Um carro passa tresloucado. Buzina, buzina, buzina e faz esvoaçar bandeiras da Turquia pelas janelas, de onde saem gritos de garganta inteira, por Erdogan e pela república. Em turco, bogaziçi liga-se à palavra “garganta”, mas em português dizemos Bósforo, o nome do estreito que separa a Europa da Ásia mesmo aqui, em Istambul, a quinta cidade maior do mundo. Do terraço onde provamos a cerveja que o Estado decidiu ser cara, vê-se o Bósforo, sim, e ouve-se a garganta do rapaz que grita nacionalismos vários. Também se vislumbra uma faixa comprida – como daquelas que em Portugal passam sobre as praias a publicitar as festas de sábado à noite, puxadas por avionetas – suspensa nos minaretes da mesquita de Dolmabahçe. O novo desígnio? Publicidade, capital comercial. Então, continuamos a beber do mesmo copo, no terraço da vida de sonho. Lá em baixo, a realidade.
Yusuf vai casar-se amanhã. Não haverá grandes manjares, nem tradições a cumprir, a não ser alguns rituais com a família mais chegada, como a oferta de café turco por parte da noiva, a marcar a promessa de um futuro de amor pela frente. De resto, longe do islão, o copo de água é no bar do IKSV, a Fundação para a Cultura e Artes de Istambul, no bairro de Sishane. Há uma facção assim, entre a juventude, que quer desmembrar o passado, os costumes, as marcas de um regime que tem cumprimentado activistas com nuvens de gás-pimenta e que corta a fala à comunicação social e o uso da Internet. Yusuf e Melis, a noiva, têm medo. Então, fumam cigarros – não há estatística que comprove a quantidade de fumadores (às claras e às escondidas) nos bairros furtivos de Istambul – e bebem cerveja, a preços proibitivos, nos terraços sonhadores de Beyoglu, o bairro das noites mais longas da cidade.
“Eu chamaria a isto o drama da alegria, ou a alegria do drama. Istambul – ou a Turquia, para ser mais preciso – é um lugar cheio de limitações, tabus, punições e dívidas. Sempre que estás a divertir-te ou simplesmente a saborear um momento, não consegues parar de pensar no preço que terás de pagar por isso. Sais com os amigos e temes, fazes arte e temes, aprecias a contribuição de alguém para a tua vida e temes.” Mas, “se alguém chorar, se estiver em sofrimento, então a sociedade abraçá-lo-á, celebrará o drama e partilhará a desgraça com ele”, descreve Yusuf, de 27 anos, que coordena projectos culturais e sociais na Fundação da Música para a Paz, na cidade turca.
Vamos para as ruas de Pera, que é dia de casamento. Está o dia feito num Verão daqueles, a escaldar, com o azul mais denso que a palete de cores tem a vigiar-nos de cima. E é como se a Europa hegemónica, dos hotéis de Londres e cafés de Paris, coubesse toda aqui. Ruas largas, lojas finas, edifícios tocados pela Belle Époque, mulheres de salto alto, mulheres de hijab, mulheres de salto alto e hijab.
O casamento, no entanto, não será a festa esperada. Quatro amigos tiveram um acidente de automóvel no caminho para a cidade. Nenhum deles sobreviveu. “Istambul é isto. Demasiado intenso, emoções muito fortes”, acredita Elian, que fuma cigarros sem contar em frente ao cartório. Não será a festa esperada e haverá funeral, mas contamos, certamente, com a presença do que é a vida por aqui, cheia de fatalismos e de hüzün, esse estado de alma próximo da melancolia, que há-de levar-nos a conhecer Istambul por uma espécie de fumo cujo fogo é o sol. “Temíamos que chovesse”, comenta Yusuf. Mas não, que o dia é de festa e a noiva vai de decote, à frente e atrás. Bebamos café, muito café. Quanto às borras, lá chegaremos. Se houver passeio, havemos de perder-nos 1001 vezes e de descansar em mesas mais curtas do que as pernas para beber chá e ver o mundo passar ao ritmo que bem entender. Por agora, a noite é de Verão, com os sentidos alerta, porque em Istambul começa-se assim: a ver a desordem antes de fazermos parte dela.