Fugas - Viagens

  • O Gravensteen
— o Castelo
dos Condes,
como também
é conhecido
    O Gravensteen — o Castelo dos Condes, como também é conhecido
  • beguinaria de Sint
Amandsberg, uma das
maiores da Bélgica, convertida
parcialmente em zona
residencial
    beguinaria de Sint Amandsberg, uma das maiores da Bélgica, convertida parcialmente em zona residencial

A jóia da Flandres

Por Humberto Lopes (texto e fotos)

É uma das mais interessantes cidades de raiz medieval da Europa. E Gent (Gante), na Flandres Oriental, é também uma imbatível capital cultural.

É um dia primaveril, o sol verte uma luz cálida sobre a cidade, o casario de tijolo avermelhado da begijnhof de Ter Hoyen recorta-se sobre um céu azulíssimo, uma brisa fresca sacode as bandeirolas empinadas entre as ameias do castelo de Gravensteen. Peões e bicicletas partilham, em pequenos enxames vacilantes, vielas e praças e as inúmeras pontes em arco sobre os canais. As esplanadas retomam com lentidão as suas azáfamas na berma soalheira dos canais, os reclames de néon dos bares lançam aos passantes os chamarizes do costume, mais apropriados ainda numa cidade onde a cerveja artesanal conserva com zelo um secular reinado: “Delirium tremens – Elected as best beer in the world”.

Não muito longe do Gravensteen, a ribeira por onde navegam lanchas e barcaças espalmadas — uma espécie de bateau-mouche em miniatura — repletas de turistas transformou-se há muito num canal amansado. Chama-se Lys, e as suas águas imergem, mais adiante, nas do Escaut, rio que faz depois o seu caminho pela planície flamenga até Antuérpia, onde Portugal firmou sólidos laços comerciais com os mercadores da região, entre os séculos XIII e XVI. Sombras e luzes nas andanças portuguesas pela Flandres: o Lys, que pouco antes de Gante atravessa a planura pantanosa onde se desenrolou o desastre do Corpo Expedicionário Português na I Grande Guerra, há quase cem anos, e a feitoria lusitana de Antuérpia, que sucedeu à de Bruges a partir do início do século XVI.

Gante foi também a cidade de origem de um flamengo que ajudou a moldar a arte religiosa portuguesa. D. Manuel mandou-o chamar, no âmbito de um programa de intervenções na Charola do Convento de Cristo, em Tomar, iniciado em 1510. Quando o escultor Olivier de Gand esculpiu a série de imagens que decoram o interior da Charola, já havia, entretanto, oferecido os seus préstimos artísticos noutros edifícios religiosos portugueses — é o autor, também, do retábulo do altar-mor da Sé de Coimbra, de escultura para o Convento de São Francisco, em Évora, e de alguma estatuária conservada no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.

Mas a capital da Flandres Oriental é muito mais, naturalmente, do que uma cidade flamenga onde nos podemos lembrar de Portugal. Poupada durante as duas grandes guerras aos danos que atingiram outras urbes europeias, Gante detém um centro histórico exemplar da arquitectura flamenga, muito bem conservado, duas beguinarias e um punhado de excelsas obras de arte de renome mundial. O burgo faz, ainda, sonoro alarde de uma animação cultural permanente, que se estende muito para lá do Verão.

A visita de Zenão 

Gante é hoje a quarta cidade belga — em tamanho e população, mas talvez não em relevância, se tivermos em conta as dimensões cultural e histórica, assim como a da contribuição para o PIB belga — e um importante pólo industrial, cuja genealogia podemos traçar até à Idade Média. A partir do século XII a cidade registou um crescimento económico notável devido ao comércio e à indústria têxtil, actividade que se mantém (a par da horticultura, floricultura e produção de cerveja), não obstante os tão propalados malefícios da globalização, como uma importante fonte de geração de riqueza.

Gante já foi uma das maiores e mais prósperas cidades europeias, só superada por Paris, estatuto que se firmou durante a Baixa Idade Média e que se manteve até ao século XV. A perda de saída para o mar (que viria a ser reposta mais tarde, permitindo que fosse recuperada a condição de cidade marítima) representou um factor de declínio económico, mas não comprometeu a relevância cultural e histórica, como o viajante contemporâneo pode comprovar pessoalmente ou através dos epítetos e elogios lavrados em publicações especializadas. Referida frequentemente, e com inquestionável mérito, como um dos mais apelativos centros históricos da Europa, Gante surgiu há poucos anos em terceiro lugar num inventário dos lugares mais “autênticos” da Europa publicada pela National Geographic Traveler Magazine. O urbanismo e o património arquitectónico medievais estão na origem desta apreciação, subscrita e ratificada também pela inscrição na UNESCO, que incluiu na sua lista de Património da Humanidade o icónico Campanário do século XIV e as suas duas beguinarias, uma delas de raiz medieval. Uma subida ao topo do Campanário, que tem 91 metros de altura e traço gótico, oferece aos viajantes uma vista admirável do centro histórico (uma zona inteiramente reservada aos peões), das ruelas do burgo medieval e dos telhados e fachadas de recorte flamengo, das muralhas e da torre de menagem do Gravensteen. E, ainda, da igreja de São Nicolau e da Catedral de Sint-Bavon, que Marguerite Yourcenar fez visitar pelo personagem Zenão em A obra ao negro no contexto das suas deambulações (e esquivas à Inquisição) por uma Europa já em transição dos tempos medievais para as iluminações renascentistas.

Água, canais, pontes

O Gravensteen — o Castelo dos Condes, como também é conhecido — corporiza uma certa ideia das trevas tenebrosas da Idade Média, mesmo se tal período tenha sido mais do que esse muito difundido estereótipo. Fortaleza soturna, de escadórios sombrios e ameias orwellianas a espreitar o burgo, o Gravensteen foi residência dos Condes da Flandres até ao século XIV e semi-abandonado a partir de então, tendo sido ocasionalmente usado como prisão ou espaço fabril. Com o seu Museu da Tortura, o Gravensteen é como a antítese da face solar e festiva da cidade, e involuntariamente, cogitará o viajante durante o quase passeio de toupeira pela suas entranhas pardas e húmidas, símbolo das assimetrias sociais e obscuros poderes que por sinuosas vias se souberam adaptar e perdurar nos tempos modernos europeus. Atravessar o enorme portal, finda a viagem no tempo e a visão de armaduras, espadas, lanças, bacamartes, guilhotinas e cutelos, e sair para a luz do dia é como dar um pulo de séculos. Cá fora espera-nos o ar primaveril da Flandres, o céu azulíssimo espelhado nos canais, praças coloridas com árvores em flor e canteiros pendurados às janelas das casas de fundações entranhadas nas águas, como em Veneza. 

A água, tal como na cidade dos Doges e noutras bandas da Flandres, é um elemento omnipresente. Há em Gante uma ampla rede de canais e bem mais do que uma centena de pontes; a prestigiada ponte Sint-Michel, sobre o Lys, vale a fama pelo cenário monumental — adjectivo bem medido. Se o aluguer de uma bicicleta pode significar uma das melhores formas de explorar a cidade — plana, como toda a Flandres —, a maioria dos visitantes opta pelas muito turísticas excursões de barco, que proporcionam, verdade seja escrita, magníficos panoramas das fachadas de casas alinhadas ao longo das margens dos canais, embora o tempo se revele escasso para admirar os jogos geométricos e a paisagem ritmada das figuras em baixo-relevo. Mas a jornada dura o tempo bastante para descobrir quão enganadora é a impressão de unissonância e quão variada é a ornamentação, a cor, o desenho das casas flamengas. O passeio abre a memória à divagação sobre as cidades de água do continente e os seus sortilégios — Bruges, ali à beira, flamenga também e mais familiar no casario e na luz; as ilhas meridionais do Veneto, sobretudo Veneza e Murano; e a bela e discreta Landerneau, com a sua singular ponte medieval habitada, lá para os lados da tão ocidental Bretanha.

Dos museus aos festivais

O roteiro museológico de Gante é extenso e de conteúdos heterogéneos, e alguns espaços são relativamente originais — mesmo se esta categoria se vai tornando de problemática definição num mundo em que muitas instituições do género desafiam a ortodoxia. The world of Kina, por exemplo, é um espaço que aborda curiosos fenómenos da natureza e que se quer vocacionado para um público infantil. Para todas as idades, pode-se bem asseverar, é o The House of Alijn, onde se passa em revista, com uma panóplia de suportes audiovisuais e objectos, a evolução da vida quotidiana no século XX. Se o visitante alguma vez se percepcionou como algo distante dos padrões, pode ser interessante visitar o Dr. Guislain Museum, instalado numa antiga clínica psiquiátrica (um pouco afastado de centro, mas acessível através da linha de eléctrico 1), e tomar conhecimento de estereótipos e preconceitos sobre a doença mental e também sobre as formas de tratamento praticadas no século XIX. Até 27 de Setembro o museu tem uma exposição temporária, Characteristic Faces, uma co-produção com o Teylers Museum de Harlem, na Holanda, sobre preconceitos relacionados com as formas do rosto e a sua (suposta) relação com problemas mentais, cobrindo um espectro de tempo desde a Antiguidade. 

Na lista dos museus mais convencionais encontramos um muito interessante Museu do Design e o Museu de Belas Artes, onde podemos contemplar uma vasta colecção de pintura desde a Idade Média até ao século XX. O acervo inclui obras-primas da pintura flamenga e de muitos outros artistas, como Bosch, Brueghel, Tintoretto, Rubens, Rodin, Géricault, Redon, Ensor, Kirchner, Max Ernst e Magritte. E há uma tocante Virgem e o Menino, de Van Der Weyden, que pode ser uma das mais gratas memórias que o viajante leva de Gante. Se a motivação é de navegar em águas do género, é inevitável, também, uma visita à Catedral de Sint-Bavon, onde se guarda aquela que é a mais famosa pintura residente na cidade, o políptico Adoração do cordeiro místico, de Jan van Eyck, uma das obras-primas da pintura medieval.

Num outro plano, que sem qualquer juízo de valor se dirá mais mundano, Gante é uma espécie de paraíso de festas e festivais de razoável ambição, dispersas por um animado calendário anual. O próximo evento, o Gante Jazz Festival, começa dentro de duas semanas (ver caixa). O facto de Gante ser uma cidade universitária com mais de 60.000 estudantes torna-a, aliás, um espaço de permanente animação, que pode ser testada através de uma volta por uma série de emblemáticas brasseries e históricos pubs, como o Café Den Turk, na Botermarkt. 

Outra aspiração oficial da cidade, de não pouco cometimento, é a de ser “capital vegetariana do mundo”. Há um dia semanal, quinta-feira, em que se incentiva o vegetarianismo entre a população e, particularmente, entre os jovens. E, note-se, uma ampla oferta de bares e restaurantes vegetarianos que se vem tornando cada vez mais um factor de atracção para muitos visitantes. A Flandres como espaço privilegiado para experiências comunais de vegetarianismo? Talvez. Lembrar-se-ão os leitores de Marguerite Yourcenar curiosos da terra e da cultura flamenga de uma passagem de A obra ao negro em que a autora, referindo-se às preocupações de Zenão com a sua dieta alimentar, escreve que comer carne é como digerir agonias?

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