Fugas - Viagens

  • O Gravensteen
— o Castelo
dos Condes,
como também
é conhecido
    O Gravensteen — o Castelo dos Condes, como também é conhecido
  • beguinaria de Sint
Amandsberg, uma das
maiores da Bélgica, convertida
parcialmente em zona
residencial
    beguinaria de Sint Amandsberg, uma das maiores da Bélgica, convertida parcialmente em zona residencial

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A jóia da Flandres

Memória de uma vida quase monástica
O ano de 1235 foi o da fundação de uma das mais antigas beguinarias de Gante e da Bélgica, a de Nossa Senhora de Ter Hoyen. Desde o final do ano 1000, com particular expressão ao longo dos séculos XII e XIII, que a partir da Europa, num movimento quase contínuo, hordas de fiéis e penitentes transformados em soldados vinham dirigindo ataques à região do Próximo Oriente, sobretudo à Palestina, almejando a conquista de Jerusalém. O contexto da fundação de Nossa Senhora de Ter Hoyen foi o das chamadas Cruzadas (as últimas haviam sido realizadas em 1217-1221 e em 1228-1229), fenómeno que povos e historiadores do Próximo Oriente preferem designar, com todo o sentido, como “invasões francas”. 

Esse movimento representou à época uma enorme sangria de homens nas sociedades europeias e há quem interprete a criação das beguinarias como uma resposta feminina às contingências da época, marcadas também por índices elevados de violência militar, como nota o historiador belga Henri Pirenne. Os conventos estavam repletos e, no sentido de se conseguir uma maior protecção às mulheres, em maioria na sociedade, foram criadas comunidades semimonásticas, as quais viriam a constituir o embrião das beguinarias (beginjnhof, em flamengo, ou beguinages, em francês). As primeiras surgem principalmente em regiões que estão hoje integradas na Bélgica, Holanda, Norte de França e Noroeste da Alemanha. Outras surgiram, também, em Inglaterra, Noruega e mesmo em Paris.

A estrutura mais básica das beguinarias compreendia de uma forma geral uma série de casas dispostas em torno de um pátio ou de uma ampla zona ajardinada e arborizada, com uma igreja no centro, rodeadas por uma muralha que garantia o isolamento face ao resto da povoação. Outras beguinarias seguiam um modelo de cidade medieval e as mais recentes combinavam os dois figurinos.

Muitos desses complexos arquitectónicos acabaram por desaparecer absorvidos pelo desenvolvimento urbano, como aconteceu com a antiga beguinaria de Sint-Elizabeth, em Gante, e alguns deles foram seriamente danificados pelas duas guerras mundiais. Sobreviveram em território belga 27 beguinarias, 13 das quais viriam a ser classificadas pela UNESCO, em 1998, como Património Mundial. As razões para a classificação sublinharam a combinação de diferentes características arquitectónicas — urbanas e rurais, assim como religiosas e tradicionais — específicas da cultura e região flamengas e relevaram, ainda, a sua condição de testemunho de um singular movimento religioso da Idade Média.

Entre as que merecem, absolutamente, uma visita estão as de Gante, Bruges e Louvain. Na cidade de Gante há duas beguinarias, a de Nossa Senhora de Ter Hoyen e a de Sint-Amandsberg, uma das maiores da Bélgica, convertida parcialmente em zona residencial. São ambas, como todas as suas congéneres, oásis de extraordinária serenidade em pleno espaço urbano. A de Nossa Senhora de Ter Hoyen é um paradigma da harmonia arquitectónica que caracteriza as beguinarias, apesar das reestruturações de que foi objecto nos séculos XVII e XVIII; congrega uma centena de casas de tons vermelhos e castanhos, com muros brancos à volta, sete conventos, uma igreja barroca e um jardim sombreado por um pequeno bosque de faias. Na Groot Beginjnhof de Sint-Amandsberg, edificada na segunda metade do século XIX para substituir a de Sint-Elisabeth, não é incomum o viajante deparar-se com vaquinhas a pastar nas imediações de uma capela consagrada a Santo António.

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