Esqueça a praça Jemaa el-Fna. Esqueça o seu espaço aberto, os restaurantes montados ao ar livre, os macacos, as cobras e as tatuadoras de hena, os músicos e contadores de histórias. Atreve-se a seguir o conselho? Atreva-se. É um virar de costas definitivo ao local mais icónico de Marraquexe, a cidade vermelha de Marrocos? Não. É só um até já, que logo voltamos.
Porque antes queremos ver Marraquexe de outro ângulo. Fugir ao que todos vemos quando nos embrenhamos insaciáveis nas ruas estreitas da sua medina, tão povoadas pelos mais diferentes e coloridos produtos como por motas e bicicletas que surgem de onde menos se espera. Queremos um oásis na cidade velha, um sítio de onde possamos ver o movimento, sem sermos assoberbados por ele. Um local onde a vida flua sem a nossa interferência. Queremos deixar a rua. Olhe para cima, é aí que nos vai encontrar.
Chegamos à Praça Rahba Lakdima, ou Praça das Especiarias, sem a termos procurado. Ela surge-nos, sossegada e colorida, animada e calma, à saída de um dos souks que enchem a medina. Há vendedores sob guarda-sóis, junto a bancas de chapéus de várias cores, cestos de vime, sacos de especiarias, dromedários de brincar, tajines prontas a usar na confecção do delicioso prato com o mesmo nome, doces a lembrar as delícias turcas, de comer e chorar por mais. Algumas mulheres moem, no chão, um pó verde. O que é?, perguntamos. “Hena”, respondem-nos. Há poucos turistas, poucos compradores. O caos que faz parte do encanto de Jemaa el-Fna não chegou a esta praça mais pequena e abrigada, protegida no coração da medina.
Num dos lados da praça, o Café des Épices desenrola-se em vários pisos, terminando num terraço no topo, para o qual subimos, à procura de um lugar com vista perfeita sobre a praça. Encontramo-lo com facilidade. Descobrimos a geometria do mercado montado na Rahba Lakdima, mas descobrimos muito mais. Entre um chá de menta e um sumo de laranja, erguemos o olhar para os telhados à nossa frente e para a cordilheira Atlas, lá atrás, perfeitamente visível e coberta com a neve dos últimos dias.
Ficamos ali, braços apoiados na varanda do café, a deixar que Marraquexe se entranhe. O colorido do mercado, a protecção longínqua do Atlas — está tudo ali, como um país de encantar em ponto pequeno. Mas está mais. Estão os telhados das casas em frente, mal cobertos com placas de zinco colocadas às três pancadas, os inúmeros pratos da televisão satélite e a roupa a secar noutros terraços não muito distantes. Ali está a cidade de que nos tinham falado mas que parece irreal ao nível da rua. A velha cidade onde vive gente. O centro histórico de mansões e casas pobres. A cidade que, finalmente, começa a perder a sensação que nos acompanhara desde que aterráramos — a de que não estávamos num sítio real, mas numa espécie de limbo encantado, montado perpetuamente para nos transportar a um mundo que já não existe.
Gostamos desta Marraquexe e queremos ver um pouco mais dela. Continuamos a caminhar um pouco ao acaso, procurando ruas com menos gente, em busca desta nova realidade descoberta e que não queremos que se perca já, na confusão chamativa dos vendedores de peles, vidros, artigos em metal, calçado contrafeito, bijuteria, cremes milagrosos e especiarias. Sob um dos arcos vermelho-rosa da velha cidade vemos desaparecer uma mota com dois passageiros. Não há gente nem lojas. Seguimos por ali.
Durante alguns minutos caminhamos por ruas desertas, de velhas fachadas onde, de vez em quando, sobressai uma campainha e a indicação de que estamos perante um dos muito riads da cidade. De repente, surgem dois casais de turistas, cabelos molhados pela passagem por algum hamman, e desaparecem por trás de uma porta pesada. Mais algum tempo e passa um guia, seguido por um casal jovem, a caminho de mais um riad neste emaranhado de ruas vazias dos sons e cores da Marraquexe dos viajantes e turistas. Seguros de estarem em casa, sem a agitação que se agiganta a apenas algumas ruas de distância, dois miúdos riem-se jogando à bola.
Percorremos várias destas ruas, confiantes de que, algures lá à frente, há-de haver uma saída. Mas, afinal, nem todas as ruas da medina de Marraquexe vão ter a algum lado e, depois de esbarrarmos por duas vezes em muros sem saída, acabamos por fazer o caminho inverso, saindo deste nicho sossegado para as ruas de comércio.
Estamos na Dar El Bacha e é aqui que descobrimos algo de que já nos tinham falado, mas que ainda não tínhamos encontrado — o novo comércio de Marraquexe, feito por novos estilistas e designers, que levam à velha capital imperial a modernidade embrulhada em cores e padrões que não rejeitam o passado. A Topolina é exactamente isto. Na mesma rua encontramos duas lojas — uma com produtos para homens, outra para mulheres — da marca criada pela estilista francesa, Isabelle Topolina, que se mudou há alguns anos para Marrocos. As peças de padrões vintage e cortes diferentes cativam os olhos de quem passa, mesmo que os preços estejam muito longe da maior parte da oferta local.
O sol é forte durante a tarde e agora que nos habituamos a uma Marraquexe mais tranquila do que a azáfama a que a velha cidade está associada, queremos continuar a desfrutá-la. A entrada sumptuosa do Palais Donab parece chamar por nós e decidimos entrar. Pode-se beber uma cerveja? Pode, claro. Há um pátio interior, tão típico das velhas mansões marroquinas, com o chão atapetado a azulejo colorido, árvores de fruta que libertam fragrâncias leves e pássaros coloridos em grandes gaiolas, que enchem a tarde de cânticos. E há a água, claro, a água de uma fonte que transmite ao ambiente o constante borbulhar sem o qual um riad ou uma mansão marroquina nunca o serão.
Não está ninguém nas cadeiras de ferro. Não há mais pessoas a apreciar o lento declinar do sol. Só a empregada que traz as cervejas e uma enorme fotografia a preto e branco de Humphrey Bogart, no filme Casablanca, colocada de tal forma que parece estar a olhar directamente para nós enquanto aproveitamos mais uns minutos de absoluto relaxamento.
É ali que saboreamos um pouco mais de Marraquexe, antes de o vento do final da tarde se começar a levantar e o sol esmorecer, indicando que já não vai continuar a iluminar o dia por muito tempo. Voltamos à rua. Sem o fazermos propositadamente, continuamos a evitar a Jemaa el-Fna. Procuramos novo sítio para explorar. Tinham-nos falado de um riad com uma bela esplanada, bem no topo do edifício, e com um mapa muito básico na mão procuramos encontrá-lo. Um marroquino, consciente do nosso ar de quem procura alguma coisa, ultrapassa-nos e, sem parar, pergunta o que procuramos. Dizemos-lhe. “É ali, virando à esquerda e depois à direita, não fica longe”, diz. Mas antes há outra coisa que devíamos ver e que fica só um pouco mais à frente. Uma cooperativa de mulheres que vende belos tapetes, sem compromisso. E tudo isto ele desfia sem nunca parar de andar, dois passos à nossa frente, como se não tivesse importância. E nós sabemos que não será bem assim, que a mostra de tapetes não é só uma mostra, que provavelmente nem são feitos por qualquer cooperativa de mulheres. Mas estamos relaxados, temos tempo e deixamo-nos guiar até um edifício onde, aparentemente, o negócio corre bem, porque várias encomendas estão a ser embaladas, prontas para serem despachadas para as casas dos turistas que observam a operação a alguma distância.
Não ficamos muito tempo. O edifício é antigo, tem belos azulejos num andar superior, e os tapetes são bonitos. Mas não viemos para comprar. E o homem que vai desenrolando carpetes à nossa frente (nem uma única mulher à vista, nem uma única referência à suposta cooperativa) desiste rapidamente da operação, ao fim de curtos minutos.
Regressamos pelo mesmo caminho. Seguimos a indicação que o nosso guia improvisado nos dera e cá estamos. O riad El Fenn é discreto no exterior, mas uma delícia lá dentro. Pátios e varandas, piscinas e recantos com ambientes muito próprios parecem estar por todo o lado, embora o nosso caminho seja para cima. De novo subimos, de novo procuramos um terraço de onde espreitar a cidade.
E o que encontramos faz-nos fechar os olhos durante largos minutos. Chegamos ao topo quando do minarete da mesquita Koutoubia ecoa a chamada para a oração do final do dia. O sol já não se vê, mas a noite não caiu totalmente. O minarete, ponto de referência de qualquer pessoa que procure orientar-se na medina de Marraquexe, está mesmo à nossa frente e a brisa fresca que anuncia o frio da noite do final do Inverno, depois do sol quente da tarde, sacode-nos os cabelos. Absorvemos a paz extraordinária daquele momento.
Quando a oração termina, abrimos os olhos e, olhando em redor, encontramos de novo a cidade da gente para quem esta é apenas a sua casa. Num telhado ali ao lado, há roupa a secar e uma mulher semi-escondida pelas peças estendidas deixa-se estar naquele pátio alto, enquanto um miúdo entra e sai, numa correria divertida, ao seu encontro. Os pratos que captam a televisão por satélite vêem-se por todo o lado. A cidade ilumina-se lá em baixo. Já não é dia. Já é noite. É hora de ir embora.
Afinal, voltamos à praça
Fugir ao habitual de Marraquexe é um programa que recomendamos, mas não para sempre. Não de tudo. Por isso, voltamos à Jemaa el-Fna. Respiramos fundo e embrenhamo-nos nos pequenos restaurantes a céu aberto que ocupam a noite local. Recusamos pegar numa cobra ou que nos tatuem as mãos. Não vamos dar uma volta de caleche e o sumo de laranja fica para outra ocasião. Mas queremos provar o gelado de canela do Café Argana. Destruído no atentado de 2011, o café voltou a encher-se de turistas, que apreciam a vista privilegiada dos pisos superiores sobre a praça.
Subimos, mas desta vez não ficamos muito tempo. O gelado de canela vende-se lá em baixo, no balcão voltado para o exterior. E é bom. Tão bom. A praça está cheia de gente, mas a mesma sensação que nos assaltara no dia anterior regressa: excepto no interior das bancadas de comida, de onde se sai com dificuldade, tantas são as solicitações, os risos, o agarrar no braço, tentando encaminhar-nos para o banco mais próximo, a Jemaa el-Fna é estranhamente silenciosa. Se é possível existir um caos calmo é aqui.
Gastamos o resto do tempo a visitar alguns dos espaços imperdíveis de Marraquexe. A belíssima Madrassa Ben Youssef, construída no século XVI, como uma cópia de uma outra escola corânica em Fez. Há turistas encostados à parede do grande pátio central, outros que percorrem, no piso superior, alguns dos 132 quartos destinados a tantos outros estudantes que ali aprenderam muito mais que o Corão.
Vamos ao Palácio Bahia e vemos os quartos das quatro mulheres oficiais, mas não os das 24 concubinas que estão actualmente fechados ao público, logo a seguir ao telefone de Souâd Bouhaik, a nossa guia, começar a tocar ao som do chamamento para a oração da tarde. Ela explica que o telemóvel está preparado para a avisar das horas de oração, mesmo que não as possa fazer, por estar a trabalhar. De riso fácil, brinca com a sexualidade. Diz que a razão para as mulheres e homens não puderem rezar no mesmo espaço é uma tentativa de evitar tentações, com tanto curvar e levantar e prostrar e curvar de novo (explicação que havemos de ouvir, de novo, em Casablanca). Que o vizir que ali vivia escolheu como sua favorita não a mais jovem e mais bonita das suas amantes, mas aquela que lhe deu o primeiro filho. Que qualquer mulher de Marrocos pode exigir o divórcio e que ele ser-lhe-á concedido. Que não se sente discriminada, nada disso.
E tudo isto enquanto passa pela sala de audiências e dos embaixadores, com belos tectos pintados, pelos antigos quartos das mulheres oficiais do vizir e pela sala profusamente decorada onde as recebia e às concubinas — nunca a mesma duas vezes seguidas, explica a guia. O palácio, como a madrassa, é um oásis dentro da cidade velha, dentro das muralhas que se estendem por 19 quilómetros. Mas Marraquexe cresceu para lá da medina e se, do lado de fora, há muitos hotéis de cinco estrelas com as suas piscinas, galerias de artes e as mesmas lojas que se encontram em qualquer cidade europeia, há também o mundo encantado de verde, amarelo e azul do Jardim Majorelle. Originalmente construído pelo pintor Jacques Majorelle (autor do azul vibrante que leva o seu sobrenome), o jardim foi comprado por Yves Saint-Laurent, que ali viveu com o companheiro, Pierre Bergé, e oferecido pelo estilista à cidade, como agradecimento pelo acolhimento que lhe fora dado. Foi também ali que foram colocadas, a seu pedido, as cinzas de Saint-Laurent, depois da sua morte.
Casablanca, a olhar o céu
De Marraquexe a Casablanca chega-se por uma auto-estrada impecável que liga o faz-de- conta da primeira à realidade crua da segunda. Casablanca é uma cidade a sério. Com prédios e muito trânsito. Com mar à porta e um porto. Com indústria e muita gente nas ruas. Mas é Marrocos e Marrocos tem sempre o seu quê de irrealidade, que aqui se traduz na Mesquita verde e branca de Hassan II. Construída parcialmente sobre o mar, é um monumento do século XX à mestria dos artesãos que preservam as velhas artes marroquinas. E tudo é em grande. O minarete com 200 metros de altura (a mesma medida do comprimento da mesquita), as 24 cúpulas, 76 colunas e 25 portas de titânio. Os candelabros venezianos, o maior dos quais pesa 12000 quilos, a profusão de mármores de Itália e Espanha, o cedro trabalhado dos tectos, o estuque rendilhado…
Podia ir-se a Casablanca apenas para se ver a mesquita, mas a cidade acaba por revelar-se uma surpresa para quem aprecia arquitectura, com as suas avenidas largas e os edifícios planeados e construídos no início do século XX a espreitarem em cada esquina.
E, depois, há o “Quartier Habous” ou a Nova Medina. Construída pelos franceses nos anos 1930, é um recanto de mercadores espalhados por ruas organizadas e mais largas do que os velhos centros de comércio marroquinos, onde a variedade pode não ser tanta como em Marraquexe, mas onde pode passear tranquilamente e ainda encontrar alguma recordação que lhe agrade.
Ou então não compre nada. Guarde as compras para a próxima visita. Em Casablanca ou em Marraquexe. Porque se há coisa que muito provavelmente vai querer é regressar. E aí até pode passar o dia todo na Praça Jemaa el-Fna. Só para variar.
A Fugas viajou a convite da TAP e do Turismo de Marrocos
GUIA PRÁTICO
Guia prático
Como ir
A TAP tem voos directos para Casablanca, Marraquexe e Tânger, a partir de Lisboa. As ligações vão ser reforçadas de 1 de Julho e a transportadora colocou bilhetes promocionais à venda abaixo dos 200 euros.
Onde dormir
Há, literalmente, centenas de opções por onde escolher para dormir em Marraquexe. A Fugas ficou no Hotel Naoura Barrière, um cinco estrelas com todos os quartos voltados para a piscina descoberta e vários apartamentos privados para quem procura uma experiência de grupo mais intimista. O spa é um mundo à parte, onde poderá querer passar algumas horas, depois de um dia a calcorrear a medina, que fica convenientemente perto. É uma caminhada de menos de dez minutos. Preços a partir dos 218 euros.
Em Casablanca, dormimos no Hotel Kenzi Tower, bem no centro da agitação urbana e com um bar no topo, com vistas sobre toda a cidade e a mesquita sobre o mar. De novo, com todos os luxos inerentes a um cinco estrelas, não há como não dormir bem por ali. Os preços começam nos 116 euros.
Onde comer
Em Marraquexe, o óbvio é comer na Jemaa el-Fna, deixando-se seduzir por uma das muitas opções que à noite ocupam parte da praça. Mas, se lhe apetecer algo diferente, também não lhe faltam opções. Desde os buffets das luxuosas cadeias hoteleiras da cidade (experimentámos o Sofitel e o Kenzi Menara e não nos arrependemos) até ao que anda a despertar a curiosidade dos turistas há muitos e poucos anos, não há razões para se sentir entediado.
O Dar Moha, na medina, criado por um dos chefs mais reconhecidos de Marrocos (Mohamed Fedal) é um bom sítio para experimentar um menu de degustação, com tempo, enquanto aprecia a música que é tocada ao vivo. O jardim (coberto no Inverno) é o sítio onde quererá estar, sob a vegetação luxuriante, a piscina aos seus pés e a noite toda para ir descobrindo ao que sabe a renovada cozinha marroquina.
Por outro lado, pode mesmo apetecer-lhe a velha e boa tajine, sentado em bancos baixos, num edifício histórico com salas decoradas com inúmeros azulejos e bailarinas a equilibrar bandejas com serviço de chá e velas na cabeça. O Dar Essalam é isto, com o extra de ter sido escolhido por Alfred Hitchcock como cenário de O Homem que Sabia Demais (1956).
Já em Casablanca, o mar é quem mais ordena, por isso nada como optar por peixe fresco, ostras ou mariscos. Fomos ao Ostrea, no porto da cidade, e não nos arrependemos. A variedade é muita e a frescura dos produtos está garantida.