembre y mirar al cielo azul!”
É Dolores, com 40 anos de vida e mais de 20 de El Rocío, que nos dá paz às inquietações. “Existem as celebrações de penitência e as de glória. E a romaria de El Rocío é de glória. Para mostrarmos o nosso amor à virgem não temos de penitenciar-nos e sofrer. O amor mostra-se cantando, dançando, fazendo da nossa alegria a alegria de El Rocío!” Portanto, nada de comparações ao 13 de Maio português. Nesta Andaluzia de saltos altos, a história é outra.
Já os olhos se habituaram um pouco ao pó, e o lenço se cerra firme sobre o nariz, quando nos surge a primeira aparição à porta da aldeia, nesta sexta-feira (o núcleo da festa avança até segunda-feira): um circo montado de polícias, negociantes de terrenos baldios feitos em parques de estacionamento e vendedores de quartos, trajes e adereços andaluzes para os menos precavidos. Tudo o que se ouve são vozes duras. Gente do Sul. Gritam em euros e intercalam com os ditos da romaria. “Viva la Virgen del Rocío!”, repetem em jeito de compasso, ou assobiam rocieras na recepção aos caminheiros e curiosos. Contam-nos que alguns aguardaram o ano inteiro pela segunda-feira que aí vem, debruçada sobre o Domingo de Pentecostes (50 dias após a Páscoa), o ponto alto da festa. E agora que os ouvimos cantar, parecem ter poupado as vozes inteiras dentro do corpo para gastá-las de um fôlego por estes dias.