Fugas - Viagens

  • Anabela Mota Ribeiro
  • Anabela Mota Ribeiro

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A casa de Frida (que era também de Diego)

Panteão privado

Singular é uma palavra que vai bem com Frida. Embora não chegue. Nem o superlativo singularíssima chega. Frida era singularíssima, pessoa inteira, maior do que o sofrimento. Tudo nela é uma epopeia. A começar no amor com Diego. “Es Diego nombre de amor”, disse ela. Epopeia no dicionário: poema de longo fôlego acerca de assunto grandioso e heróico. Diego para ela, dito como quem escreve uma carta de amor: “Colectiva e individual é a arte de Frida. Realismo tão monumental que no seu espaço todo possui inúmeras dimensões; em consequência, pinta ao mesmo tempo o exterior, o interior e o fundo de si mesma e do mundo.”

A relação foi conflituosa, tortuosa, todos os adjectivos desta família. E de outra: iluminante, instigadora. O que se vê na casa é uma fénix que renasce. Lá está Frida, transmutada em heroína que sobrevive ao acidente, politizada até à medula, amante. Ave fabulosa, emplumada de tonalidades raras, híbrido de dia e noite, alegria e morte, homem e mulher, folclore e surrealismo. Frida e Diego.

E lá está Diego, homem imenso que a mãe de Frida comparava a um elefante (a filha, por oposição, era uma pomba). Vinte anos mais velho. A força vulcânica que teima: porque é que um mexicano não pode ser um grande artista? Um grande tão grande quanto os grandes que confluíam em Paris, onde Diego também esteve, anos a aprender, a discutir, a pintar primeiro imagens inócuas, e depois temas que incendeiam, a política. Regressou ao México depois da revolução zapatista para perguntar, justamente depois da revolução: “O que é ser mexicano?”.

A sua obra é uma resposta a esta questão complexa, nunca completamente satisfeita. O ser mexicano é ser povo, é lutar pelo povo, é estar do lado desses. (Num documentário, a primeira mulher de Diego, mãe da sua filha, diz assim: “A única coisa que admirava em Diego era o amor que sentia pelo povo. E mais nada.”)  

É o povo que aparece nos murais, no México, nos Estados Unidos. O povo e quem o guia. Caso do famoso mural que foi destruído por causa da aparição de Lenine. Há limites – pensou Rockefeller – que contratava. Não há, não – pensava Rivera, o artista que reivindica liberdade ilimitada no acto de criação. Acabou destruído, o mural.

Ser mexicano é coleccionar adereços da vida simples de todos os dias. Uma taça pintada com singeleza. Diabolitos (esqueletos que simbolizam Judas e que hão-de ser queimados no Dia dos Mortos) nas paredes. Máscaras, estátuas, artefactos pré-colombianos. (No mesmo documentário, conta-se que num dia de tempestade conjugal, a primeira mulher de Diego partiu em cacos certas peças de arte pré-colombiana e as serviu no prato, no lugar da sopa. Aquele era o jantar. Para doer.)

Frida, que apareceu mais tarde, fez com ele esta revolução, ergueu a bandeira. Pintou a foice e o martelo no corset que usava para segurar a coluna, em inúmeras telas, pintou retratos de Marx, Estaline, todos os inspiradores. A luta era pelo povo. 

A casa de Frida e Diego era um lugar de tumultos, constelação de pessoas bizarras, de estrelas, espécie de panteão privado, também de pessoas vivas. Toda a gente desaguava na casa azul. Trotsky que ali viveu meses. André Breton de passagem (disse dela: “Candura e insolência, crueldade e humor”). A pintora Georgia O’Keeffe e a fotógrafa Tina Modotti, com quem Frida teve romances (manda o bom senso usar “alegadamente teve romances”, ainda que a informação circule por tudo quanto é sítio). O cineasta russo Eisenstein, os fotógrafos Edward Weston ou Álvarez Bravo, o revolucionário Pancho Villa.  

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