Sabemos que quando Lord Byron chegou a Sintra ficou deslumbrado. No poema Childe Harold’s Pilgrimage, parte do qual terá sido escrito no histórico Hotel Lawrence, chamou-lhe “paraíso glorioso” e, até hoje, a expressão continua a ser usada. Mas a Sintra que Byron viu não é a que nós conhecemos e a que foi — faz amanhã precisamente vinte anos — reconhecida como Paisagem Cultural na lista do Património da Humanidade da UNESCO.
“Quando Byron vem a Portugal no início do século XIX e, tal como todos os outros antes dele, se deixa levar por este encanto avassalador que Sintra sempre teve, ele não viu o que estamos a ver”, explica António Nunes Pereira, director do Palácio Nacional da Pena e do Palácio de Monserrate. “O que nós vemos é o produto da transformação paisagística que acontece a partir de 1838 quando D. Fernando II compra o antigo mosteiro da Pena e o transforma numa residência, transformando também a paisagem à volta.”
Alguns anos depois, é um inglês, Francis Cook, quem vai comprar Monserrate e iniciar também essa transformação. A Sintra Romântica — uma paisagem cultural construída — nasce nessa altura. “O que Byron viu foi uma paisagem que se aproximaria muito mais do que temos na Peninha, mais agreste, muito mais despida de árvores, com outro tipo de espécies e muito mais rarefeitas.” A Sintra de hoje começa, portanto, com D. Fernando II e com Francis Cook. Dois homens que estão, sublinha Nunes Pereira, “no final de uma longa história mas no princípio da que nós aqui contamos”.
Desde que, na sequência da classificação pela UNESCO em 1995, no ano 2000 a empresa de capitais públicos Parques de Sintra – Monte da Lua assumiu a gestão deste património que procura contar esta história a todos quantos visitam os seus monumentos, palácios e parques — e foram já mais de dois milhões este ano.
Comecemos então a visita pelo mais romântico de todos os palácios: a Pena.
Palácio e Parque da Pena
A Pena é, diz o seu director, “a primeira grande evocação da História portuguesa”. É verdade que é outro palácio, o da Vila, no centro de Sintra, que carrega um peso secular que começa com a presença muçulmana e atravessa toda a monarquia portuguesa. “A História está na vila”, reconhece Nunes Pereira, “mas a evocação dessa mesma História está lá em cima, na Pena”, nesse excêntrico palácio de mil formas e cores que se ergue, majestoso, no topo dos penhascos.
D. Fernando II nasce em Viena como Saxe-Coburgo-Gota-Koháry e torna-se rei de Portugal pelo seu casamento com D. Maria II. “É um rapaz alto e louro que chega ao nosso país com 19 anos e tem uma grande necessidade de se afirmar como legítimo rei de Portugal, mesmo que consorte. Por isso, o que faz é agarrar-se à figura de D. Manuel I, para, com a Pena, mostrar ao mundo que está à altura da herança da nação portuguesa.”
Em 1838 compra o mosteiro de São Jerónimo, doado a esta Ordem por D. Manuel I e devoluto após a extinção das ordens religiosas, e nos anos seguintes começa a sua recuperação, assim como a construção do Palácio Novo. Não há dúvida, prossegue o director, que “é uma herança germânica que o leva a construir a Pena a partir dessa ideia de um palácio no topo da montanha, rodeado por uma paisagem”.
Mas o que marca a diferença em relação a palácios como o de Neuschwanstein, mandado construir pelo primo de D. Fernando, Luís II da Baviera (e cuja construção data de 1869, sendo, portanto, posterior ao da Pena), é a ligação ao passado de Portugal. “Enquanto nos seus palácios os germânicos evocam os estilos gótico e românico, D. Fernando vai evocar outras paisagens e regiões culturais, como a arquitectura mourisca, a indiana e a manuelina”, afirma Nunes Pereira. “O espírito e o conceito é o mesmo, mas o resultado é outro porque os lugares onde se erguem e as nações que evocam são diferentes.”
Há uma dificuldade para quem tenta contar a história do palácio aos visitantes que é a da existência de dois tempos diferentes: o primeiro durante a vida de D. Fernando II e D. Maria II, que ali habitaram, e o segundo já com o rei D. Carlos I e a sua mulher, a rainha D. Amélia, que tiveram também uma profunda ligação à Pena.
Por isso, quando percorremos as salas e, sobretudo os espaços privados, vamos recebendo informação que nos permite perceber a utilização em cada uma dessas duas fases. Um exemplo é o quarto de D. Amélia, que foi, anteriormente, o quarto de D. Fernando e que mantém elementos das duas décadas.
Depois das obras de recuperação, grande parte do trabalho que está actualmente a ser feito prende-se com o estudo do mobiliário. “É um trabalho que está no início. Sabemos que o mobiliário de D. Fernando foi feito pela casa Barbosa e Costa, temos os recibos, as datas, mas quem o desenhou, de onde vieram os modelos, que influências teve, isso não sabemos.”
E este é um aspecto muito importante, porque dessa reflexão sobre a identidade nacional feita por D. Fernando faz parte também “a recuperação das artes decorativas, a azulejaria, o trabalho de pedra”, um “recolher do passado ideias para uma produção artística do presente” — algo que, frisa Nunes Pereira, “é extremamente actual”.
Igualmente fundamental é entender a relação do palácio com o parque em que está inserido. Durante muito tempo essa tarefa era bastante mais difícil, pois a gestão do palácio e do parque estava nas mãos de duas entidades distintas. O facto de a Parques de Sintra ser agora a responsável por ambos permitiu uma recuperação conjunta e uma visita integrada.
“Quando o rei chega a Portugal fica deslumbrado com o potencial de criação de um parque romântico em Sintra”, explica Nuno Oliveira, director técnico para o património natural. “Vê a ruína do antigo mosteiro da Ordem de São Jerónimo, que está no topo da montanha, e a que chamam o ninho das águias. As ruínas eram um dos elementos decorativos dos parques românticos, tal como os rochedos e penedos que aqui existiam. A base está toda lá, é uma paisagem com um grande potencial romântico.”
Assim, para áreas que até então eram sobretudo de pastagem e muito pobres, D. Fernando traz plantas vindas dos pontos mais exóticos do mundo, “desde uma floresta nórdica de coníferas até ambientes mais ligados à Austrália e à Nova Zelândia, passando por espécies americanas, camélias, azáleas e rododrendos”. E, graças ao microclima de Sintra, estas adaptam-se bem aqui.
Hoje o cultivo das camélias está a ser recuperado. “Existem mais de duas mil árvores cameleiras, já temos cerca de 300 cultivares identificadas e estamos a reproduzir as históricas, dedicadas a membros da família real, para vir, no futuro, a vendê-las ao público”, revela Nuno Oliveira.
Nos 85 hectares da Pena há muito a visitar. Um dos mais recentes pontos de interesse é o recuperado Chalet da Condessa D’Edla, a segunda mulher de D. Fernando II (D. Maria II morreu aos 34 anos ao dar à luz o 11.º filho). “A Pena não pode ser compreendida na sua totalidade sem o chalet”, defende António Nunes Pereira. “Pertence a uma fase em que D. Fernando é já viúvo, conhece uma cantora de ópera e decide casar com ela. O chalet é também uma expressão do romantismo, mas aqui de um homem para a sua mulher, que era suíça. É o privado e a memória individual oposto à memória colectiva representada na Pena.”
Praticamente destruído por um incêndio em 1999, o chalet tinha ficado quase inacessível. “O parque estava num estado de degradação imenso”, recorda Nuno Oliveira. “O palácio dava receitas mas o parque não, por isso estava abandonado, com os seus elementos, o ochalet, a abegoaria, as estufas, literalmente perdidos. Era difícil chegar até eles e depois descobrir o caminho de volta.”
A recuperação do chalet “foi o ponto de partida para a do parque, que se fez como uma mancha de óleo”. Neste momento, as estufas acabam de ser inauguradas e falta apenas recuperar o Alto do Chá e o Jardim Inglês.
Palácio e Parque de Monserrate
Enquanto D. Fernando II comprava mais terrenos e aumentava a sua propriedade da Pena, não muito longe dali, um milionário inglês, Francis Cook, fazia mais ou menos a mesma coisa na zona de Monserrate. O primeiro palácio desta propriedade, uma mansão neogótica, tinha já sido construído por um outro comerciante inglês, Gerard de Visme, no século XVIII.
Mais tarde, o escritor britânico William Beckford subarrendou o palácio mas na época da visita de Lord Byron a Portugal, em 1809, este estava já em ruínas, o que não impediu que, elogiado pelo poeta, se tornasse local de peregrinação para muitos visitantes estrangeiros. Cook foi um deles e encantou-se de tal forma que acabou por, em 1863, comprar a propriedade onde, com o arquitecto James Knowles, construiu um excêntrico palácio de influências medievais e orientais e um parque igualmente exótico.
Haveria uma saudável competição entre o rei e Cook para comprar terras e exibir os respectivos parques com espécies mais raras e extraordinárias (que entretanto se foram espalhando de forma espontânea pelo resto da serra, modificando a paisagem). Mas neste campeonato Cook tinha uma vantagem, explica Nuno Oliveira: “O clima e as características dos solos são distintas das da Pena, que tem um clima mais agreste, húmido e frio. Se esta consegue albergar conjuntos diversificados de colecções, Monserrate fá-lo de uma forma ainda mais exuberante, sobretudo com as plantas dos trópicos. E aí é mais marcada a diferença entre os vários ambientes: o Jardim do México, o roseiral, o Vale dos Fetos, o relvado em frente ao palácio.”
Os fetos, por exemplo, vêm da Nova Zelândia e da Austrália, “caríssimos à época”, e até a água é trabalhada para criar efeitos de som, correndo por cascatas que terminam em lagos de nenúfares antes de chegarmos, inesperadamente, ao árido “México”.
Quanto ao palácio, explica o director da Pena e Monserrate, Nunes Pereira, “Cook traz para Sintra um romantismo anterior, o mais velho deles todos, o inglês, onde tudo começou”. Como não tem necessidade da evocação da história portuguesa porque não tem qualquer função de Estado, “constrói uma ilha de romantismo britânico, fazendo uma síntese de referências revivalistas da Inglaterra, com um gótico marcado pela influência veneziana e referências à Índia ou ao Alhambra de Granada”.
Hoje, o palácio — que esteve também em muito mau estado mas está já totalmente recuperado — não tem mobília, embora haja em quase todas as salas fotografias que mostram como era no tempo dos Cook. Mas o exotismo da decoração nas paredes, tectos e chão, os painéis indianos de alabastro de Deli, a graciosa Sala de Música, os azulejos hispano-árabes, as colunas de mármores rosa, o jogo de profundidade do corredor que o atravessa ligando as três torres — tudo isso, mesmo com os espaços vazios de mobiliário, é suficiente para encantar os visitantes, que chegam com os olhos cheios dos lagos ornamentais, dos bambus e camélias, dos caminhos perfumados pelas glicínias e o jasmim, das cascatas artificiais e das criaturas mitológicas que os recebem à entrada do jardim.
Palácio Nacional de Sintra
Se na Pena há dois casais de reis para “acomodar” numa história, no Palácio da Vila nem se conta. “Aqui as coisas complicam-se porque estamos a falar de uma fundação árabe e depois de um palácio que foi habitado durante oito séculos pela família real”, explica Inês Ferro, directora do Palácio Nacional de Sintra e do de Queluz.
“Passa para as mãos de D. Afonso Henriques no ano da conquista de Lisboa, 1147 [os almorávidas que se encontravam no palácio de Sintra rendem-se imediatamente após a queda de Lisboa] e, com um breve interregno, é habitado por todos os reis de Portugal.”
Estando situado no centro da vila de Sintra, tem uma relação com esta que os outros palácios não têm. A directora dá um exemplo: recebeu há uns tempos, das mãos dos herdeiros de um comerciante local, antigo fornecedor da Casa Real, uma recordação curiosa, uma factura, emoldurada, com “contas incobráveis” que vão de 1899 até — note-se a data — ao dia 4 de Outubro de 1910, véspera da revolução republicana que derrubou a monarquia.
Nessa altura, a rainha Maria Pia [mãe de D. Carlos e viúva do rei D. Luís] estava no palácio de Sintra, de onde partiu para o exílio, e, naquela que foi a última encomenda, pediam-se coisas de todos os dias, café, massas, chouriços, batatas.
Mas como se conta, afinal, uma tão longa história? “Tentamos focar mais na história dos séculos XV, XVI e XVIII, porque isso se reflecte também nas colecções, que estão ligadas aos períodos de vivência mais intensa do palácio”, resume Inês Ferro. “D. João I (1385-1433) e D. Manuel I (1495-1521) foram os reis que mais o marcaram, por isso centramo-nos muito no período da expansão, das Descobertas, na ideia do encontro de culturas.”
Perante o grande número de visitantes estrangeiros — que constituem perto de 90% do total de visitantes dos Parques de Sintra — é importante “enfatizar como os portugueses souberam fazer muito boas sínteses em termos artísticos, culturais e científicos”.
Para além das peças de porcelana da China, “que foram introduzidas no mercado europeu inicialmente pelos portugueses”, e do mobiliário indo-português, este palácio mostra essa síntese cultural numa extraordinária colecção de azulejos. “Temos aqui a maior colecção in situ de azulejos hispano-mouriscos, que nos permite contar a história desde o alicatado, sucessor do mosaico romano, ainda feito com fragmentos num puzzle cerâmico, que existe na capela e num dos quartos, até aos grandes painéis figurativos do século XVIII.”
A Capela Palatina, fundada por D. Dinis no início do século XIV, é, precisamente, um dos pontos mais interessantes, porque conjuga a evocação do Espírito Santo nos frescos do século XV com elementos decorativos de influência mudéjar no chão e no tecto, sublinhando mais uma vez essa simbiose cultural.
Para que o público, sobretudo o nacional, tenha razões para voltar várias vezes, o Palácio — que se destaca pelos seus magníficos tectos pintados e pelas duas chaminés brancas — tem sido palco de encenações e concertos com música dos séculos que mais marcaram a sua história.
Castelo dos Mouros
Inicialmente construído pelos muçulmanos no século X (e foram entretanto encontrados vestígios pré-históricos neolíticos que mostram que havia ocupação no local muito antes), o Castelo dos Mouros, por estranho que pareça, faz hoje parte da Sintra Romântica.
Depois da conquista de Lisboa pelas tropas cristãs, o castelo foi perdendo importância e acabou por ser abandonado. Foram essas ruínas que, séculos mais tarde, interessaram D. Fernando II. Tal como a Pena foi construída de acordo com os ideais do romantismo, também no arruinado castelo o rei viu o potencial romântico: ruínas a serem devoradas pela vegetação, penhascos, rochedos. Abriu caminhos e tornou-o num espaço de fruição — gostava, aliás, de subir à posteriormente chamada Torre Real, de onde tinha uma vista privilegiada para poder pintar a Pena.
De tal forma o olhou com olhos de romântico que, quando foram descobertas uma série de ossadas, o rei pensou tratar-se dos restos mortais, já misturados, de cristãos e mouros que ali teriam travado uma batalha. Mandou construir um túmulo em homenagem a estes soldados desconhecidos, juntando os ossos, num gesto simbólico. Acontece que não há registo de qualquer batalha neste castelo, que foi abandonado sem resistência depois de ter chegado a notícia da conquista de Lisboa, pelo que os ossos deveriam ser do cemitério cristão ali existente junto à Igreja de São Pedro de Canaferrim, do século XII.
Já no século XX, o castelo sofreu intervenções da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais e diversas escavações revelaram a existência de uma necrópole medieval cristã e de um bairro medieval islâmico. Recentemente, com a recuperação da Villa Sassetti, adquirida pelos Parques de Sintra em 2011, é possível fazer-se um percurso pedestre que liga a o centro histórico ao castelo e à Pena.
Convento dos Capuchos
Adorar a Deus através da natureza. Era o que pretendiam os frades Capuchos que no século XVI recolheram ao Convento de Santa Cruz da Serra, isolado no meio da floresta e mandado construir pelo conselheiro de Estado D. Álvaro de Castro em cumprimento de uma promessa feita pelo seu pai, D. João de Castro.
O convento, lê-se no mapa disponibilizado na visita, “foi edificado de acordo com uma filosofia de respeito pela harmonia entre a construção humana e a construção divina, razão pela qual o edifício se funde com a natureza, indissociável da vegetação e incorporando na construção enormes fragas de granito”.
Ainda hoje, quem o visita fica impressionado com o tamanho mínimo das celas, pensadas propositadamente para manter os frades em oração. Mas o que é mais interessante quando se olha para os Capuchos pensando em todo o conjunto da Paisagem Cultural de Sintra é perceber que aqui podemos descobrir a antiga floresta da serra — com azevinhos, aveleiras, loureiros, medronheiros, buxos, carrascos, castanheiros — protegida pelos frades durante séculos, até a extinção das ordens religiosas, em 1834, ter deixado o convento vazio.
Alguns anos depois, em 1873, é comprado pela família Cook, proprietária de Monserrate, e em 1949 passa para as mãos do Estado português. Hoje, quando não tem visitantes e regressa à paz para a qual nasceu, continua a ser um local de mistério, de contemplação e de silêncio, onde os homens tentaram chegar mais perto da natureza para se sentirem mais perto de Deus.