Fugas - Viagens

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Miradouros: Cabo Espichel, o lugar dos deuses

Por Margarida Paes

Na série de 20 miradouros de Portugal, partimos para Sesimbra para uma visão sublime.

Para cima, o perfil escuro de Sintra corta o céu brilhante e meio rosa. À nossa frente e para sul, o horizonte em linha pura aguarda a queda do sol naquele dia tão limpo. A nossos pés, placas verticais de pedras imensas encostadas umas às outras eram batidas pelas ondas, pela espuma e pela força do mar. Era o oceano Atlântico azul infinito, e temeroso para os povos vindos do Mediterrâneo.

Senti que este era um sítio dos deuses, ou melhor, um ponto em que os deuses se ligavam aos homens, era um lugar sagrado como o temenos grego, marcado no terreno por muros, dentro dos quais se construíam os templos para onde os homens convocavam os deuses. O cabo Espichel é também o Finisterra dos romanos, o fim da terra e o princípio do mistério do mar. Não admira que este miradouro natural tenha sempre suscitado práticas religiosas que deixaram marcas construídas no planalto ventoso que cai a pique sobre o mar.

No cabo Espichel, durante a Idade Média, surge um culto à Nossa Senhora da Pedra Mua com início conhecido de peregrinações em 1366. A palavra mua é uma corruptela da palavra mula, que vem da seguinte lenda: “Dois idosos, um de Alcabideche e outro da Caparica, sonharam com uma luz a brilhar no cabo Espichel que a Virgem lhes recomendara seguir. Ambos se puseram a caminho seguindo a misteriosa luz que continuava a brilhar todas as noites. Quando chegaram ao cabo ficaram maravilhados ao verem a imagem da Virgem Maria montada numa mula que subira a escarpada arriba deixando nas pedras as marcas das suas patas.” Destes tempos resta-nos a ermida da Memória (1428) de arquitectura mudéjar, enigmática marca islâmica que foi ficando neste promontório sagrado.

A subida que podemos fazer hoje à “escarpada arriba” a norte do Cabo revela-nos a razão desta atribuição divina que deixou “nas pedras as marcas das suas patas”. As placas calcárias quase verticais desta elevação foram escorregando e numa delas apareceram pegadas de dinossauros perfeitamente marcadas e visíveis que foram atribuídas à mula que transportava a Nossa Senhora até ao alto do cabo Espichel. Quase pedimos desculpa por estragar o mito e o culto com esta trivial explicação científica, mas como só no século XX foram identificadas os rastos dos dinossauros, durante seis séculos o culto foi enraizando e tomando conta do lugar. O culto a Nossa Senhora do Cabo baseia-se num sistema anual de rotação da imagem de Nossa Senhora, que passa um ano em cada uma das 26 freguesias do Círio Saloio, mantendo-se assim o “giro das freguesias” que se encontravam no cabo Espichel para a entrega da imagem e alfaias, durante a semana da Ascensão. Sacralizou-se assim este santuário e nele restam as marcas construídas e paira a memória de uma devoção sentida e muito festejada.

Para louvar a Deus, pedir e agradecer à Nossa Senhora do Cabo, foram sendo ritualmente mantidas peregrinações que traziam a imagem de Belém, atravessavam de barco e faziam em procissão todo o areal da Costa da Caparica. Subiam ao cabo e as orações e músicas acompanhavam-se de grandes festas profanas com bailes e romarias, touradas e até óperas.

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