Fugas - Viagens

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Brindar o Ano Novo com poncha

Por Ana Cristina Pereira

O Funchal é um dos mais populares destinos de fim de ano. Para além das temperaturas agradáveis, do espectáculo de fogo-de-artifício e da proximidade da floresta exuberante, há agora uma nova dinâmica urbana.

Meta-se pela Rua de Santa Maria, um tapete de seixos, pedrinhas apanhadas nas praias da ilha. E siga por ela fora, mesmo que lhe cheire o escabeche de ovas de espada, o bolo do caco com manteiga de alho ou o milho frito nas esplanadas. Lá ao fundo, onde a rua se cruza com a Travessa dos Escaleres, a “Venda Velha”, recriação de uma mercearia do início do século XX, reduzida a tasca.  

Quem disse que não se pode brindar ao Ano Novo com poncha? No final do século XV já os navegadores portugueses a bebiam para prevenir o escorbuto — 1/3 de aguardente de cana-de-açúcar, 1/3 de mel, 1/3 de sumo de limão. Na versão moderna, a aguardente pode trocar o mel e o limão por sumo de maracujá, de pitanga, de morango, de tomate inglês ou de frutos silvestres.

Qualquer promotor turístico lhe dirá que o espectáculo de fogo-de-artifício desta vez durará oito minutos e será distribuído por 23 postos de queima de fogo instalados na parte alta, na baixa, na orla marítima, no mar — o resultado é único ou, pelo menos, reconhecido em 2006 pelo Guiness como “o maior espectáculo de fogo-de-artifício do mundo”. Não me vou pôr a falar nisso, no ano a mudar na montanha, no buzinar dos paquetes atracados no porto. Nem nas temperaturas amenas — mínimas de 14 graus e máximas de 22 durante o mês de Dezembro. Nem sequer nos coros, nas bandas filarmónicas, nos bailaricos e outras manifestações culturais que tomam a cidade até ao dia de Reis. Vou concentrar-me na Rua de Santa Maria.

O Funchal está a sofrer um processo de transformação semelhante ao de outras cidades europeias. Bares e restaurantes nascem e morrem a um ritmo difícil de acompanhar por quem, como eu, só lá vai uma ou duas vezes por ano. A Venda Velha abriu mais ou menos na mesma altura que a Tasca Literária Dona Joana Rabo de Peixe, um belíssimo lugar para dar duas de treta, ouvir declamar poesia, tomar um copo de vinho português, petiscar qualquer coisa — umas lapas grelhadas com manteiga e limão, um polvo à bomboteiro, uma carne de vinha d’alhos?

“Em qualquer cidade europeia, turística, a zona histórica é aproveitada e esta não estava a ser”, comentou Márcio Nóbrega, dono do Venda Velha, um dos impulsionadores da mudança, num dia em que nos sentámos a comer um hambúrguer de atum. “Só os turistas vinham à Zona Velha. Andavam pela Rua de Santa Maria, pela Rua Don Carlos I, pelo Lago do Corpo Santo. Os restaurantes fechavam às dez da noite. Na Rua de Santa Maria, prostituição e tráfico de droga.”

Tinham todo o sentido, para mim, aquelas palavras do empresário. Quando era miúda, só punha os pés na cidade em caso de necessidade. A viagem de camioneta terminava no campo Almirante Reis, que agora é um jardim. Uma vez, ao passar pela Rua de Santa Maria, perguntei à minha mãe quem vivia naquelas casas velhas, com roupa a secar nas janelas. “Putas”, respondeu-me. “O que são putas?”, perguntei-lhe. “Mulheres que fazem pecados”. Só mais tarde percebi que “fazer pecados” era sinónimo de “fazer sexo” fora do casamento. Naquele momento, fiquei apenas a pensar que em todas as casas com roupa a secar nas janelas moravam “putas”. O Funchal tinha muitas, está bom de ver.

Delírios infantis à parte, o Funchal cresceu a partir daquela rua, paralela ao oceano. As muralhas de protecção da cidade foram erguidas junto ao Atlântico. A cidade desenvolveu-se então para oeste. Já depois do 25 de Abril de 1974, que trouxe a autonomia à região, instalaram-se alguns bares e restaurantes nas proximidades. A zona velha ainda esteve na “moda” alguns anos, mas voltou a perder capacidade de atracção. Foi substituída por outros pontos da cidade. Ficou fora da “fúria” “modernizadora” que se abateu sobre a ilha das últimas décadas. Ali resistem casas centenárias de um, dois ou três pisos, algumas com detalhes arquitectónicos curiosos, como as janelas de guilhotina tripla ou o recorte de varandas de cantaria.

“Percebi que havia um potencial enorme nesta rua no dia em que me sentei na esquina, em frente ao banco, e contei 462 pessoas a passar”, contou-me Márcio Nóbrega. “Foi aí que decidi investir. Com o projecto ‘Portas Pintadas’, criou-se uma nova dinâmica. Os madeirenses começaram a vir.”

Chama-se Portas Abertas, embora seja muitas vezes referido como “portas pintadas”. Resulta de um esforço do artista plástico espanhol José Zyberchema e do antigo secretário regional da cultura, João Carlos Abreu. Desenhos, frases ou esculturas — intervenções de artísticas e de não artistas da ilha e de fora dela — foram cobrindo as portas que dão para as ruas da zona.

“Eu andava a fazer fotografias por aqui”, relatou José Zyberchema, numa tarde em que se dispôs a acompanhar-me. “Todas as fotos que eu fazia eram de coisas deterioradas, estragadas, sujas. Perguntavam-me: porquê fazer fotos a isto? Era o que eu via! Pensei: ‘Há que fazer algo para tornar este espaço mais agradável à vista’. No mesmo Verão [de 2010] em que falei nesta ideia, já se estava a fazer a primeira porta.”

A primeira porta nem foi ali, na zona velha. A primeira foi na Rua da Carreira, no outro lado da cidade. “Tinha marcado vários pontos da cidade como espaços degradados. Não estava ainda decidido que se iria fazer isto aqui”, lembrou. Ali, na Rua de Santa Maria, a primeira porta pintada foi a da Tasca Literária Dona Joana Rabo de Peixe, no número 77, a dia 6 de Abril de 2011, pelo artista Mark Milewski.

O centro histórico é uma galeria a céu aberto. Uma porta com uma porta aberta para a rua; uma porta com uma rapariga nua, de costas, a segurar uma toalha; uma porta com uma rapariga de cabelos esvoaçantes numa paisagem impossível; uma porta com um cavalo-peixe; uma porta com uma banda estapafúrdia; uma porta com uma mulher e o seu cão; uma porta com um super-herói alado.

A porta de José Zyberchema é uma escultura de chaves, que ora parece uma coisa, ora parece outra. Já ali juntou três mil chaves. “Vou fazendo formas diferentes. Vou trocando. As pessoas levam chaves. Não me importo. A mensagem é que toda a porta tem uma chave. Esta tem muitas chaves para que a abra quem quiser.”

O madrileno, de 57 anos, radicado no Funchal, foi legendando cada uma das portas, que já não se esgotam na Rua de Santa Maria, que também se podem ver na rua dos Barreiros, na Travessa das Torres, na Travessa João Caetano, Rua Portão São Tiago, na Calçada, Calçada do Socorro, Largo do Corpo Santo, Travessa do Pimenta, Rua D. Carlos I, Rua do Aspirante Mota Freitas. “Poucas portas estão estragadas”, enfatizou. “As próprias pessoas que moram aqui cuidam das portas. Tomaram-nas como coisa sua. Este projecto não é para turistas. É também para as pessoas que moram aqui.”

O turismo, desde sempre

É uma arte urbana, contemporânea, num cenário centenário. Para andar no Funchal de agora percebendo o Funchal de outrora, pode recorrer ao projecto “History Tellers - walk with real stories”/ Contadores de História – caminhar com histórias reais. A iniciativa é da Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa): um modo de divulgar o património, mas também de fazer dinheiro para ajudar os estudantes mais carenciados. Os cinco euros pagos por cada visitante revertem para um fundo que é usado em bolsas de alimentação (refeições) e bolsas escolares (material escolar).

“Inspiramo-nos um pouco nos jesuítas”, diz Carlos Alexandre Martins, responsável pela divulgação do projecto. A reitoria funciona no antigo colégio dos jesuítas e foi lá que começaram estas visitas guiadas — em português, inglês, francês, polaco e grego. “Recorremos a voluntários da região, alunos da Universidade da Madeira, e a voluntários de fora, através do Serviço Voluntário Europeu.”

Segui o estudante Carlos Diogo por largos, ruas, travessas, becos. E pela sua voz fiquei a saber, por exemplo, que, nos séculos XVI e XVII, na Rua de Santa Maria sobravam oficinas de carpintaria dedicadas a fazer as afamadas caixas-de-açúcar. Ele mostrou-me coisas que eu já conhecia, como a capela do Largo do Corpo Santo, no largo homónimo, tantas vezes usada para amparar homens do mar e suas famílias. E coisas nas quais nunca tinha reparado, como a escultura que recria Maximiano de Sousa, mais conhecido por Max, no Almirante Reis, salpicada pelas excrementos das gaivotas.

Se quiser fazer uma caminhada destas, lembre-se que o ponto de partida é o Armazém do Mercado, com entrada pela Rua do Hospital Velho, a uns minutos do tradicional Mercado dos Lavradores: dois edifícios foram fundidos e transformados num espaço de cultura urbana, com uma componente comercial, que passa por lojas, quiosques, mercadinhos, concertos, workshops.

Márcio Nóbrega também anda por ali. São dele a hamburgueria e restaurante italiano que dão para a outra rua. E o primeiro hostel da ilha, um pouco abaixo, na Rua de Santa Maria. Já foi uma escola primária no Estado Novo. Havia a escola primária masculina e a escola primária feminina. A feminina, claro, era bem mais pequena. Entre ambas havia um muro. O empresário pensou em fazer um clube de gin e um armazém, mas ficou deliciado com o edifício. Recuperou-o. Preservou os pés direitos enormes, os telhados vigados a madeira, os tectos em caixote, típicos da região. Fez um “beer, wine and gin bar”, um restaurante de peixe, marisco e sushi e um hostel. Diz que encontrou alguma resistência. “A Madeira tem aquela imagem do turismo de sandálias, de idosos que não saem dos hotéis”, disse ele, sem esconder desgosto. “Também tem turismo ligado ao desporto de aventura. Esperemos que a abertura seja para aí. Havia uma acomodação…”

O turismo, na Madeira, é quase tão antigo como o povoamento. Já no século XVII se falava em “turismo de quarentena”. A ilha foi uma instância de repouso de funcionários ingleses vindos da Índia, necessitados de se adaptarem ao horário e ao clima da Europa. E também um sítio para os passageiros esticarem as pernas. Dizem os estudiosos que a actividade mais a sério começou já no final do século XVII, com o “turismo terapêutico”. Por ali passaram figuras da cultura, como António Nobre e Júlio Dinis, e militares, nobres, como a imperatriz austro-húngara Sissi ou a imperatriz do Brasil dona Amélia. O chamado turismo industrial é coisa do século XX. Desenvolveu-se, sobretudo, a partir da década de 50, com a inauguração do aeroporto, em Santa Cruz. Isto não me saiu do nada. Andei a ler História da Madeira, de Rui Nepomuceno.

A Madeira guarda lugares de uma beleza extraordinária. Surpreende-me sempre, mesmo o concelho onde cresci, São Vicente. Ainda há pouco o confirmei, com a Madeira Expedições: a ideia era explorar o Norte da ilha, num todo-o-terreno, com toda a mestria de guia de montanha. Nada me maravilhou tanto como o Folhadal (assim chamado pelo elevado número de folhados), a uns 700 metros de altitude, no meio da exuberante floresta, no vale de São Vicente.

Fizemos um troço da Levada Velha do Caramujo, desactivada há muito, pelo menos desde que foi construída a Levada do Norte. Entrámos acima do sítio das Ginjas, na freguesia de São Vicente, e caminhamos em direcção à Encumeada. Não nos cruzámos com vivalma. Aquela rota não é tão conhecida como outras, caso do Caldeirão Verde, do Rabaçal, das 25 Mil Fontes, da Levada do Rei. Os líquenes, nos taludes, nos troncos e nas rochas, testemunham a inexistência de poluição naquele lugar. Avistamos um enorme pombo-trocaz, espécie endémica deste ecossistema, considerado o grande semeador da laurissilva, floresta relíquia. Vimos árvores — barbusano, o loureiro, o til e o vinhático, o folhado, o pau-branco e o mocano — que mais pareciam monumentos. Como não fizemos o percurso completo, ainda tivemos tempo para fazer um pequeno troço da Levada dos Tornos, que atravessa grande parte da Ilha, levando água do Norte para o Sul. Mais uma razão para voltar. Há sempre mais razões para voltar.

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