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Esquiar e degustar em Itália

Por Miguel Pires

Os restaurantes das pistas de esqui não têm de ser necessariamente ruins. Foi a pensar nisso que na Alta Badia, no norte de Itália, foi criado um programa ideal para quem não prescinde das actividades da neve e da boa gastronomia.

Percorrer horas e quilómetros de pistas com esquis nos pés,requer uma pausa a meio do dia para recuperar forças num dos restaurantes de montanha. Normalmente não se exige muito. Entra-se e pede-se o básico: uma sanduíche, um hamburguer ou uma massa. No fundo, procura-se o mais conveniente e não se dá demasiada importância se é bom ou ruim. A ideia é absorver combustível para repor energias e regressar rapidamente à viciante rotina de prosseguir montanha abaixo. Mas terá de ser sempre assim? E se o fã do fast ski for um adepto do slow food e quiser usufruir de um momento mais calmo e gastronómico à mesa, sem que a alternativa envolva uma soma avultada num dos exclusivos restaurantes de Courchevel 1850, Zermatt ou St. Moritz?

Deve ter sido o que pensaram os responsáveis da região italiana da Alta Badia, no coração dos montes Dolomitas (Património Natural da UNESCO), província de Bozano-Alto Adige, ao criarem o programa “A Taste of Ski”. O plano é simples: convida-se um conjunto de chefs de topo de Itália e pede-se-lhes que desenvolvam um prato que conste em cada um dos refúgios de montanha da estância. O programa tem início em Dezembro, na abertura da época de neve, com a presença dos chefs. Nesse dia há mesmo um ski safari com os clientes a percorrerem os restaurantes aderentes. Porém, os pratos de cada cozinheiro mantêm-se nos dias e meses seguintes, até ao fecho da temporada (3 de Abril), para que possam ser apreciados pelos milhares de turistas que esquiam nas estâncias da Alta Badia.

Este ano foram convidados os chefs do sul do país, da Câmpania à Sicília.  Por exemplo, Gennaro Esposito, do restaurante Torre del Saracino (Vico Equense) oferece a sua versão de ravioli alla genovese, enquanto Ernesto Lacarinno, do mítico Don Alfonso 1890, (Sant’Agata Sui Due Golfi), propõe uma mousse de atum fresco com geleia de limão e salsa. Aos homens do sul juntam-se igualmente algumas das estrelas locais, como Norbert Niederkofler, do restaurante St. Hubertus (Hotel Rosa Alpina, São Cassiano), ou Nicola Laera, do La Stüa de Michil (Hotel La Perla, Corvara). No total são 14, tantos como os restaurantes dos refúgios de montanha que alinham na ideia.

O envolvimento de cozinheiros com estrelas Michelin neste programa tem outro mérito: o de dar visibilidade à gastronomia local (tradicional ou mais contemporânea) e a uma cozinha de padrão bastante acima à do comum fast food de montanha habitual. Por exemplo, no refúgio Col Alt, que visitámos, no cimo da montanha (a 1980m), em Corvara, é possível experimentar, por 11 euros, a proposta de Niederkofler, uma reconfortante e requintada sopa de vinho com bruschetta de batata e truta alpina marinada. Depois podemos optar pela a interessante oferta da casa e desfrutar de um tártaro de vitela, uma barriga de porco com puré de limão, ossobuco de gamo, ou uns canederli, ou knödel, um género de almôndegas feitas com pão embebido em leite e misturado com ovo, queijo, speck e um pouco de farinha. E há ainda os turtres, uma espécie de pastéis de massa tenra que se comem com sopa de cevadinha, já para não falar da doçaria, do strudel de maçã ao krapfen (o equivalente à nossa bola-de-berlim).

Dá para perceber, pelo tipo de pratos e pelos nomes, que, além de o receituário ser muito influenciado por uma série de ingredientes e de receitas típicas de montanha, existe, igualmente, uma grande influência da cozinha germânica. É que, durante muito tempo, até à Primeira Guerra Mundial, a região do Alto Adige, também conhecida por Südtirol (Tirol do Sul), pertenceu à Áustria e ainda hoje a língua falada por quase dois terços da população local é o Alemão.

Chefs com ética

Nascido e criado na zona, Norbert Niederkofler, não é apenas o chef mais cotado da região, mas também um activista e defensor acérrimo da cultura, dos ingredientes e da cozinha local. Em Janeiro último o italiano trouxe à Alta Badia 30 chefs de todo o mundo, bem como produtores, jornalistas de gastronomia e outras pessoas ligadas ao ramo. O objectivo: discutir assuntos relacionados com as regiões, o ambiente, a sustentabilidade e a alimentação nas suas diversas formas. Durante quatro dias de conferências e mesas redondas escutaram-se e partilharam-se ideias, experiências e preocupações. 

 Falou-se muito de pequenos gestos que podem ajudar a mudar comportamentos. Por exemplo, o brasileiro Rafa Costa e Silva do restaurante Lasai (Rio de Janeiro) levantou questões pertinentes com que se defronta na sua cidade, como o lixo: “Não faz sentido ter uma batata perfeita e produzir demasiado lixo, sobretudo sem saber para onde vai.” É que, segundo o chef, “ao contrário da Europa aqui este não é ainda um problema resolvido”. 

Por sua vez, o português Leonardo Pereira, cujas as criações têm uma forte componente vegetal, mencionou querer continuar a trabalhar as plantas nos diferentes estágios (raízes, caules, frutos, sementes, etc) e chamou à atenção para a importância de estimular a diversidade. “Se formos a uma loja ou mesmo a um mercado local vamos encontrar apenas um ou dois tipos de tomate ou de abóbora”, alertou Pereira, que conta abrir o seu novo restaurante em Lisboa, ainda este ano. “Eu quero ter 20 tipos diferentes e utilizá-los em diversos estágios do seu crescimento”.

Yoji Tokuyoshi, de Milão, falou sobre um gesto que o marcou, recentemente, quando regressou ao Japão. A sua mãe, que nunca cozinhou porque trabalhava fora o dia inteiro, tinha-lhe preparado uma saborosa salada com vegetais produzidos no próprio jardim. “Aos 64 anos a minha mãe continua a trabalhar mas ganhou consciência que era importante produzir coisas que come. Este gesto dela inspirou-me. Não é só o que dás aos teus clientes, mas também a forma sustentável como se produz o que lhes dás.”

Mas nem todos os presentes estiveram com palavras bonitas. Davide Scabin, um dos mais respeitados chefs italianos, questionou alguns temas que estão na ordem do dia, como a noção de quilómetro zero. “Cada vez ouço mais as pessoas a perguntar se tenho horta, mas não oiço perguntar se tens um carro eléctrico, ou se produzes energia a partir do teu lixo.” O chef do Combal.Zero (Turim) refere que se deve encorajar a produção local mas que, sendo italiano e tendo milhares de produtos disponíveis, não consegue pensar em usar apenas alguns. “Para mim quilómetro zero é Itália, os produtos de todas as regiões de Itália.” 

Num dos debates alguém referiu que os restaurantes de topo são apenas um nicho mas que são, igualmente, criadores de tendências, pelo que podem ajudar a mudar comportamentos. Porém, quando se falou em sair do encontro com um compromisso por escrito, ninguém tomou a iniciativa. Niederkofler parecia adivinhar a questão quando escreveu no programa do evento: “Esta edição zero do Care’s é apenas o ponto de partida e é provável que haja algumas afinações a fazer.”

Informações

A região dos Dolomitas fica situada a sul da cordilheira dos Alpes e estende-se por três províncias do Norte de Itália. Entre elas, fica Bolzano-Alto Ádige (ou Tirol do Sul ), que inclui a zona de Alta Badia e as localidades de Corvara, Colfosco, La Villa, San Cassiano, Badia e La Val. A Alta Badia faz parte da maior cadeia coberta por um único passe de esqui, o Dolomiti Superski, que inclui 450 meios mecânicos e serve 1220km de pistas, dos quais 500km na Alta Badia.

Guia prático

Como ir
A TAP voa directamente para Veneza (três horas de voo) e a partir daí é possível apanhar um transfer de autocarro partilhado para uma das estâncias da Alta Badia.

Onde ficar
Há cerca de 18 mil camas na zona da Alta Badia, entre apartamentos e hotéis de uma a cinco estrelas, pelo que há muito por onde escolher. Por exemplo, pode optar por um quarto numa camarata a 2752m de altura, no Rifugio Lagazuoi, por umas dezenas de euros, ou no Relais & Châteaux Rosa Alpina, por umas centenas.

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