Fugas - Viagens

  • António Sachetti
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Miradouros: Cabo Espichel, o lugar dos deuses

De toda essa efusão humana ficaram construções sólidas e de uma simplicidade desarmante pela força que a arquitectura popular consegue concentrar. Dois corpos paralelos de um andar, suportados por arcarias de pedra, deixam a meio o vazio de um terreiro amplo — o arraial — rematado pela fachada da igreja barroca. Felizmente que os arquitectos dos anos 1950/60 fizeram o inquérito e o inventário da arquitectura popular pois registaram, desenharam e ajudaram a preservar esta arquitectura sem arquitectos, esta vasta categoria de construções “anónima, espontânea, indígena e rural” e tão bem adaptada ao local. Servia este renque de casas para hospedar os peregrinos que todos os anos os círios da região saloia organizavam para vir pedir a bênção da Nossa Senhora do Cabo, receber e entregar a sua imagem e depois festejar uns com os outros, neste local sagrado.

A partir de 1701, quando o Rei D. Pedro II se vem juntar aos peregrinos e reconstrói a primitiva ermida do tempo de D. Manuel, torna-se este santuário no primeiro centro de peregrinações que, mais tarde, o Bom Jesus de Braga e o santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, prosseguem. A afluência ao santuário aumenta e durante o século XVIII os reis foram investindo e melhorando este local de culto que abrangia toda a paisagem. Para melhorar as condições do acampamento, e com o apoio do Rei, inicia-se a construção das hospedarias que vão depois sendo construídas por privados, obedecendo às volumetrias iniciais e prolongando a fiada de casas a sul e a norte ao longo dos anos de 1715 e 1760, numa obra colectiva e vernacular que ficava sob tutela dos Círios Saloios.

A originalidade desta devoção reside no facto de juntar as 26 freguesias saloias em redor de um lugar e de uma imagem de culto e de ver a Nossa Senhora mudar de freguesia cada ano, sendo o local e o momento da entrega exatamente o cabo Espichel e a festa da Ascensão. Chegadas à praia dos Lagosteiros — que se vê lá de cima do cabo — começavam a subida pelas veredas de calhaus soltos acompanhando a imagem de Nossa Senhora montada na mula, até chegarem ao arraial. Este sacrifício era largamente recompensado com a chegada à festa, onde milhares de pessoas acorriam para três dias de descontracção e de alegria. Antes de entrar na igreja, a imagem da Senhora rodeava três vezes o arraial, abençoando-o como acontece em tantas outros locais de culto.

A chegada dos peregrinos ao Cabo Espichel podia também ser por terra, atravessando a península de Setúbal como o fazemos hoje, e tomando a estrada ventosa e deserta que leva ao cabo.

D. João V e D. José adicionaram peças de arquitectura erudita à popular dos peregrinos. A casa de água abobadada e construída num ponto alto em 1770 vem acentuar o efeito de perspectiva do arraial, prolongando-lhe o eixo e criando a tensão necessária entre o vazio do arraial, a igreja a poente e a casa da água a nascente. O eixo é depois marcado pelo cruzeiro, reforçando o efeito de praça aberta num dos lados, qual jogo barroco de perspectivas e distâncias marcadas pelo volume solto da casa de água e da sua escadaria. A composição eleva toda a simples construção das alas da hospedaria a um nível de erudição que Jonh Martin associou à fantástica praça do Capitólio na Roma de Miguel Ângelo.

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