Aura Avram despede-se calorosamente de mim e, junto à porta, depois de fitar as nuvens que galopam no horizonte e plantar um olhar na árvore onde os pássaros chilreiam no meio de um adejar agitado, deseja-me boa viagem:
- Vais gostar de Cluj-Napoca. Visitei a cidade uma única vez, quando era bem mais jovem, na companhia dos meus pais. Outros tempos. Tenho muita vontade de voltar. Cluj-Napoca, um pouco como Timisoara, é uma cidade cultural, universitária, cheia de jovens, com muito para ver e com lugares fantásticos não muito distantes da zona urbana.
Baia Mares ainda não despertou mas Dani Babut, tal como prometera na véspera, quando me dera boleia desde uma aldeia remota da região de Maramures, chega à praça à hora combinada e manda-me entrar para o carro — a namorada estudou em Cluj-Napoca, frequenta agora uma universidade em Barcelona e necessita que ele trate de algumas questões burocráticas no liceu.
- Nessa altura, pelo menos todos tinham trabalho.
Dani Babut é demasiado novo para recordar esses tempos em que se vivia sob a mão de ferro de Nicolae Ceausescu e a frase não é mais do que um eco de pessoas mais velhas, familiares ou amigos. Talvez por isso, não tarda a mudar de tema quando, depois de uma paragem para tomarmos café, se senta de novo ao volante, aspirando com prazer o fumo do cigarro. Na Roménia, mais cedo ou mais tarde, percebe-se que o povo tem muito em comum com o português — gosta de se queixar, contorna sem grande dificuldade os problemas delicados e quase sempre com sentido de humor, não raras vezes servindo-se de uma anedota para caracterizar situações aparentemente complexas.
Dani Babut deixa-me na Piata Avram Iancu, estreita-me a mão e, com a outra, estende-me um papel com o seu contacto.
- Caso precises ou se um dia voltares à Roménia. Não te esqueças de passear pela zona mais frequentada pelos estudantes, sempre cheia de vida. Cluj-Napoca é uma cidade que, estando longe de ser uma das mais bonitas do país, não tem paralelo com nenhuma outra. Goste-se ou não dela, é uma cidade que tem tudo o que deve ter uma cidade. A mim só me falta a minha namorada, conclui, rindo com vontade.
Olho para um lado e para o outro da imponente praça e, sem mapa na mão, decido embrenhar-me por uma artéria pedonal, a B-dul Eroilor, a Avenida dos Heróis, à descoberta da cidade que este ano goza do estatuto de Capital Europeia da Juventude (Braga foi a eleita em 2012).
Num tempo muito mais distante, Cluj-Napoca, documentada pela primeira vez há quase dois mil anos pelo geógrafo grego Cláudio Ptolemeu, era a capital da Dácia Porolisensis e, mais tarde, já sob o reinado do Imperador Adriano, foi elevada a município com o pomposo nome de Municipium Aelium Hadrianum Napoca e, finalmente, um pouco mais à frente ainda, por volta do ano 180 d. C., a colónia romana, não se sabe, com rigor, se por ordem de Marco Aurélio ou do filho Cómodo, o último imperador da dinastia dos Antoninos.
No outro extremo da avenida, ladeada por casas de cores garridas, um vendedor vai colocando no chão pequenas figuras em barro que provocam curiosidade em alguns transeuntes; os cafés, alguns com esplanadas, começam a encher-se de jovens, de mulheres vestidas de forma elegante, bem penteadas e maquilhadas.
Continuo.
A Aurelia Napoca, como era denominada, abrigava instituições, um senado local, magistrados, uma assembleia do povo, nesse tempo — como hoje — nada faltava para ser equiparada, salvo as devidas dimensões, a qualquer outra cidade do Império Romano. Com a partida de Aureliano, em 271 d. C., Cluj-Napoca, invadida pelas tropas bárbaras, sofreu um forte declínio mas recuperou grande parte desse esplendor de antanho durante a Idade Média, uma prosperidade assente nos valores económicos, culturais e artísticos que, no seu conjunto, lhe garantiram a atribuição e consolidação do estatuto de cidade-tesouro.
No início do século XIV, Cluj-Napoca beneficiou de uma série de privilégios que lhe foram concedidos pelo rei Carlos de Anjou, entre eles o direito de ter a sua própria administração, o direito de julgar, comércio livre, de construir igrejas e cemitérios e, já nos primeiros anos do século seguinte, por decisão de Sigismundo de Luxemburgo, de estender as suas fortificações.
Forte candidata ao estatuto de Capital Europeia da Cultura em 2021, a cidade romena, segunda mais importante logo a seguir a Bucareste, encerra uma história rica que resulta da sua posição estratégica (nos dias de hoje é atravessada pela E 60, que liga a capital a Budapeste e a Viena) disputada por diferentes povos desde tempos imemoriais. Documentos sobre Cluj que remontam a 1173 fazem referência ao assentamento Clus, palavra latina que significa “rodeada de colinas” e, ao longo dos séculos, a toponímia observada foi sendo alterada mediante as invasões ou os ataques de que foi alvo: para os húngaros era a Kolozsvar, para os alemães a Klausenburg, esta última imposta pelos colonizadores saxões que se fixaram na cidade no tempo de Stephen V da Hungria, na sequência dos ataques tártaros que disseminaram a população autóctone.
Uma das sete cidades medievais dos saxões na Transilvânia (Siebenburgen), recebeu o primeiro baptismo em romeno como Clus (não raras vezes escrito Klus) e só em 1974 se impôs — Nicolae Ceausescu tratou de a impor — a actual designação, Cluj-Napoca, em Portugal mais familiarmente conhecida por Cluj devido ao mediatismo da equipa de futebol e da presença, não há tanto tempo como isso, de uma forte comunidade portuguesa no plantel.
Passado que não se apaga
À minha frente, sob algumas nuvens, levanta-se, na sua imponência e dominando a Piata Unirii, a catedral romana católica de São Miguel, uma construção iniciada no século XIV mas apenas concluída em 1487 — se bem que a torre neogótica que se ergue a 80 metros date de 1859. Considerada como um dos melhores exemplos da arquitectura gótica em todo o país, a catedral, restaurada em 1963, foi edificada em quatro diferentes etapas mas é o altar, com os seus 24 metros, o legado mais antigo de toda a estrutura, remontando a 1390. A nave tem um comprimento de 50 metros e as suas paredes, com 10 metros de espessura, testemunharam alguns eventos importantes da história de Cluj-Napoca, entre eles uma meia centena de assembleias parlamentares, o baptismo do rei Matei Corvin, a coroação do rei Ferdinand I e, em 1944, o sermão de Marton Aron, padre e bispo da Transilvânia, durante o qual condenou a perseguição aos judeus. As pinturas interiores quase desapareceram por completo quando a igreja pertenceu, durante o século XVI, aos Protestantes, mas recentes trabalhos de restauro revelaram alguns antigos frescos dos séculos XIV e XV — a capela Sleunig, sob a torre, exibe o Golgotha, o mais proeminente de todos e o mesmo espaço abriga um crucifixo, um trabalho artístico de Fadrusz Janos, escultor da estátua de Matei Corvin, inaugurada em 1902, mesmo ao lado da catedral.
Conquistada pelos húngaros nos séculos X e XI, Cluj-Napoca nunca foi palco, à excepção dos dias de hoje, de uma saudável convivência com os seus vizinhos magiares. Matei Corvin (1443-1490), o mais poderoso e erudito rei da Hungria, continua, tantos anos após a sua morte, a ser usado como arma de uns e outros. No lugar onde nasceu, na mais antiga casa laica de toda a cidade e actualmente ocupada pela Universidade de Arte e Design, há duas placas que recordam um passado difícil de ignorar: as autoridades romenas permitiram que a comunidade húngara colocasse a primeira e, logo, mesmo ao lado, na fachada do edifício caiado de branco, uma outra foi inaugurada, em romeno e em inglês, recordando que o “romeno Matei Corvin” nasceu aqui, “segundo a tradição histórica”.
Apregoada em qualquer folheto turístico como a casa onde o soberano, segundo filho de Iancu (Ioan) de Hunedoara, grande voivoda da Transilvânia e governador da Hungria, terá visto pela primeira vez a luz do dia, a verdade é que a propriedade nunca pertenceu à família — apenas um acaso que resulta de a sua mãe, Elisabeta Szilagy, estando grávida e de passagem pelo local, ter procurado abrigo na estalagem que funcionou naquele espaço até ser comprado pelo município em 1740.
Virada para o futuro
Sob um sol cada vez mais tímido, em contraste com as tonalidades fortes das fachadas das casas, erro pela charmosa Piata Muzeului, a praça mais antiga de Cluj-Napoca e centro nevrálgico em tempos medievais, respirando os odores outonais e distribuindo olhares pelas bancas de artesanato que decoram as artérias circundantes ou conduzindo os meus passos até ao interior da Biserica Franciscanilor, a igreja franciscana que tanto me oferece murmúrios imperceptíveis, como, logo a seguir, me envolve com o seu silêncio tão apaziguador. Atravesso o Somesul, com as suas águas serenas, e subo por um trilho até alcançar o dorso da colina onde os austríacos construíram, entre 1715 e 1735, uma fortaleza Vauban que durante muitos anos permaneceu como símbolo de controlo; mais tarde, durante a revolução de 1848, foi transformada em prisão e, nos dias de hoje, a antiga cidadela (não é fácil descobrir vestígios) é simplesmente um lugar que oferece uma agradável panorâmica sobre a cidade à qual não tardo a regressar, não sem antes passar pelo monumento à liberdade e pela Sinagoga dos Deportados, construída em 1987 em memória dos mais de 16 mil judeus de Cluj-Napoca que foram enviados, em 1944, para Auschwitz.
Mais para sul, após uma pausa no elegante Palácio Banffy, os meus passos vão de encontro às muralhas da cidade e, logo depois, ao Turnul Croitorilor, o único bastião sobrevivente da outrora cidade fortificada que recebe, desde 2009, no primeiro fim-de-semana de Outubro, um importante evento designado as noites da arte medieval.
A tarde espreguiça-se e Cluj-Napoca, agora que o vento varreu algumas nuvens, não tarda a ser banhada pelas cores crepusculares. O movimento na rua intensifica-se e são os jovens quem marca o ritmo da cidade, bebendo o primeiro copo antes que a noite tombe e os convide para outros mais, quebrando a rotina do dia-a-dia na universidade.
- Temos um total de 100 mil estudantes e, pelo menos durante dez meses, um quarto da população não tem mais de 25 anos. Por outro lado, uma das qualidades mais apreciadas pelos estrangeiros e pelos turistas é a segurança. O índice de criminalidade em Cluj-Napoca é muito baixo, é uma cidade onde se pode caminhar sozinho durante a noite ou beber um copo com amigos em lugares públicos sem qualquer problema. Se consultar o Eurostat, o departamento de estatísticas da União Europeia, verificará que Cluj-Napoca é a cidade mais amigável da Europa e a mais tolerante, enfatiza Oana Buzatu, uma das responsáveis pelo turismo local.
À minha frente, tenho agora a admirável Universidade Babes-Bolyai, com os seus mais de 40 mil estudantes, um edifício de grande beleza, uma história que remonta a 1872 (até 1918, o húngaro era a língua predominante), e conceituada, internacionalmente, por abrigar o primeiro instituto de espeleologia (estudo das cavernas) do mundo, criado em 1920. Esta é apenas uma das quatro universidades de elite com sede em Cluj-Napoca, uma cidade que conta igualmente com mais de três centenas de empresas de tecnologia informática e dez mil engenheiros — e não é por acaso que 78% das exportações do sector, em todo o país, têm origem na urbe da Transilvânia, uma eterna rival de Bucareste, económica e culturalmente, mas no caminho certo para ultrapassar a capital.
- Cluj-Napoca tem, se não contabilizarmos os estudantes, uma população que pouco excede os 300 mil habitantes. Mas, em toda a Roménia, pelo menos uns 600 mil consideram Cluj-Napoca a sua cidade, observa Oana Buzatu.
No momento em que deixo Cluj-Napoca para trás, ao início da tarde do dia seguinte, recordo-me de Aura Avram. Também ela faz parte desse número de amantes de uma cidade que Nicolae Ceausescu não lhe permitiu ver com o olhar que desejava. E, se um dia voltar ao lugar onde nada falta e tudo está a acontecer, certamente que não o reconhecerá — Cluj-Napoca preserva o passado mas trilha o caminho do futuro.
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Roménia: Em Cluj-Napoca não falta nada e tudo está a acontecer