No coração do Alvarinho
Deixamos Fernando de novo entregue à solidão da serra e vamos desmoendo o almoço no ziguezague da estrada. Até porque nos espera uma tarde bem regada, de copo na mão. Estamos com um pé em Monção e outro em Melgaço, os dois concelhos formando a mais conhecida das sub-regiões do Vinho Verde, que tornou famoso o Alvarinho. Por aqui, a produção desta casta de uva branca movimenta cerca de dois mil produtores e engarrafadores e, segundo dados de 2013 da associação local de produtores, são colhidos anualmente na região perto de seis milhões de quilos daquela uva. “É das mais caras do país: um quilo custa 1€”, indica Francisco.
É um pouco da história e das características particulares da casta e do terroir da região que vamos conhecendo no Museu do Alvarinho, inaugurado no final de Fevereiro de 2015 na Casa do Curro, em Monção. Desde as origens — as primeiras referências específicas à casta serão datadas do século XIX e os primeiros rótulos na década de 1930, com as marcas Cêpa Velha e Casa de Rodes — aos ciclos da vinha e do vinho, com a exposição de diferentes utensílios. No final, a visita ao museu — que desde a abertura já recebeu “11 mil visitantes”, avança o autarca de Monção — pode ser finalizada com a prova (e/ou compra) de alguns dos néctares de ouro verde produzidos na região. Entre a lista de referências, estão as duas quintas que visitamos durante a tarde: Vale dos Ares e Quinta da Pedra, ambas naquele concelho.
É Miguel Queimado quem nos guia pela primeira, situada a 200 metros de altitude, na quinta da família materna do jovem produtor. “É uma das vinhas de Alvarinho mais altas da região”, conta o engenheiro agrónomo e viticultor, assumindo que esta “é uma estratégia de diferenciação”, com a produção de vinhos mais frescos. Estamos no relvado em frente ao edifício do século XVII e, de um lado, encontramos o passado personificado no espigueiro, na eira ou na represa onde em tempos se “lavava a roupa e se acumulava a água para o regadio”; do outro, as comodidades contemporâneas mergulhadas numa piscina sobranceira ao vale.
Foi aqui que Miguel passou os verões da infância, onde a mãe nasceu e viveu até se mudar para Lisboa. “Sempre gostei de vir para aqui e queria fazer algo cá”, recorda. Há dez anos mudou-se da capital e há três que produz vinho de casta Alvarinho. “Sempre produção em pequena escala” e focada “no segmento premium”. Em 2015, encheram-se 10 mil garrafas, cerca de 20% exportadas para o Canadá e Alemanha. O objectivo, avança, é chegar “às 60 mil daqui a cinco ou seis anos”.
É já na ordem das 90 mil garrafas por ano que a Quinta da Pedra produz actualmente naquela que é a “maior extensão contínua de vinha da casta Alvarinho” do país: 43 hectares de videiras, que vão acompanhando o ondular da estrada até ao icónico edifício da propriedade, inspirado nas muralhas de Monção. Por aqui, as visitas guiadas às vinhas e à adega são realidade diária e terminam na loja da quinta, onde podem ser feitas ainda diversas provas de vinhos (a Quinta da Pedra é uma das oito propriedades integradas na Ideal Drinks, pelo que se podem degustar apenas as marcas locais ou abrir às diferentes regiões do país onde a empresa está implementada).
Imperdível será a visita à destilaria — “uma das melhores da Europa e do mundo”, garante Nelson Carvalho, responsável pela quinta. Este é um projecto pessoal do proprietário, Carlos Dias, com “um milhão de euros investidos só em equipamento” e que deverá dar ainda este ano os primeiros passos na comercialização, com o lançamento no mercado de aguardentes feitas com destilados de bagaço, frutas e vinho.
Do castelo ao vale das pontes
A placa indica o fim da estrada e o início do caminho tortuoso que teremos de subir a pé para chegar ao castelo de Castro Laboreiro, daqui ainda pouco mais do que uma miragem longínqua. Na verdade, olhamos para o topo do cerro, que parece mais perto dos anjos nos céus que de nós aqui em baixo, e não temos a certeza se de facto lhe distinguimos o dorso muralhado camuflado no negrume granítico da colina ou se é a nossa imaginação a desenhá-lo lá no alto. Ilusão de óptica ou não, é para lá que vamos. Subamos, então.
Diz-se que quanto mais penoso é o caminho, maior se torna a satisfação da chegada e é com esse dito que vamos encorajando o corpo enquanto galgamos a encosta, primeiro saltitando entre rochedos e rios de terra, depois numa escalada pela infinita escadaria de degraus sinuosos e irregulares que vai abraçando a pequena montanha. Aqui e ali, paragens para recuperar o fôlego na paisagem que se amplia em horizontes numa dança com o vento.
Por fim, uma velha porta de madeira no limite do abismo sinaliza o destino. Segundo Francisco, terá sido D. Afonso Henriques a ordenar a construção da muralha em volta, mas não se conhece a data de fundação do castelo, sendo a edificação da fortificação actual normalmente atribuída a D. Dinis. Se foi para nós difícil aqui chegar, também o terá sido para o inimigo. Conta o guia que Castro Laboreiro e o seu povo foram “sempre fiéis ao lado luso”, embora o castelo não tenha sido um dos com maior importância no quadro da história militar portuguesa.
Mas estamos, então, a 1025 metros de altitude e aqui, no topo da mais alta colina, o que sobra do castelo desvanece-se num primeiro momento, afogado no assombro de 360º de sucessivos panos de encosta, um horizonte de pétreos cerros eriçados contra as nuvens leitosas. Do cinzento dominante sobressaem, de um lado e do outro, pequenos aglomerados habitacionais com os seus telhados vermelhos. Só então o olhar regressa ao castelo, classificado como Monumento Nacional em 1944. Da antiga fortificação, restam apenas algumas linhas de muralhas e as duas entradas, uma a norte, conhecida como porta do sapo ou da traição, e outra a nascente, designada porta do sol.
Caminhamos entre e por cima dos muros de pedra fitando a vertigem e, pouco depois, já descemos de novo a encosta, agora até ao vale que se encaminha para a inverneira de Assureira. Em minutos, baixamos da coroa ao ventre de Castro Laboreiro. E ainda nem passeámos pelas ruas da vila castreja, vergada ao silêncio da desertificação e do envelhecimento das gentes, mas que vale bem a visita, com o casario típico cuidado, o pelourinho do século XVI e a igreja matriz.
Desta vez, o percurso demora-se noutros recônditos encantos: duas antigas pontes romanas, ambas alteradas durante a Idade Média (com a construção de guardas, entre outras modificações). De um lado da estrada municipal 1160, metros antes do desvio para Assureira, a pequena ponte que recebe o nome desta aldeia. Do outro, escondida atrás do arvoredo (e acessível por um curto caminho), a imponente Ponte Nova ou da Cava da Velha. A cada casal de turistas enamorados que aqui traz, Francisco lança sempre o mesmo desafio: depois de observadas as duas pontes de pedra, cada um terá de escolher qual a que melhor define o amor que os une.
A primeira, bucólica e romântica, com um arco em volta perfeita sobre um plácido riacho, que convida a mergulhar os pés nos meses veraneantes. O desuso a vesti-la com o verde das margens e atrás um velho moinho abandonado a rematar o quadro pitoresco. Ou a segunda, altiva sobre o rio Castro Laboreiro, cujo caudal vai caindo em rápidos no declive rochoso, com “dois arcos laterais em volta perfeita, contrafortes e estrutura central em cavalete invertido” (classificada como monumento nacional em 1986).
De todas as respostas, Francisco guarda a de um casal norte-americano. Ambos escolheram a segunda. A justificação? “Cada um está representado num dos arcos laterais, porque um apoia o outro para construir algo maior.”