Há um enorme mapa-mundo na parede. Os continentes estão “fora do sítio”, transviados — África à esquerda e as Américas à direita. Ao centro, a imensa Ásia. O hábito automatizado do olhar faz o viajante ocidental perder-se por uns instantes entre os meridianos. É a este mapa que o forasteiro deve dar atenção, esquecendo o que trouxe de casa, e de pequenino decorou, mais do que aprendeu. E é neste mapa que tem de naufragar.
As agendas das partidas de barco para Lombok e daí para a ilha das Flores não têm boas notícias. O mesmo para Ambon, o mesmo para as ligações aéreas para Kupang, para Labuanbajo. Não por causa de qualquer monção, que não é agora o seu tempo; estamos em Dezembro, o Natal está à vista e há um mar de gente a precisar de navegar para as ilhas “mais cristãs” da Indonésia.
No século XV, quando os navegadores portugueses começaram a frequentar este vasto arquipélago, havia um punhado de mapas, mas neles devia faltar metade do mundo. Talvez não neste caso, já que o mapa do piloto Francisco Rodrigues, que acompanhou o navegador António Abreu às Molucas, revelava impressionante descrição pormenorizada da região. Fosse o inverso, não se deixariam os recém-chegados tomar por hesitações depois de tanta navegação: às Molucas, a Sulawesi, as antigas Celebes, e às Flores, foram os portugueses pelas especiarias e pela madeira de sândalo e nesses afazeres se ativeram com tenacidade. E com os comerciantes seguiram missionários, sem os quais os indonésios das ilhas do Mar de Banda não acudiriam agora ao reencontro anual com as famílias e às celebrações natalícias. Santa aliança, assim o intuiu o Padre António Vieira: “Se não tivessem ido os comerciantes em busca de tesouros na Índia Oriental e Ocidental, quem teria então transportado os pregadores que levavam consigo os tesouros celestiais? Os pregadores levaram o Evangelho, e os comerciantes levaram os pregadores.”
Fruto de migrações milenares e de influências ocidentais, o Sudeste Asiático há muito vem realizando o destino universal de miscelânea de povos e de culturas — e a miríade de pequenas comunidades cristãs, como, por exemplo, a do Bairro Português de Malaca, entre vastas maiorias religiosas que povoam a região, é apenas um dos sinais. Como o é, também, o Natal, que é celebrado um pouco por todos os quadrantes do Sudeste Asiático, da Tailândia ao Vietname, do Camboja à Indonésia. E em alguns países, como na islâmica Malásia, o dia 25 de Dezembro é, mesmo, feriado nacional. Quanto à face comercial e profana das festividades, ela corresponde ao espaço social e cultural em que as diferentes comunidades religiosas se encontram numa comum celebração.
Há cenários paradigmáticos em Malaca, a velha possessão portuguesa dos séculos XVI e XVII, que se repetem noutras paragens da Malásia: na mesma rua, ou num pequeno bairro, vizinham-se um templo taoista, uma mesquita, um espaço budista, uma igreja cristã, um santuário hindu. Esta convivência tem uma infinidade de outros timbres e impregna, muitas vezes de forma subtil, a vida social da Malásia.
Avancemos pela Jalan Bunga Raya, uma das mais animadas ruas comerciais de Malaca, ao longo de arcadas tão úteis para as chuvas torrenciais da monção como para o sol da abafadiça península malaia. Aí se sucedem, sem pausa, lojas e lojas chinesas com toda a sorte de mercadorias. À porta de uma delas, Mr. Cheng oferece-me um cigarro. É o proprietário. Tem mais duas lojas na mesma rua — a que se avista dali, a uma dezena de metros de distância, fornece artilharia ornamental para o ano novo chinês. Um pouco adiante, a Red Ant Fashion tem três ou quatro manequins à porta vestidas com minissaias e coroadas por barretes de Pai Natal.
Mr. Cheng é um homem prático e privilegia a harmonia eleita pelos ensinamentos de Confúcio: “Esta loja só abre nesta altura do Natal, vem cá muita gente comprar árvores e lâmpadas.” E presépios – as prateleiras estão cheias deles, nem é preciso entrar para atestar a variedade de feições e tamanhos. Não é improvável que alguns dos que enfeitam os pátios das casas no Portuguese Settlement, nos arrabaldes de Malaca, em Ujong Pasir, tenham saído da loja de Mr. Cheng.
“Selamat Hari Krismas” é a saudação natalícia na Malásia, embora o internacional “Merry Christmas” seja mais popular em algumas zonas do que a expressão em bahasa. Nos centros comerciais e nos hotéis, um pouco por toda a parte, o acolhimento é semelhante: canções e árvores de Natal, luzes e luzinhas catrapiscando as cores num ambiente feérico e de ardente consumismo. Em Kuala Lumpur, na Bukit Bintang, uma das ruas mais nataliciamente iluminadas da capital, dotada de milhares de lâmpadas coloridas a tremeluzir por toda a parte, o centro comercial Pavilion, um dos mais luxuosos da cidade, traja sofisticadas decorações executadas com o que parece ser tecnologia de ponta nesse domínio. O efeito é o de imersão no cenário de um conto de fadas. Tal como no Surya, o seu congénere das ilustres torres gémeas da Petronas, toda a gente se faz fotografar ao lado do ícone mais emblemático da época — a árvore de Natal. Num recanto do grande átrio do Pavilion, um grupo coral de moçoilas vestidas de Pai Natal “swinga” um animado Jingle Bells.
As celebrações entre os cristãos, que representam quase 10% da população da Malásia, maioritariamente muçulmana (sunita), não são muito diferentes das de outras comunidades semelhantes noutras latitudes — reina aqui uma certa comunhão cultural. Os mais religiosos acorrem à missa do galo, há troca de presentes, brinda-se com vinho. E não raro são endereçados convites a amigos de outras comunidades religiosas para o banquete familiar no dia de Natal.
O clima leva o Natal para a rua
Tal como acontece na Malásia, a Indonésia, o mais povoado país muçulmano do mundo, consagra constitucionalmente a liberdade de culto — embora no arquipélago apenas seis religiões sejam reconhecidas. O islão (sunita) é a religião oficial, que coexiste com uma série de outros cultos minoritários. No arquipélago indonésio, um autêntico arco-íris religioso, há, mesmo, ilhas em que as religiões que aí são maioritárias têm reduzida expressão em termos nacionais. A ilha das Flores é maioritariamente cristã e em Bali a maioria da população é hindu, por exemplo. Noutras regiões os números oficiais apontam percentagens extremamente variáveis de cristãos — entre menos de 1% e os mais de 80% de algumas áreas de Kalimantan, a sul de Bornéu.
Durante a colonização holandesa, que sucedeu à presença portuguesa em algumas ilhas, a influência católica regrediu e deu lugar à do protestantismo, que em conjunto com o catolicismo perfaz cerca de 10% da população. Mas a acção evangelizadora portuguesa prevaleceu aqui e ali, como nas comunidades das ilhas do Mar de Banda, em Sulawesi e nas Molucas, e, também, em Timor Ocidental e na ilha das Flores, onde as celebrações são muito expressivas e as paisagens se configuram com inúmeras igrejinhas de arquitectura mestiça, marcadas pela presença de elementos da arquitectura popular local. Em Bali, são curiosíssimas essas fusões arquitectónicas, que mostram a forte influência hindu nos elementos estruturais e decorativos. O templo dedicado a São José, em Denpasar, lembra muito bem, na cor, na representação das figuras do panteão cristão e nas linhas da torre a arquitectura religiosa hindu.
Nas grandes cidades indonésias, o cenário é semelhante ao que encontramos por quase todo o Sudeste Asiático, árvores de Natal cintilantes nos centros comerciais e muitos sinterklas — o Pai Natal de influência linguística holandesa. No vocabulário natalício damos também com sinais da herança cultural lusitana: o internacional Merry Christmas tem no arquipélago o equivalente Selamat Hari Natal, os fiéis deslocam-se às igrejas para as cerimónias e para a misa do galo, enquanto as crianças entoam as canções ensaiadas na sekolah e sonham, presumivelmente, com as bonekas e bolas solicitadas ao Pai Natal. Fogo-de-artifício na véspera ou no dia de Natal, mensagens para os familiares distantes, orações em casa ou nas igrejas, cânticos e danças (como a toja bobu, nas Flores), a par da representação de pequenas peças de teatro por jovens e crianças e da gastronomia típica da época, são alguns dos aspectos que caracterizam as celebrações na Indonésia. À mesa, além dos doces, reina um caldo de feijão e a carne de porco grelhada — apesar da sua interdição para a maioria muçulmana, é um tipo de alimento assíduo nas dietas de outras comunidades religiosas.
Em muitos lugares do arquipélago, enfim, os últimos dias do ano não diferem muito dos que se vivem noutras latitudes, a não ser em “pormenores” como o clima, que convida a aprazíveis passeios após a Consoada, transportando-se para a rua a animação e um pouco do fervor religioso da época. E sempre achamos coisas familiares, como as tão internacionalizadas canções de Natal Jingle Bells e Silent Night, umas vezes em inglês e outras, quase sempre, aliás, na versão local em bahasa. E para os cerca de 25 milhões de cristãos indonésios há, ainda, transmissão radiofónica e televisiva de concertos de Natal, além da emissão pela RTVI, uma estação de televisão estatal, de algumas das celebrações.
Missa do Galo em Banguecoque
Na Tailândia budista, o Natal tem essencialmente uma dimensão de evento comercial. Mas mesmo em Banguecoque, onde as vistosas decorações natalícias lembram as de Kuala Lumpur, há minorias cristãs a festejar o Natal — com uma nota relevante, que é a de a introdução do cristianismo no antigo reino do Sião ter registado, também, intercessão lusitana. Os portugueses chegaram à capital, Ayutthaya, no início do século XVI e foram muito bem recebidos, tendo-lhes sido permitido, mesmo, edificar igrejas e praticar o seu culto, em flagrante contraste com a intolerância que vinham praticando na Índia e noutros locais com crenças religiosas que não fossem a cristã. Conta Fernão Mendes Pinto que o rei do Sião “lhes deu licença para que pudessem em qualquer lugar do seu reyno fazer igrejas em que o nome do Deos Portuguez fosse adorado (…). E destas cousas & de outras muytas desta maneyra que pudera contar, se vé claramente quão grandioso & bem inclinado por natureza era este principe, inda que era Gentio”.
A destruição de Ayutthaya, no século XVIII, na sequência de uma das muitas guerras com o arqui-inimigo reino de Pegu, levou para Banguecoque os portugueses que ali viviam e os siameses convertidos ao cristianismo pelos missionários católicos. Os seus descendentes, alguns conservando, ainda, apelidos lusos, celebram o Natal, hoje, em três igrejas da capital tailandesa, as da Imaculada Conceição, de Nossa Senhora do Rosário e de Santa Cruz, esta última situada na zona de Thonburi, a dois passos do rio Chao Phraya.
Entre a igreja de Santa Cruz e o Wat Kalayanamitr, um templo budista, estende-se um aglomerado de casinhas modestas, em madeira, imersas num labirinto de estreitas ruelas, muito tipicamente tailandesas, um prodígio de sobrevivência na grande selva de betão e asfalto que (também) é Banguecoque. É aí que vive a comunidade católica que todos os anos, em Dezembro, e depois de uma Consoada de iguarias orientais, acorre à Igreja de Santa Cruz para assistir à tradicional Missa do Galo.
O que dizem os presépios de Malaca
À entrada do bairro português de Malaca, onde vive uma comunidade de descendentes da gente lusa que ali esteve nos séculos XVI e XVII, há um cartaz anunciador de boas-vindas: “Selamat Datang ke Medan Portugis - Welcome to the Portuguese Settlement”. Quando se aproxima o final do ano, o viajante é recebido, também, com mensagens que fazem alusão à época — e não apenas em inglês ou em bahasa. No meio de uma panóplia de luzes e decorações natalícias, na Medan Portuguis, somos recebidos com um “Bong Natal & Bong Anu Nubu”, expressão em crioulo português, linguarejar ainda falado por alguns membros de gerações mais velhas do bairro, mas — tal como outros elementos da cultura da comunidade — em vias de extinção.
As celebrações de Natal desta pequena comunidade católica são tão famosas localmente quanto as festas dedicadas a São João e São Pedro. A todas acorrem milhares de visitantes, entre os quais muitos malaios de outras comunidades e, ainda, familiares emigrados em Singapura e na Austrália. A atmosfera é a de uma animadíssima festa popular, que se estende noite dentro — com fogo-de-artifício, gente mobilizada para batalhas de neve artificial e uma iconografia delirante que exibe renas, bonecos de “neve” e um ubíquo Pai Natal insuflável, numa folia que se tornou importante atracção turística de Malaca renomada a nível nacional.
Não faltam, naturalmente, e um pouco por toda a parte, nos quintais e nas ruas com nomes portugueses — Jalan Sequeira, Jalan d’Albuquerque, Jalan Teixeira —, árvores de Natal. E presépios nos pátios e jardins, que além de contarem a história habitual podem também ser notados como um signo do êxito, ainda que imperfeito, que a Malásia alcançou na configuração de uma sociedade multicultural e multirreligiosa.
O mapa infinito
O Oriente, de onde vem tudo, a luz e a fé, como escreveu Pessoa, é tudo menos um ponto cardeal de semânticas obedientes, um universo domesticável por rótulos turísticos. Faz-se cego o viajante que o ignore e consigo leve a carapaça de (pre)conceitos com que rege a sua relação com os demais mundos em que os outros se movem e vivem.
Viajar num tempo em que tudo parece estar tão facilmente ao alcance da mão arrisca-se frequentemente a metamorfosear-se dramaticamente no seu contrário: há deslocação física, mas os sentidos autóctones do que se vê permanecem inapreensíveis. Um exemplo disso é este Sudeste Asiático, que se enreda cada vez mais nessa teia de paradoxos. E, no entanto, quanto potencial na diversidade daqueles onze países, se deitássemos fora os guias de viagem — que são tantas vezes a cortina que revela e logo oculta. Teríamos ao alcance um mapa infinito de vagabundagens não fiscalizadas e uma maior intimidade com a vida espontânea de gente real, teríamos, enfim, um simulacro da liberdade impossível.
Um outro Sudeste Asiático: os lugares onde “não há nada”, monumentos ou cenários bonitos, apenas gente absorvida nos seus afazeres; o litoral leste da península malaia e as praias quase desertas onde ao fim do dia se passeiam moçoilas trajadas de véus e sorrisos, as ilhas desconhecidas ao largo de Sihanoukville, no litoral cambojano do Golfo da Tailândia, o semblante distante dos Budas de pedra de Sukhothai, os arrozais em terraços no interior do Bali, na Indonésia, ou nas serranias de Sapa, no Norte do Vietname, os templos pré-angkorianos do norte do Camboja, os céus de azul-cobalto sobre um mar de palmeiras do outro lado das janelas panorâmicas do comboio expresso de Java a Surabaia, a ilha de Don Khong, no meio de um Mekong caudaloso, no sul do Laos, com os seus arrozais e pescadores lançando redes ao fim da tarde, o súbito sorriso da senhora das papaias no mercado de rua de Chiang Rai, uma curva do rio Perfume iluminada pela imensa fogueira do crepúsculo em Hué, no Vietname, num caminho de montanha onde o tempo se transmuta em cansaço e serena alegria.