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Istambul: Terraços de vidro, barcos de chá

Por Rute Barbedo

Istambul é dura, pesada nas pernas, nas mãos, na boca. Faz de nós um saco morto a boiar no Bósforo para que nos levantemos a seguir reclamando que estamos vivos. Somos, então, um saco feito balão, a flutuar nas ruas, entre 20 milhões de gente e as melhores borras de café do mundo.

Um carro passa tresloucado. Buzina, buzina, buzina e faz esvoaçar bandeiras da Turquia pelas janelas, de onde saem gritos de garganta inteira, por Erdogan e pela república. Em turco, bogaziçi liga-se à palavra “garganta”, mas em português dizemos Bósforo, o nome do estreito que separa a Europa da Ásia mesmo aqui, em Istambul, a quinta cidade maior do mundo. Do terraço onde provamos a cerveja que o Estado decidiu ser cara, vê-se o Bósforo, sim, e ouve-se a garganta do rapaz que grita nacionalismos vários. Também se vislumbra uma faixa comprida – como daquelas que em Portugal passam sobre as praias a publicitar as festas de sábado à noite, puxadas por avionetas – suspensa nos minaretes da mesquita de Dolmabahçe. O novo desígnio? Publicidade, capital comercial. Então, continuamos a beber do mesmo copo, no terraço da vida de sonho. Lá em baixo, a realidade.

Yusuf vai casar-se amanhã. Não haverá grandes manjares, nem tradições a cumprir, a não ser alguns rituais com a família mais chegada, como a oferta de café turco por parte da noiva, a marcar a promessa de um futuro de amor pela frente. De resto, longe do islão, o copo de água é no bar do IKSV, a Fundação para a Cultura e Artes de Istambul, no bairro de Sishane. Há uma facção assim, entre a juventude, que quer desmembrar o passado, os costumes, as marcas de um regime que tem cumprimentado activistas com nuvens de gás-pimenta e que corta a fala à comunicação social e o uso da Internet. Yusuf e Melis, a noiva, têm medo. Então, fumam cigarros – não há estatística que comprove a quantidade de fumadores (às claras e às escondidas) nos bairros furtivos de Istambul – e bebem cerveja, a preços proibitivos, nos terraços sonhadores de Beyoglu, o bairro das noites mais longas da cidade.

 “Eu chamaria a isto o drama da alegria, ou a alegria do drama. Istambul – ou a Turquia, para ser mais preciso – é um lugar cheio de limitações, tabus, punições e dívidas. Sempre que estás a divertir-te ou simplesmente a saborear um momento, não consegues parar de pensar no preço que terás de pagar por isso. Sais com os amigos e temes, fazes arte e temes, aprecias a contribuição de alguém para a tua vida e temes.” Mas, “se alguém chorar, se estiver em sofrimento, então a sociedade abraçá-lo-á, celebrará o drama e partilhará a desgraça com ele”, descreve Yusuf, de 27 anos, que coordena projectos culturais e sociais na Fundação da Música para a Paz, na cidade turca.

Vamos para as ruas de Pera, que é dia de casamento. Está o dia feito num Verão daqueles, a escaldar, com o azul mais denso que a palete de cores tem a vigiar-nos de cima. E é como se a Europa hegemónica, dos hotéis de Londres e cafés de Paris, coubesse toda aqui. Ruas largas, lojas finas, edifícios tocados pela Belle Époque, mulheres de salto alto, mulheres de hijab, mulheres de salto alto e hijab.

O casamento, no entanto, não será a festa esperada. Quatro amigos tiveram um acidente de automóvel no caminho para a cidade. Nenhum deles sobreviveu. “Istambul é isto. Demasiado intenso, emoções muito fortes”, acredita Elian, que fuma cigarros sem contar em frente ao cartório. Não será a festa esperada e haverá funeral, mas contamos, certamente, com a presença do que é a vida por aqui, cheia de fatalismos e de hüzün, esse estado de alma próximo da melancolia, que há-de levar-nos a conhecer Istambul por uma espécie de fumo cujo fogo é o sol. “Temíamos que chovesse”, comenta Yusuf. Mas não, que o dia é de festa e a noiva vai de decote, à frente e atrás. Bebamos café, muito café. Quanto às borras, lá chegaremos. Se houver passeio, havemos de perder-nos 1001 vezes e de descansar em mesas mais curtas do que as pernas para beber chá e ver o mundo passar ao ritmo que bem entender. Por agora, a noite é de Verão, com os sentidos alerta, porque em Istambul começa-se assim: a ver a desordem antes de fazermos parte dela.

O caos na cabeça
Yusuf e Melis já são marido e mulher, mas ainda não sabemos para que lado acordou o dia. É sempre assim, tímida, a cidade, à luz da manhã. Nos quarteirões em volta da Praça Taksim, anda o homem do sésamo a empurrar o seu carrinho vermelho para vender pequenos-almoços, almoços e jantares, ou seja, rodelas de pão com sementes de sésamo para trincar a qualquer hora. Cruza-se com os miúdos das bicicletas e com bolas de futebol, com os cães vadios, os fumadores e os condutores – a espécie mais perigosa de toda a Istambul, pronta a usar a marcha-atrás e o acelerador impulsivo sempre que necessário.

Vamos descer até à água, seja ela do Bósforo, do Corno de Ouro, do mar Negro ou de Mármara. Qualquer uma serve. Mas para chegar lá em baixo é preciso subir primeiro – nada é gratuito por estas bandas. De Taksim a Kasimpasa, há edifícios prontos a desmontar-se sobre o chão, cabos eléctricos que deixam marcas de pó e dióxido de carbono nas paredes, a rua dos electrodomésticos, a das ferramentas, a dos reparadores de barcos. Há o mercado de Kastamonu a transbordar de vermelhos, verdes, roxos, laranjas, todas as cores que os frutos e legumes turcos dão de bandeja, ou melhor, de bancada. Há o estádio com o nome do presidente, Recep Tayyip Erdogan, no último topo da última colina, e daqui será um deslize até ao porto de Kasimpasa – o mais bonito, porque tem um jardim nas costas onde se vende chá e as pessoas assam pernas de frango.

Atravessar o Corno de Ouro neste barco para Haliç custa 2 liras turcas (0,60 euros), e ainda há entre os bancos uma mesa para beber chá preto assim que o sono chame pelo seu nome (çay, diz-se por aqui). O miúdo vai no piso de cima a sentir o vento norte, a mãe come bolachas trazidas num saco. A nova margem significa um mundo de coisas, como a vontade de espreitar as pontes e de farejar Eminönü até à última especiaria. Aqui estão a canela, o anis, o açafrão, as pimentas e os chás de muitas sortes. E na Ponte de Galata estão dezenas de canas de pesca apontadas à água. É aqui que à noite se monta o rebuliço em torno das sandes de peixe, vendidas nos barcos presos ao cais, que mais parecem dragões chineses a ondular com o barulho das gentes. “Toda esta complexidade faz-nos admirar a cultura e dá vontade de nos perdermos. Istambul é esse tipo de lugar, que te engole por inteiro quando começas a descobri-la”, concorda Melis, que pára, por instantes, de fumar cigarros no terraço. “Mas quando vives aqui”, continua, “toda essa beleza mostra-se enganadora”. “Viver em Istambul exige demasiado tempo, dinheiro e esforço, física e psicologicamente.”

Osman (nome fictício) viria a confirmar-nos isso mesmo. Vende frutos secos e lokum (doce típico turco) numa loja feita de lonas, já o sol vai dourado. Perguntamos como corre o trabalho e Osman agarra-se às ancas como quem dá um último sopro de força às pernas. “Como pode correr bem se trabalho 13 horas por dia?” Tem pirâmides de frutos para cobrir e organizar no bazar das especiarias. Diz-nos que ser turco é isto, e quem diz turco também diz sírio, afegão, libanês e as muitas outras nacionalidades que compõem a mancha profunda de Istambul.

Junto à Nova Mesquita (Yeni Cami), há homens a vender pensos rápidos, lenços de papel, pássaros de plástico que cantam como os de verdade. Na lateral, outros homens lavam os pés numa sequência de purificação, junto às 66 cúpulas e semicúpulas que comunicam com o céu, de onde canta o muezzin (o responsável pela chamada para cada reza). Entramos descalços sobre a alcatifa rubi que cobre o mármore da mesquita. Devíamos andar sempre assim, sem sapatos, sem meias, sem relógio, sobre terrenos de algodão que massajam os pés da quilometragem que um lugar como Istambul impõe. (Escrevemos, mais tarde, “quilómetros” e “Istambul” no Google e a soma dá 1 830,92 km². Lisboa tem 100,05. Pois bem. Vamos à população: à nossa volta, haverá 14 milhões de deambulantes, segundo os últimos censos, de 2014. “14 milhões? Nem a brincar! Somos mais de 20 [milhões], à vontade”, dir-nos-á Hilal (nome fictício), um homem reformado, tornado ao país depois de 30 anos na Alemanha.)

É preciso preparar os olhos para a multidão. Deixem-nos ficar na Yeni Cami, a pensar no mundo em volta, a ganhar fôlego para a vida em massa no bazar de Eminönü, antes de comermos o nosso melhor kebab e de provarmos um infantil ayran (o iogurte que é bebida nacional), que nos deixará bigodes até à ponta do nariz. Deixem-nos aqui, a calcular os sacos de café que queremos levar connosco, a pensar nos diferentes tipos de tâmaras à venda e a lembrar as toalhas de mesa que parecem tapetes persas.

Ficamos, pensamos, calculamos, tudo. Mas a reza acabou e os mercados não. Vamos. À porta do Grande Bazar, faz-se fila para comprar café, se bem que aqui a fila é difícil de identificar. Mulheres grandes levam sacos grandes de compras, homens que já não têm idade para isso carregam caixas pesadas às costas, miúdos imberbes empurram carrinhos colinas acima e abaixo. O tempo passa porque há pessoas a comprar tecidos, bules, chávenas, comida e especiarias. As pessoas são o tempo a passar. O bazar são loiças, azulejos, latão, jóias, tapetes, homens à conversa nos corredores, cigarros avulso, becos onde se formaram hotéis com pátios e plantas a crescer com o efeito de estufa. Além das tâmaras, há figos e damascos, e há maçarocas cozidas na rua. Valha-nos Alá neste Estado laico (que não parece), senão vamo-nos a tudo.

Pamuk há-de salvar-nos
No que toca ao caos na estrada e aos passeios cruzados por motorizadas, Istambul parece Marrocos. Mas também parece Lisboa, pelo rio, pelas pontes, pela luz sobre as colinas. Ah!, e tem um pouco de Paris, na zona dos hotéis e das chiquezas. Se bem que podia ser uma cidade do Sul de Itália, em Yenikapi, o bairro onde se come peixe fresco na grelha. Mas também tem Ásia nos letreiros e nas lojas de vestidos de noiva de Üsküdar. Caminhamos cidades inteiras em Istambul. Trilhados os bazares e dadas as voltas tontas ao mesmo bairro, na imaginação de qualquer peregrino, os gémeos já teriam ganho porte de estátuas gregas, definidos, robustos, prontos para enfrentar um exército. Fora isso, a realidade são bolhas nos pés e dedos latejantes. Tudo sobe e não termina. A Atatürk é uma avenida sem horizonte, por exemplo.

Vamos descer, como se isto fosse um escorrega profundo entre carrosséis carregados de lojas centenárias e modernas, à Nouvelle Vague e à Bollywood, tudo ao mesmo tempo. Vamos abastecer-nos de sumo de romã para aguentar a longitude. Vamos pagar caro por um baklava como se fosse o último açúcar dos deuses. Vamos voltar a tocar a água com os olhos e andar de ferry bebendo sumos de laranja, que a poluição desidrata e Orhan Pamuk há-de ensinar-nos que ali, no Bósforo, está a cura de todas as angústias desta Istambul melancólica e difícil. “Depois das primeiras noites de febre [o doutor Alber] prescreveu-nos, para a convalescença, a ida diária e obrigatória à beira do Bósforo, para que tomássemos ar o mais possível”, escreveu o Nobel da Literatura turco, Pamuk, em Istambul, Memórias de Uma Cidade (Editorial Presença, 2008), sobre as memórias de infância passadas numa Istambul decadente dos anos de 1960. Vamos então tomar ar. “O espírito e a força de Istambul provêm do Bósforo”, continua o escritor. Assim é. Mais um barco para brincar às viagens.

Mas a Istambul de Orhan Pamuk não é a mesma de hoje. Entre os edifícios históricos há hotéis com letreiros gigantes, construções a meio de qualquer coisa, zero de planeamento urbanístico. O Norte, o Oeste e o lado asiático parecem cidades distintas. Mas se quisermos ser apocalípticos a sério, ouçamos Yusuf: “As pessoas podem mudar muito rápido, mas as cidades não, sobretudo se falamos de uma das cidades mais antigas do mundo. Istambul vai destruir-se a si mesma, ao mudar tudo em relação às necessidades dos investidores.” Por todo o conjunto de deslumbrados com as oportunidades desta cidade de sonho, o futuro adivinha-se “distópico”. “Já é distópico”, acredita o citadino. E à volta de Istambul, o cenário replica-se. Estão a aparecer blocos de betão “em lugares onde antes se podia ver o pôr do sol sobre campos de milho”. Está tudo à crescer em volta, com centros comerciais, “casas mais chiques do que bolos de casamento” e, em Istambul, os prédios vazios, cada vez mais. 

Passeamos junto ao rio, subimos até ao aqueduto da cidade antiga pelo chão empedrado, em passagem crescente pelas lojas de sapatos de pele, de cerâmicas coloridas, de utensílios para fazer café turco (considerado Património da Humanidade pela UNESCO) e de chaleiras sobrepostas – as çaydanlik – à espera de dono. Em Sultanahmet, vai crescendo o número de câmaras fotográficas e de filas para ver o que sobrou dos impérios bizantino e otomano. Nada de selfie sticks, avisam os sinais, mas que os há, há. Vêm à procura dos melhores panos de fundo, como a Mesquita Azul, a Santa Sofia e a Süleymaniye, o fascinante Palácio Topkapi, os obeliscos, as madraças, os fontanários. Na Santa Sofia, os tons são de terra por fora, há jardins e bancos para quem quiser ficar a olhar, como quem se senta em frente a uma pintura. Os pés usam sapatos e os ombros e pernas podem entrar descobertos, que a mesquita (inicialmente catedral) foi transformada em museu nos anos de 1930, por ordem de Atatürk, o ainda adorado fundador da República da Turquia. Lá dentro, dezenas de candeeiros suspensos iluminam centenas de cabeças curiosas, as paredes são como pergaminhos em que a pele é pedra, e o chão de mármore é curvo, gasto em mais de 1500 anos. 

 “Istambul desfila, com todo o peso do seu caos, com as suas mesquitas, os seus bairros afastados, as suas pontes, os seus minaretes, as suas torres, os seus jardins e os seus altos edifícios cujo número aumenta de dia para dia”, resume, por nós, Pamuk.

Sair sem sair
Para além de Yusuf, o recém-marido, e de Niki, a cadela, Melis havia-nos dito que uma das coisas que mais a acalmavam em Istambul era sair daqui. Riscou-nos no caderno o número de um autocarro que atravessaria a ponte e que nos conduziria até Beykoz, de onde um segundo autocarro nos levaria a Polonezköy, a aldeia polaca no cimo de um lugar de árvores, a partir do qual Istambul é uma miragem em silêncio. Aguardamos pelo número certo na Praça Taksim. Ele não chega. Perguntamos aos homens da rua, questionamos a senhora apática do Posto de Turismo. “Esse autocarro já não existe”, informa a funcionária. Alternativas? Não as adianta.

Vamos lá, então, apanhar o ferry, que vai composto e contente. O senhor do costume, com o seu bigode farto e mãos bojudas, passa de bandeja a oferecer çay, sumo de laranja e aperitivos. O mundo há-de compor-se. Podemos ir até Üskudar e apanhar a vista final sobre a Torre de Leandro, que fica sobre um ilhéu no estreito do Bósforo; ou escolher o porto de Haydarpasa, em Kadiköy, onde mexem o mercado do peixe, o kebab da rua Neset Ömer e os cafés bonitos da primeira linha asiática – não esquecendo a loja de café e frutos secos Brezilya, uma espécie de Brasileira da Turquia, com quase 100 anos e muito para (bem) cheirar.

Depois dos figos e da música na praça, havemos de encontrar transporte para Beykoz. “Quanto custa o bilhete?” “Não vendemos bilhetes para o autocarro. É preciso ter um cartão… Mas quanto dinheiro tem?” “Quatro liras.” “Está bem, pode ser.” Do banco do autocarro, que segue paralelo à costa, Istambul não termina. Há um homem que segue os nossos minutos com os olhos. Vê o que apontamos, o que fotografamos, o que fazemos até Beykoz, esse lugar ainda em Istambul mas que parece uma aldeia montada por pescadores, com tascos para comer barato e turcos conversadores.

Vir de Taksim até aqui levou uma manhã. Já o pequeno-almoço vai longe e o caminho para Polonezköy também – assim que chegámos, disseram-nos que “já não há autocarros para Polonez”. A fome fala primeiro e vem na voz de uma cantina que dá para a praça principal. O homem que nos observava no autocarro, Hilal (nome fictício), também almoça aqui e, assim que nos vê, interrompe o bulgur para estender mais cadeiras à mesa. “Do que precisam? Aqui come-se muito bem, muito bem mesmo. Ao meio-dia, isto enche de advogados. E mais: é barato. Peçam a meia dose, que dá perfeitamente, e ficam a pagar metade.” Hilal é o tal homem que viveu 30 anos na Alemanha – “é por isso que falo inglês” – e que lembra insistentemente que em Istambul vivem mais de 20 milhões de pessoas. “Não estão registadas, mas é verdade.” Comemos bulgur com ele e uma pasta cremosa de beringelas, curgete, tomate, alho e azeite. À sobremesa não resistiremos, já se sabe. Ao café também não. Os funcionários esticam-se para tentar entender o inglês. Às tantas, já não interessa o que dizemos, mas o que comemos. E Polonezköy? “Estão a ver este homem? Ele leva-vos até lá.” Para cá, logo veremos.

O caminho é a subir, claro, e cada vez mais verde. Vê-se bem porque a boleia é num jipe, que tem um ecrã no tablier onde assistimos a vídeos pirosos de música turca (dependendo da perspectiva). “Esta é um êxito”, detalha o condutor. Ora aparecem mulheres com vestidos que esvoaçam no deserto, ora homens que cantam músicas de embalar junto a grandes carros. Mas interessa-nos mais o mundo lá fora, francamente. Há um aglomerado de villas que parecem uma pintura geométrica em repetição, voltadas para o núcleo “golíaco” da cidade. “São das casas mais caras de Istambul; vivem aí muitos políticos e famosos.”    Chegamos ao destino, ainda em Istambul mas a 30 quilómetros do centro histórico. A vida de Polonezköy começa em 1842, quando o príncipe Czartoryski quis montar nesta floresta alta um centro de emigração para polacos. Até 1918, o local foi o refúgio de centenas de pessoas, fugidas da Sibéria ou da Guerra na Crimeia. Hoje, continua a ser refúgio – como toda a cidade, aliás, variando as épocas e os motivos –, mas sobretudo para quem quer manter-se longe do caos citadino, protegido por muros de arame farpado.

A noite, à volta da praça
No regresso ao centro urbano, tudo parece tranquilo. Notícias sobre as próximas eleições legislativas, a 1 de Novembro, dominam os televisores, as mercearias mantêm as portas abertas, e há quem ainda venda sésamo e melancia na rua. Os terraços à volta da avenida Istiklal continuam cheios de ricos e sonhadores que bebem café turco em peças de arte, fechadas por coroas de sultão, para que não arrefeça. Quem trabalhou 11, 12 e 13 horas afoga e esfumaça aqui, nesta tela de luzes e formigas animadas, as circunstâncias do dia. 

“Na minha infância, as noites eram bonitas porque a cidade, à medida que empobrecia, enterrava-se em si mesma, cobria-se de uma atmosfera turva e pesada – como quando neva –, que se impregnava de poesia. A noite de Istambul, pela razão de que os prédios altos ainda eram pouco numerosos no tempo da minha infância, introduzia-se dentro das casas, esgueirava-se por entre os ramos das árvores, pousava nos cinemas ao ar livre, nas varandas, nas janelas abertas…”, descreveu Orhan Pamuk. Hoje, há muitos prédios altos e, talvez por isso – e porque Istambul é a eminência constante de um acontecimento –, a vontade é de estar na rua sem intermitências. Terraços? Barcos? Uma manifestação na praça do povo? Funerais e casamentos? “Para resumir, esta cidade é completamente louca”, “complexa e sem limites”, admite Melis, que ama e detesta Istambul por essas mesmas razões. Pensaremos no assunto enquanto contamos os barcos que atravessam o Bósforo, como fazia Pamuk na sua pequenice. Seja como for, esta cidade é louca, por isso, às vezes, é bom ficar no terraço.

Guia prático

Como ir
Este ano foi feliz quanto às ligações entre Portugal e a Turquia. Passámos a ter 14 em vez de dez voos semanais entre Lisboa e Istambul e a Turkish Airlines inaugurou a rota Porto-Istambul, a 30 de Abril. As viagens (com escala) rondam os 300 euros (ida e volta), mas reservando-se com antecedência (para Dezembro, por exemplo), encontram-se voos a 220 euros.

Onde ficar
A diversidade (por esta altura, já saberemos) é um dos grandes trunfos de Istambul. Por isso, as hipóteses de alojamento podem variar de um hostel de qualidades duvidosas nos arredores da Praça Taksim até ao majestoso Pera Palace, por exemplo. No Çiragan Palace Hotel Kempinski, um dos hotéis mais caros do mundo, segundo a revista Forbes, uma noite pode custar mais de sete mil euros, não fosse este edifício voltado para o Bósforo a última casa dos sultões otomanos.

O melhor será mesmo avaliar orçamentos e escolher o hotel de acordo com a localização. Se a preferência for pela vida nocturna, a zona de Beyoglu será das mais atractivas. Se preferir mercados, gente e dia, recomendam-se as imediações de Eminönü. Para uma experiência mais contemplativa, reservada e económica, com mercados de peixe e muita vida de café à mistura, Üsküdar ou Kadiköy, no lado asiático, são opções a considerar.  

Informações úteis

- A moeda local é a lira turca. Cada lira vale 0,30 euros.

- É necessário um passaporte com validade mínima de seis meses e um visto, que pode ser adquirido por 20 euros através do website www.evisa.gov.tr.

- Não é aconselhado o consumo de água corrente.

 

 

 

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