Fugas - Viagens

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As cidades que se recusam a dormir

Por Sousa Ribeiro

De Tóquio a Nova Deli, de Xangai a São Paulo, da Cidade do México ao Cairo, de Istambul a Paris, urbes que são verdadeiros formigueiros humanos e, ao mesmo tempo, tão capazes de produzir encantos no viajante.

Actualmente, 54% da população mundial vive em áreas urbanas, uma percentagem que, segundo o último relatório das Nações Unidas, deverá atingir os 66% em 2050, representando mais 2,5 mil milhões de pessoas nas cidades, 90% dos quais na Ásia e em África. Ainda de acordo com a organização, o maior crescimento registar-se-á em países como a Índia, a China e a Nigéria que, no total, serão responsáveis por um aumento de 37% da população urbana até meados deste século. Em 2050, as expectativas das Nações Unidas apontam para mais 404 milhões de habitantes na Índia, 292 na China e 212 na Nigéria.

O êxodo do mundo rural, acentuado nos últimos anos, motiva uma reflexão que os números exacerbam — de 740 milhões, em 1950, as zonas urbanas passaram a contar, em 2014, com 3,9 mil milhões de pessoas, 53% dos quais no continente asiático, contra 14% na Europa e 13% na América Latina e Caraíbas. Segundo as Nações Unidas, a população mundial urbana deverá ultrapassar os seis mil milhões em 2045, um incremento que terá inegável impacto em regiões em desenvolvimento, como em África. Em consequência, algumas cidades terão sérias dificuldades em corresponder a este tremendo desafio que afecta áreas como habitação, infra-estruturas, transportes, energia e emprego, bem como educação e saúde.

O relatório das Nações Unidas revela ainda que, em 1950, não existiam mais do que 10 megacidades com 10 milhões ou mais de habitantes, abrigando, em conjunto, 153 milhões de pessoas — pouco menos de 7% da população global urbana. Em 2014, contabilizavam-se 28 megacidades, contando com 453 milhões de habitantes que representam já 12% da população do planeta. Dessas quase três dezenas de urbes, 16 encontram-se na Ásia, quatro na América Latina, três na Europa e em África e duas na América do Norte. Dentro de 15 anos, as Nações Unidas estimam que o número de grandes cidades ultrapasse as 40.

Tóquio continua a ser a cidade mais populosa, com 38 milhões, seguida de Nova Deli com 25, Xangai com 23, Cidade do México, Bombaim e São Paulo com cerca de 21 milhões, Osaka com pouco mais de 20, Pequim com pouco menos de 20 e, finalmente, para completar a lista das 10 cidades com mais habitantes, a área de Nova Iorque-Newark e o Cairo, com 18,5 milhões.

A despeito de as estatísticas apontarem para um declínio da população de Tóquio, a cidade japonesa permanecerá como líder deste ranking em 2030, com 37 milhões, superando Nova Deli, que deverá contar já com 36 milhões.

Para celebrar o Dia Mundial da População, a Fugas não viaja por todas as cidades que integram o top 10 mas faz algumas incursões por outras que, por este ou por aquele motivo, se destacam, como Istambul, ponte entre o Oriente e o Ocidente, ou Paris, a urbe que eternamente desperta paixões. Em contraste com esta volta ao mundo de milhões, uma visita à Aldeia da Pena, em São Pedro do Sul, com os seus seis habitantes que vivem num silêncio apenas interrompido pelo silvo de um pássaro ou o balido de uma ovelha. 

Tóquio

Cai a noite, brilha o néon em Tóquio e uma estranha metamorfose apodera-se da cidade imensa.

- Quando passeio por Tóquio, sinto que acabo de chegar a um outro planeta, um sentimento que se exacerba quando a noite chega – muita iluminação, muito barulho, muito movimento, admite Mika Ono.

Os estabelecimentos comerciais, em plena actividade, rugem de vida, as persianas dos escritórios são fechadas e as bocas do metro engolem homens, mulheres e crianças. Alguns homens de negócios acabaram as suas reuniões tardias, vivem a uma centena de quilómetros de Tóquio e às oito da manhã já estão de novo a trabalhar — metem as suas gravatas no bolso e dormem num hotel-cápsula.

- Gosto de apreciar o contraste entre jovens divertidos, com tantas opções, seja para compras ou lazer, e homens de fato e gravata, cansados e transportando o peso de uma vida escravizada. Muitos deles acabaram de se formar, sem direito a férias no primeiro ano e permanecem até altas horas da noite fechados em escritórios. De um lado a liberdade, do outro, o oposto, ressalva ainda a tradutora.

Na capital nipónica pouco ou nada resta de antigo — durante o século XX foi destruída duas vezes, primeiro pelo grande terramoto de 1923 e, anos mais tarde, pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial. A melhor maneira de viajar em Tóquio é de metro, complicado no início, rápido e eficaz quando se percebe a sua dinâmica de funcionamento, de preferência acompanhado de um mapa com caracteres latinos.

- O transporte é diversificado e eficiente, cada estação de metro ou de comboio tem lugares para todos os gostos. Nem Londres, nem Paris, nem Nova Iorque — nenhuma delas vive num ritmo tão frenético como Tóquio. E, ao mesmo tempo, no meio de tanta modernização, existem lugares históricos, templos budistas ou sintoístas, tão impregnados de silêncio e capazes de transmitir uma energia positiva. Tóquio, uma cidade muito segura, também vive de contrastes, entre o modernismo e o tradicional, e a convivência é perfeita, observa a japonesa. 

A despeito das destruições no século passado, ainda se encontram interessantes vestígios da deslumbrante Edo, a antiga povoação sobre a qual se ergue Tóquio. O bairro mais antigo e onde ainda se respira o espírito de tempos de antanho é o Asakusa, com as suas casas térreas, o templo Senso-ji, o mais antigo da cidade e onde acorrem os japoneses em dias festivos em busca de bons auspícios, e o de Meiji-Jingu, palco de casamentos e onde se reúnem três milhões de pessoas para rezar no dia de Ano Novo.

- Gosto de Shinjuku e da sua faceta caótica. É apenas um bairro, um bairro que não dorme, como uma cidade dentro da cidade.

Em Tóquio, ao contrário do que acontece em tantas cidades, não há um centro — a urbe é tão grande que cada bairro tem um. No bairro de Shinjuku, em cuja estação de metro se pode observar, nas horas de ponta, os funcionários a empurrarem energicamente os utentes para dentro das carruagens, de tudo se vê, jovens vítimas da moda, rostos alegres, tristes e fechados, um frémito que nunca se esgota.

Nova Deli

Preparo-me para deixar Gujarat e empreender longa viagem até Nova Deli. Pratish Zala convida-me para mais um chá.

- Nunca estive em Nova Deli e não está nos meus planos visitá-la. Basta-me o conhecimento que tenho através dos meios de comunicação social. Muita gente, muito barulho, tanta confusão.

Nova Deli, cidade imemorial, imperial e misteriosa, onde o bulício, o colorido e os aromas convivem como irmãos inseparáveis, ama-se ou odeia-se à primeira vista.

- A cidade é história, politica, muita gente, calor no Verão e frio no Inverno, resume Harpinderjit Bains.

Nova Deli é única no mundo, abraça todas as religiões e castas da Índia, é uma cidade de fascinantes bazares, tradições e lendas, uma espécie de salão de múltiplos espelhos, com todos os seus problemas, entre eles o clima mais extremo do subcontinente indiano. A vasta península em que se encontra a cidade tanto a transforma num forno como a seguir num frigorífico, sem um ponto intermédio.

- A água — ou a falta dela — é um problema sério, as pessoas armazenam-na em baldes porque podem ficar durante largos períodos do dia sem uma gota. A água é barrenta, cola-se à pele quando se toma banho, conta Harpinderjit Bains.

Nova Deli foi, até à partição do subcontinente em 1947, uma cidade maioritariamente muçulmana. Muitos deles partiram então para o recém-criado Paquistão, hindus e sikhs chegaram — naquele que foi o maior intercâmbio de população produzido na história moderna. De 900 mil habitantes, Nova Deli, como um polvo estendendo os seus tentáculos, passou a acolher milhões e milhões, um número que nunca mais parou de crescer até aos nossos dias.

- Muitas famílias, com oito, nove ou mesmo mais pessoas, vivem em quartos minúsculos, um espaço que serve igualmente de cozinha e de casa de banho, assinala ainda Harpinderjit Bains.

É assim Nova Deli, a cidade das sete cidades, das diferentes cidadelas e fortes que se levantaram ao longo de quase mil anos de história, a Lal Kot/Qila Rai Pithora, Siri, Tughlaqabad, Jahanpanah, Ferozabad, Purana Qila e Shahjanabad. E uma oitava, a Nova Deli, construída por britânicos, quando a capital do Império se mudou de Calcutá para esta metrópole.

Prefiro a parte antiga, pela sua arquitectura, pelos palácios e havelis, pelo prazer de cruzar a Porta Turkman e de me embrenhar na cidade medieval, deixando-me transportar no tempo antes de passar pelo forte vermelho, o Lal Qela, com as suas muralhas que se estendem ao longo de dois quilómetros e que forma um octógono irregular, a maravilha da arquitectura mogol que é a Jamia Masjid, a maior mesquita da Índia, e os mercados de Chandni Chowk, de Kari Baoli, de Galodia e Sadar. A Nova Deli mais autêntica.

Xangai

Uma torre com 632 metros, uma ponte com 36 metros de comprimento, Xangai, a verdadeira montra da pujança chinesa, altera a sua paisagem urbana a cada dia que passa. Na verdade, após a Exposição Universal, em 2010, nada em Xangai parece ter parado de se metamorfosear. O distrito de Pudong, cuja superfície se prepara para duplicar, passando de 520 km2 para 1210 km2 (doze vezes maior do que Paris), contempla um jardim ao nível do Central Park, em Nova Iorque, uma Ópera e um centro financeiro — é uma verdadeira fusão entre o pulmão verde e um cenário cultural. Com dez novas linhas de metro de há três anos a esta parte, cinco delas passam por Pudong, uma rede que se estende por 510 quilómetros e está entre as três mais longas do mundo.

Numa cidade onde os preços dos imóveis triplicaram no espaço de dez anos — e a decisão de desenvolver Xangai remonta apenas a 1992 —, os vendedores de apartamentos quase não têm tempo para dormir. Na última década do século passado, Pudong era um paraíso aos domingos, com os seus trilhos percorridos pelos locais, a pé ou de bicicleta, antes de entrarem numa cabana de pescadores para pedirem marisco grelhado.

Quando o sol se prepara para mergulhar, caminho para o Bund, respirando a brisa que sobe do rio Huangpu e observando os milhares que vão preenchendo as esplanadas. Quando foi construído pelos ingleses, no limite da sua concessão, durante a primeira idade de ouro da “Estrela da Ásia”, o Bund estava interdito a chineses e a cães mas hoje é território privilegiado de grandes hotéis internacionais, alguns deles com jacuzzi no último andar e uma panorâmica soberba sobre todo o conjunto.

Ao contrário de Pequim, Xangai preservou o seu coração histórico, mantendo e recuperando os mais belos edifícios em pedra que embelezam o Bund, alguns deles sedes de bancos chineses ou convertidos em hotéis e restaurantes luxuosos.

Percorro a rua Nankin, quase toda ela pedonal e ligação entre o Bund e a Praça do Povo, um mar de gente, vagas constantes, um vaivém que não termina. A artéria mais comercial acolhia, nos anos 1930, as melhores casas de chá e livrarias de Xangai mas hoje pouco mais tem para oferecer do que lojas de roupas e de recordações, símbolo de uma mudança que não conhece limites. A Praça do Povo revela-se particularmente interessante aos domingos, quando o dia acorda, diria que impulsionado pelo som dos sinos — Xangai é a cidade, em todo o país, com o maior número (estão contabilizadas mais de uma centena) de igrejas, especialmente católicas, e o número de praticantes não pára de crescer, apesar de se manter num impasse a normalização das relações diplomáticas entre a China e o Vaticano, interrompidas em 1951.

São Paulo

- Quando eu era pequena, São Paulo era um bom lugar. Talvez porque a cidade cabia no quintal da minha infância, nas brincadeiras com os amigos da rua. Tudo o que eu conhecia estava limitado ao bairro e, como sempre vivi afastada do centro, o clima revelava-se menos áspero. Recordo com nostalgia a feira perto de casa, o cheiro das frutas, a gritaria pelo melhor preço, a tenda do pastel e do caldo de cana e a barraca de brinquedos baratos, evoca Sâmia Gabriela, brasileira com origens portuguesas.

São Paulo, a cidade mais cosmopolita e dinâmica do país, nasceu no século XVI em torno de uma missão jesuíta e o seu crescimento, iniciado no século XIX, atingiu o seu apogeu após a II Guerra Mundial, quando o país pôs em marcha o processo de industrialização. Na mesma altura, o centro económico e político mudou-se do Rio de Janeiro para esta grande urbe, em cuja área metropolitana foi erguido um parque industrial que contempla, entre outras, fábricas de carros, material eléctrico e químico, atraindo trabalhadores de todos os cantos do país e do estrangeiro, com destaque para uma significativa colónia oriental proveniente da China, do Japão e da Coreia do Sul, com residência fixa no distrito de Liberdade (antes designado Bairro Japonês).

- Cresci, comecei a trabalhar em diferentes zonas e conheci então de perto a brutalidade que uma cidade grande e populosa também é capaz de oferecer, revela ainda a jovem jornalista.

Cidade de betão, asfixiada por milhões e a maior metrópole do hemisfério sul, São Paulo não tinha mais do que 580 mil habitantes na segunda década do século passado.

- São Paulo é contraditória: não importa o quanto as ruas estejam movimentadas, muito provavelmente irá sentir-se só. Uma das experiências mais dramáticas que vivi nas ruas de São Paulo foi — e ainda é — a violência policial. O que acontecia no escuro das ruas dos bairros pobres chegou às ruas do centro, descaradamente e com maior incidência desde Junho de 2013 – manifestar-se publicamente contra os governos virou crime, garante Sâmia Gabriela.

A Avenida Paulista, a sudoeste do centro, é uma artéria de arranha-céus e o distrito contíguo de Cerqueira César contém a maior concentração de bons restaurantes, cafés e discotecas — é a esta zona específica que todos se referem quando apelidam São Paulo de “Nova Iorque dos Trópicos”.

- Em São Paulo, cidade de enorme contraste social e uma das mais segregacionistas do país, condomínios de mansões beiram grandes favelas; o centro, com edifícios e os seus muros cinzas, frio e rasgado por viadutos e escadarias que acolhem milhares de moradores de rua, com os seus bares e espaços de cultura e lazer; na periferia, as trevas, o abandono, o medo da viatura policial.

A explosão demográfica atira as favelas para cada vez mais longe mas próximo da Cerqueira César encontram-se os elitistas Jardins Paulista, com a sua população classe média/alta. No centro, o triângulo formado pela Praça da Sé, o metro da Estação da Luz e a Praça da República abrigam a parte antiga de São Paulo: o Mercado Municipal, a Catedral Metropolitana, o Pátio do Colégio, onde a cidade foi fundada em 1554 e, não muito distantes, o Teatro Municipal e os edifícios Itália e Copan, este último famoso pela sua curva (um projecto de Oscar Niemeyer).

- Esta cidade inspira-me decepção e esperança; o meu peito aperta ao pensar no quanto as minhas filhas terão de ser fortes para encarar este mundão contraditório. Tão cheio de vida e morte. De luz e sombra, conclui Sâmia Gabriela.

Cidade do México

Situada a 2400 metros de altitude e assente sobre uma lagoa, a Cidade do México é uma urbe vibrante, mestiça, moderna e cosmopolita, que magnetiza com os seus contrastes sociais, a sua vida cultural e os seus costumes.

- É verdade, a Cidade do México não é propriamente um passeio no parque mas também não é o que todo o mundo pensa, uma cidade cheia de violência e crime. O verdadeiro horror é o governo e os políticos que preferem manter a população na ignorância em vez de lhe proporcionarem educação, forçando-a depois a responder às mais altas exigências, ressalva Victoria Orvañanos.

No bairro central de La Merced, os ladrões acorrem às igrejas e rezam, antes de iniciarem as suas incursões diárias, a San Judas, para que os protejam.  

- Os cidadãos foram, ao longo dos tempos, vítimas do crime e de líderes do crime. Não é de agora, já assim era desde a conquista de Tenochtitlán, já que Hernán Cortés deu o pobre exemplo de classicismo e corrupção contra os menos afortunados. Desde Cortez até Peña Nieto, a cidade e todo o país sofreram com assassinatos, vandalismo, extorsão, pobreza e fome porque os nossos líderes nunca se preocuparam com a beleza da nação mas apenas com o poder e o seu próprio enriquecimento, enfatiza a jovem actriz mexicana.

Na cidade que reúne gente de todo o país, indígenas e mestiços, a luta para melhorar o nível de vida é constante, mas muitos desses homens e mulheres que chegaram carregados de esperança acabam por ingressar nas fileiras do exército de mendigos que se espalham por lugares estratégicos.

- Os inocentes estão na prisão e os corruptos em liberdade, é esta a realidade. Sofremos com a pandemia de presidentes e governantes incapazes e que se tornaram serial-killers formados em Harvard. O que ouves ou vês nas notícias sobre os nossos presidentes e traficantes é verdade mas há outras notícias que te escapam – e Victoria Orvañanos faz uma pausa.

No centro histórico, a comida está ligada à arte, a Casa de los Azulejos, decorada com murais de José Clemente Orozco, foi convertida em restaurante e abrigou, no início do século passado, no seu balcão, os guerrilheiros de Emiliano Zapata, com os seus cheiros a pólvora, a guerra e a sangue que aterrorizavam as boas famílias que ali tomavam o pequeno-almoço.

- A Cidade do México é, culturalmente, com os seus 250 museus, a cidade mais rica do mundo e a terceira na produção de peças de teatro, apenas superada por Nova Iorque e Londres. Foi cenário de filmes como James Bond, Chamas da Vingança e Romeu e Julieta, entre outros. Aqui vivem milhares de europeus que chegam em busca de arte e de um emprego decente. E sabes que mais? Encontram o que procuram e nunca mais querem partir.

Victoria Orvañanos nasceu e sempre viveu na Cidade do México, a antiga Gran Tenochtitlán, de onde, num dia de boa visibilidade, se podem perscrutar os vulcões Popocatépetl e Iztaccíhuatl — este último popularizado como a Mulher Adormecida —, nomes nascidos de lendas de príncipes apaixonados que desafiaram os seus pais inimigos.

- Foi a primeira cidade visitada pelo Papa João Paulo II — que por mais do que uma vez admitiu não ter conhecido um povo com tanta fé como o mexicano — e em qualquer lugar se encontram catedrais barrocas, cada uma com a sua história. Se ve, se siente, está presente. Haverá razões para eu ter medo de viver numa das maiores cidades do mundo? Só quando Peña Nieto se prepara para fazer mais um discurso e o mundo pensa que somos assim tão estúpidos.

Cairo

- Diz um ditado que a velhice não é uma doença — é a força e a luta pela sobrevivência, a vitória sobre todas as vicissitudes e desapontamentos, provações e enfermidades. Assim é o Cairo, define Bahaa Youssef, jornalista.

Capital soberana do Egipto desde 1952, o Cairo é também — e de forma indiscutível — a capital do mundo árabe e a urbe mais populosa do continente africano. Pergunte-se a um dos mais de 18 milhões de cairotas qual é a melhor cidade do mundo e verá que a resposta, depois de fitarem o céu, é comum a quase todos eles: Umm-i-dunia, taaban — a Mãe do Mundo, claro.

- Há beleza em todo o lado: nos velhos edifícios que resistiram a todas as perturbações, como terramotos, e que ainda estão de pé; nas suas pontes que parecem estender-se infinitamente e nas suas ruas baptizadas com nomes de famosos ou de revoluções históricas.

Não haverá experiência no mundo que potencie mais a adrenalina: estradas congestionadas e caóticas elevam-se sobre as suas artérias, centenas de milhares, como um formigueiro enlouquecido, procuram abrir caminho por entre um trânsito que se eterniza e inferniza; vivendo ou sobrevivendo, guiam-se através das fragrâncias, dos vendedores de rua que se colocam estrategicamente nas esquinas das ruas, do cheiro a tabaco que se insinua nos cafés e nas esplanadas e sobe nos céus, do aroma a Karkadeh. - A maior parte das pessoas identifica o Cairo pelas pirâmides de Giza. É meia verdade, mas há muito mais para visitar, como o Cairo copta, um subúrbio na zona sul que é a parte mais antiga da cidade e onde foi erguida a primeira igreja cristã em África — a Igreja Copta do Egipto, recorda Bahaa Youssef.

O Egipto é um país maioritariamente muçulmano e os cristãos não excedem os 5%. Muitos dos turistas ignoram o bairro copta e, mais ainda, o papel importante desempenhado pelo Egipto no Cristianismo. “… Levanta-te, pega na criança e na sua mãe e foge para o Egipto (…) Porque Herodes vai procurar a criança para a matar (…) Do Egipto chamei o meu filho.” Assim reza o Evangelho de São Mateus (2, 13-15), relatando o aparecimento em sonhos do Anjo do Senhor a José. Segundo a tradição, a Sagrada Família viveu, durante a sua fuga, na igreja de São Sérgio — e o bairro, onde em tempos existiram mais de 20 lugares de culto em menos de um quilómetro quadrado, abriga outras, como a igreja suspensa (el-Muallaqa), a de Santa Bárbara, a igreja ortodoxa grega de São Jorge (Abu Sarga) e aquela que menos indiferente deixa o turista, a da Virgem Maria de el-Zeitoun. 

- E o Cairo Islâmico, conhecido pelo seu traçado de vielas labirínticas e respigos de uma arquitectura imponente. As suas ruas são barulhentas, movimentadas, cheias de dejectos de animais, mas se encontrares algum tempo para te adaptar, seguramente que não te vais arrepender, percorrendo algumas das suas atracções, como Khan el-Khalili, o mercado vibrante e caótico da cidade, cheio de vendedores de joalharia egípcia, de recordações e especiarias, entre muita outra parafernália, aconselha Bahaa Youssef.

Em Khan el-Khalili, o bairro imortalizado no livro homónimo por Naguib Mahfouz, Prémio Nobel da Literatura em 1988, os aromas são distintos do resto da cidade — a poluição dá lugar aos condimentos, aos remédios medicinais e aos afrodisíacos. Situado próximo da mesquita do sultão Al Ashraf Barsbey, responsável por ter convertido o comércio de especiarias num monopólio do Estado para financiar a tomada de Chipre em 1426, o Khan el-Khalili é um mundo onde se aventuram menos turistas do que noutros lugares do Cairo e muitos deles não passam as fronteiras do Fishawi, o café que está aberto dia e noite há mais de 200 anos e onde o grande escritor egípcio gostava de se sentar a beber o seu chá enquanto buscava inspiração para as suas obras que tão bem retratam esta cidade rasgada pelo Nilo.

Istambul

A antiga Bizâncio e Constantinopla, ponte entre dois continentes e durante mais de 500 anos capital do império otomano, é uma fusão entre Oriente e Ocidente, tão agradavelmente caótica, tão singular e tão inspiradora. Istambul, com 25 séculos de história e apenas quatro ou cinco postais para milhões de turistas que a visitam todos os anos, é uma cidade de segredos, que em qualquer esquina esconde algo de muito antigo ou algo novo e moderno, uma cidade que é um exemplo da arte de viver, orgulhosa da sabedoria dos mais velhos, sempre com tempo para um diálogo em volta de uma chávena de chá.

Se ignorássemos a área metropolitana das cidades referenciadas atrás, Istambul, com mais de 14 milhões de habitantes, estaria entre as primeiras cinco do mundo em termos de população. Istambul, eternamente desperta, tem tudo para oferecer e pouco pede em troca: ruínas romanas e gregas, muralhas bizantinas, mosaicos com imperadores e santos, igrejas grandiosas e das mais belas mesquitas do mundo, palácios de sultões e jardins com vistas magnificentes.

Aprecio a minha errância por Istiklal, uma atmosfera que parece saída de outra cidade que não Istambul, com a música enchendo tudo à sua volta, vinda de todas as portas, de cafés, de lojas de roupa, de livrarias, numa diversidade que abarca rock, clássica, tambores otomanos, a ney, a flauta sufi, a salsa e essa espécie de blues islâmico; quando a noite tomba, há também jazz e reggae, acid house ou à turca, techno, em bares que se multiplicam e convertem Istiklal no núcleo principal da vida nocturna da cidade.

O escritor Orhan Pamuk define Istambul como a cidade que desafia qualquer classificação, que muda e se transforma a um ritmo vertiginoso, na fronteira do excesso, mas sem nunca perder a sua alma, a sua essência, o seu keyif, a arte de viver.

Istiklal não detém o exclusivo de uma vida com vocação hedonista e o viajante, desde que se aventure e não limite a sua existência apenas aos lugares turísticos, não tardará a encontrar semelhanças em ruas como Nisantasi, Ortakoy e Bairkoy ou, já no lado asiático, em Kadikoy, ao longo da Avenida Bagdad, grande rival de Istiklal em glamour, embora lhe acrescente um pouco mais de luxo. 

Paris

A cidade do mundo, a cidade das luzes, romântica, de todas as paixões — sobram os adjectivos para descrever uma das mais encantadoras urbes do mundo. Tudo em grande escala, La Défense, erguida nos anos 1960, o maior centro financeiro da Europa, com 2500 empresas e 150 mil assalariados que se dividem por mais de 70 torres que sobem nos céus; uma população que ronda os dez milhões e cresce para todos os lados, com dinâmica, com ambição, com promessas de um metro que se estende ao longo de 200 quilómetros, um porto gigantesco em Achères, uma espécie de Silicon Valley em Saclay — Paris continua a viver a sua metamorfose.

É verdade que, segundo inquéritos recentes, um em cada cinco parisienses pretende deixar a capital para viver na província — e essa percentagem pode aumentar se a sondagem for efectuada no Verão, quando Paris recebe milhões e milhões de turistas. Mas quantas cidades, como Paris, nos podem oferecer a Europa? Provavelmente nem uma. Paris é única, uma festa, como a sentiu Hemingway, uma cidade em permanente transformação, que sonha em acabar com as fronteiras entre o espaço comercial e habitacional, em criar espaços verdes, tornando-a cada vez mais atractiva aos olhos dos visitantes e da sua população residente.

A cada instante seduz, atrai, magnetiza, envolve o viandante com paixão; são tantos os lugares que fascinam, o que para muitos se pode ver numa semana para outros não se esgota num mês. Eu gosto de deambular pelo Quartier Latin, pela Rue de Mouffetard, em dia de mercado, de descer até aos Jardins do Luxemburgo, de regressar, admirando a mesquita, de me deter na Place de la Contrescarpe, em frente ao Panteão, de esquecer o tempo na sua praça, de sentir o pulsar da Sorbonne e a quietude de Saint-Séverin.

Paris festeja-se a cada momento, a cada passo, umas vezes por entre milhões, outras por entre dezenas. Paris, como todas as outras que estão para trás, celebrando o Dia Mundial da População, nunca será totalmente descoberta e teimará em manter ocultos certos recantos invisíveis aos olhos do ser humano apressado e globalizado que olha um guia sem ver a cidade. Porque nenhuma palavra se compara a um sentimento. Ao sentimento de estar.

“Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. E contudo entre eles há uma relação.” 
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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