Fugas - Viagens

São Miguel das nuvens ao mar

Por Samuel Silva

Não é habitual ver-se a principal ilha açoriana de cima. Quem chega de fora deslumbra-se, quem lá vive desde sempre ainda mais. Do ar, da terra ou do mar, São Miguel será sempre uma dádiva da natureza.

“Olha além aquela igreja… A minha casa é logo ao lado.” Cláudia Costa aponta com o braço direito na direcção da Ribeira Grande. Não disfarça o entusiasmo da estreia num voo de balão de ar quente. Durante a subida, tornam-se cada vez mais nítidos os contornos da ilha açoriana de São Miguel: a costa norte contrastada pela luz do sol poente; as pastagens e campos de cultivo que se estendem até às montanhas; e, para lá dos pontos mais altos do relevo, o mar que começa a descobrir-se novamente, no extremo sul da ilha.

O balão sobe até aos 300 metros de altitude. Dali, a vista sobre São Miguel impressiona. Mas, por uns minutos, Cláudia Costa não se interessa pela paisagem deslumbrante da ilha. Só quer apreciar o branco do casario da Ribeira Grande e ver, desde aquele lugar privilegiado, as ruas que percorre desde criança: “Olha eles tão pequeninos lá em baixo…”. Segura com cuidado o telemóvel, apontando-o na direcção da sua casa. Dispara. “A fotografia é para ir logo para o Facebook.”

Cláudia foi uma das dezenas de micaeleneses que tiveram um contacto inaugural com o balonismo, no início de Julho, durante o I Festival de Balões de Ar Quente da Ribeira Grande. “É lindo, lindo, lindo”, repete, emocionada. Durante quatro dias, 15 equipas de balonistas, de seis países europeus, subiram aos céus açorianos, pintando-os com o colorido dos balões de ar quente, e com eles foram muitos habitantes locais. Milhares de curiosos, atraídos pelo aparato do lançamento dos balões, acompanharam também os voos a partir de terra, divididos entre o receio de voar num aparelho aparentemente frágil e o encanto de conhecer desde o céu a sua ilha.

Esta foi a primeira vez que balões de ar quente voaram nos Açores. Uma oportunidade única para pessoas como Cláudia Costa e que serviu também para testar a possibilidade de serem introduzidos voos comerciais de balão na ilha de São Miguel, que possam estar disponíveis para os turistas ao longo do ano. Mesmo que o festival tenha sido classificado como um “sucesso” pela organização, neste momento ainda não há uma decisão fechada sobre a matéria. Até porque os Açores colocam alguns problemas acrescidos à prática do balonismo. 

O facto de São Miguel ser uma ilha e a proximidade do mar, o relevo acidentado e os terrenos em minifúndio, bem como a instabilidade atmosférica, são limitações que fazem destes “voos iminentemente técnicos”, explica Aníbal Soares, que dirige o clube de balonismo Alentejo sem Fronteiras. Há 18 anos que organiza um festival de balões de ar quente no Sul do país e foi por causa dessa experiência que foi convidado para ser director técnico do festival da Ribeira Grande.

“Aqui, o piloto tem que estar sempre em observação constante para antecipar alguma alteração do vento e poder avaliar se, na direcção em que está a voar, poderá continuar em segurança ou se será melhor aterrar”, explica o mais experiente dos balonistas portugueses – foi o primeiro no país a ter licença, já lá vão 25 anos.

Apesar dos obstáculos, voar de balão sobre os Açores é uma experiência “muito emocionante”, diz Soares: “Pudemos fazer um voo como raramente se faz. Só é possível numa ilha irmos até à costa, estar junto ao mar, subir e depois vir para terra outra vez.” Sempre com os olhos postos na “incrível paisagem que a ilha tem”.

O que mais espanta ao voar de balão na ilha de São Miguel é mesmo o estímulo visual de toda a experiência. A beleza da viagem começa ainda antes da largada, com todo o aparato de balões coloridos, cestos e queimadores a emitirem potentes nuvens de calor, sobre um imenso campo de aveia. A praia de Santa Bárbara está a escassos metros. O mar está, portanto, bem próximo, parecendo mais e mais imenso à medida que o balão sobe no ar. Lá de cima, o azul do oceano e do céu contrasta com o verde dos terrenos. Ou, melhor dizendo, os verdes, que são vários os tons que, a 300 metros de altitude, se percebem. Riscados sobre o chão nos campos de cultivo e pastagens, entrecortados por muros de basalto, e também diante dos olhos, nas montanhas.

Uma das mais impressionantes elevações de São Miguel é o vulcão adormecido da Água de Pau, na boca do qual está a lagoa do Fogo. Como os voos de balão de ar quente acontecem às primeiras horas da manhã ou ao final da tarde (que é quando a temperatura é menos elevada), sobram muitas horas ao longo do dia para conhecer as principais atracções do concelho da Ribeira Grande. O primeiro lugar de visita é esta lagoa, que é um dos locais obrigatórios dos Açores e está no topo da lista de prioridades de qualquer turista que chegue a São Miguel.

A subida faz-se por uma típica via de montanha, com curvas apertadas e pouca visibilidade. No jogo de escondidas que a estrada proporciona, mantém-se o deslumbramento com a paisagem açoriana, de cada vez que o espaço entre as encostas permite ver os campos ou o mar. Esse espanto é, porém, superado uma vez atingido o miradouro da serra da Barrosa, o local de onde se podem contemplar as águas da lagoa do Fogo. Há um manto verde-escuro de espécies endémicas açorianas que cobre toda a área envolvente e, lá no fundo, a caldeira, muito azul e profunda. 

À distância de uma caminhada de 30 minutos, é possível atingir a praia selvagem nas margens da lagoa. O caminho seguido é, porém, o contrário: subir um pouco mais, até ao ponto alto da montanha, o Pico da Barrosa. A mais de 900 metros sobre o nível do mar, consegue-se avistar o ponto mais estreito da ilha de São Miguel. São apenas sete quilómetros em linha recta, que separam a vila piscatória de Rabo de Peixe, na orla norte, e a cidade de Lagoa, a sul. 

De regresso ao vale, a meia encosta do vulcão do Fogo, há uma outra paragem inevitável, na Caldeira Velha. Este parque (com acesso pago, com o preço base de 2 euros) tem uma vegetação exótica e um Centro de Interpretação Ambiental dedicado à origem vulcânica dos Açores e o aproveitamento termal feito da energia libertado pelas entranhas da terra. A principal atracção deste lugar são, precisamente, as suas nascentes de águas termais e as duas piscinas naturais (uma delas alimentada por uma cascata) onde é possível tomar banhos quentes. Os visitantes poderão optar entre a piscina de 25 graus e outra onde as águas podem atingir os 38. 

Não estranhe a cor da água, muito castanha, o que se deve ao ferro que abunda na sua composição, mas desaconselha-se que na Caldeira Velha use o seu melhor fato de banho: as características da água podem manchar os tecidos e o calor é má companhia para os elásticos e fibras sintéticas. 

Enquanto assistia à larga dos balões de ar quente junto à praia de Santa Bárbara, Olga, uma habitante local demasiado assutada para voar, já tinha advertido: “Há muitos locais aqui na Ribeira Grande que vale a pena conhecer.” Começa-se a perceber que sim. Entre as sugestões de visitas que tinha feito, havia uma que indicava com especial veemência: as caldeiras. Confirma-se pouco depois que visitar esse local serve como uma espécie de complemento à incursão pela Caldeira Velha.

As Caldeiras da Ribeira Grande são outro exemplo da forma como os micaelenses aproveitaram as águas que brotavam da terra a altas temperaturas ao longo dos tempos. Esta foi uma pequena povoação termal, onde ainda se preservam alguns edifícios com o encanto romântico dos finais do século XIX e inícios do século XX – ainda que hoje estejam abandonados e com sinais evidentes de degradação.

O grande tanque com águas termais no centro da localidade tem um ar pitoresco. À sua frente, encontra-se o restaurante Caldeiras, onde o prato de eleição é o célebre cozido açoriano. Uns metros adiante, há quatro caldeiras onde o prato regional é feito sem o burburinho das Furnas e sem necessidade de pagar entrada, o que vigora há poucos meses nesse local icónico de São Miguel. E isto faz com que as Caldeiras da Ribeira Grande possam ser uma alternativa para que os visitantes da ilha provem a especialidade e encontrem um pedaço menos turístico dos Açores.

A cidade da Ribeira Grande, sede de concelho, localizada na zona mais baixa da costa norte de São Miguel, pode ser outro exemplo de um local da ilha ainda por explorar. Talvez a nova vaga de turistas que as companhias de baixo custo trouxeram à maior ilha açoriana venham tornar mais conhecidos alguns dos seus recantos, como o jardim do paraíso, em volta da ribeira que dá nome à cidade, a ponte dos oito arcos (um dos ex-líbris da cidade, que até tem lugar no seu brasão, construída no século XIX) ou as belas obras barrocas que são a igreja Matriz e a igreja do Senhor dos Passos. 

José Carlos Oliveira, que aqui nasceu, espera que sim. Nasceu no concelho e conhece-lhe todos os recantos. Antigo militar, bombeiro e jogador de futebol amador – irradiado dos campos açorianos por ter “virado um árbitro ao contrário”, segundo conta – é um daqueles guias improváveis que faz uma viagem ter outro colorido. Pelas histórias que tem para contar, mas também pelos locais inusitados que tem para mostrar, enquanto conduz a carrinha da Casa do Povo da Ribeira Grande por ruas estreitas onde alguns condutores não se atreveriam sequer a fazer passar um automóvel utilitário. 

Depois de vistos desde o céu em balões de ar quente, os recortes da costa têm uma beleza diferente quando explorados de perto. Da ponta da Ajuda, a leste, as Calhetas, no outro extremo da Ribeira Grande, até à vila de Capelas, já no concelho da Ponta Delgada, José Carlos tem sempre um cantinho especial para mostrar ao longo da orla norte da ilha. Das piscinas naturais em São Vicente Ferreira, ao miradouro do Navio – onde há mesmo um barco de pesca soerguido em direcção ao mar, de onde quase só se vê oceano -; às rochas com formatos curiosos implantadas junto à costa como esculturas. Há uma “bota do gigante”, em Fenais da Luz, e uma grande pedra “que parece mesmo um elefante”, prometia José Carlos Oliveira ainda antes de o confirmarmos ao primeiro avistamento.

Depois de um percurso por entre estradas apertadas, rodeadas por casas baixas, cruzamento de campos de cultivo e pastagens cheias de vacas – um cliché açoriano –, volta-se a encontrar o mar. O porto de Santa Iria é uma pequena reentrância na costa e o mar parece mais claro do que nunca e não é já azul, mas esverdeado. A escarpa íngreme que o protege é monumental, como se todo o peso da ilha se abatesse sobre este lugar. Quatro peixes miúdos dentro de um balde parece fraco pecúlio para uma manhã de pesca. “Havia de ter vindo mais cedo meia hora e ver o peixe que saiu daqui”, reage um dos pescadores que ali se reúnem, perto da hora de almoço. 

A conversa sobre a pescaria abriu o apetite, cujo saciar não acontece longe dali. A despedida de São Miguel faz-se num lugar já conhecido: a praia de Santa Bárbara, bem ao lado do local de onde tinha largado o voo de balão de ar quente. Esta é uma das maiores praias açorianas (o areal, de areia fina e escura, tem uma extensão de cerca de um quilómetro) e a abertura de um novo acesso, no mês passado, fez aumentar a capacidade de atracção de banhistas. 

A sua extensão e qualidade, bem como as boas infra- estruturas de apoio, fazem deste um dos melhores locais para fazer praia em São Miguel. As suas ondas atraem também os praticantes de surf e bodyboard. Para quem tiver uma relação menos amigável com a água, a paisagem, marcada pelo Morro de Santana, que fecha a baía de Santa Bárbara, é motivo suficiente para aproveitar o lugar. Talvez com um copo na mão.

A Fugas viajou a convite do I Festival Balões de Ar Quente Ribeira Grande - Feel the Sky

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