O velho bairro é tão ecléctico quanto pode ser uma zona histórica com raízes em séculos de antanho e ainda não de todo tomada pela pós-modernidade e pelos negócios que transformam os lugares em imitação de si mesmos. Deslumbramo-nos com residências tradicionais, bem conservadas na arquitectura e no mobiliário, nas ruas Hang Dao e Ma May, e visitamos, de passagem, algumas casas comunais, espaços ideais para escutar, em recitais regulares, as belas tradições musicais e poéticas do Ca Trù, expressão artística classificada pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade.
Ainda é possível reconhecer um pouco da Hanói das 36 corporações de artesãos que se terão formado, provavelmente, no século XV. A toponímia de muitas das ruas do bairro é um reflexo desse tempo, identificando a actividade profissional ou a especialização das lojas: Hang Bac, Hang Dong, Hang Quat, etc.
O comércio é exuberante e (quase) caleidoscópico: o das lojas, em número de largas centenas, e o dos vendedores ambulantes, sobretudo mulheres de andar balouçante sob o peso das varas plantadas sobre os ombros e com os cestos carregados de fruta, legumes, flores ou outra mercancia. Deixam-se fotografar pelos turistas, que lhes compram qualquer coisa por um punhado de dongs, e sorriem: nada deixa adivinhar a vida agreste destas mulheres — originárias, muitas, do meio rural —, o quotidiano enredado e penoso que começa de madrugada e se estende até ao entardecer, para conseguirem sustentar as famílias. No excelente Museu da Mulher Vietnamita, numa rua não muito longe do lago Hoàn Kiém, pode-se ver um interessante documentário sobre estas heroínas das ruas de Hanói. O que nele se narra é, verdadeiramente, um predicado de determinação e de resiliência das mulheres de Hanói, que outra coisa não é senão uma qualidade estrutural do povo vietnamita. E, nesse sentido, o museu pode ser uma notável introdução ao país que a antiga Cochinchina é hoje.
Os despojos da memória
“Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada / Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto / dentro de um foguetão reduzido a sucata / Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto / numa casa de Hanói ontem bombardeada.”
Nos versos desta Litania para o Natal de 1967, de David Mourão-Ferreira, perpassa a indignação e o protesto que grassavam então pela opinião pública sobre um conflito que vitimava milhares de civis. Não é ideia lunar o viajante ficar-se pelo Vietname rural das montanhas e terraços de arroz de Sapa, na fronteira com a China, pela baía de Ha Long, cada vez mais em permanente hora de ponta, pela agitação frenética de Ho-Chi-Minh, a antiga Saigão, ou, até, pelas praias de águas azul-turquesa do litoral do mar da China. Mas em Hanói é difícil, ou mesmo impossível, ignorar aquela dimensão da História recente do país, ainda mais em ano de múltiplas celebrações. Na verdade, os primeiros trinta anos de independência do país, quase metade da sua existência moderna, foram vividos em guerra. A capital vietnamita reúne uma série de lugares de memória que evocam aspectos e episódios do conflito que de forma mais brutal concretizou os confrontos ideológicos da Guerra Fria. Os museus são, sem surpresa, espaços que privilegiam essa memória, com que tropeçamos, também, quando damos de caras com carcaças enferrujadas de aviões norte-americanos conservadas como surreais e fúnebres esculturas.