“Basta-nos/ saber que sonharam e estão mortos;/ e que importa se por excessivo amor/ Enlouqueceram até à morte?/ (...) Agora e seja onde for,/ Algures onde impere o verde,/ Mudaram, mudaram completamente:/ Uma terrível beleza nasceu.”
Não é estranho começar um texto sobre a Irlanda, sobre Dublin, com poesia: afinal, o país tem quatro prémios Nobel da literatura e Dublin foi considerada a primeira cidade literária pela UNESCO. E tão-pouco é estranho fazê-lo quando embarcamos numa viagem sobre a Revolta da Páscoa de 1916: “líricos” e “sonhadores” são adjectivos muitas vezes associados aos seus protagonistas e muitos poemas (e baladas) foram dedicados a esta gesta que não só foi seminal na história do país, como ganhou contornos míticos (e quase sagrados). Sete séculos de ocupação britânica, muitas insurreições e revoltas, muitas negociações depois, os vários grupos nacionalistas republicanos viram na I Guerra Mundial uma oportunidade para a Irlanda.
No ano do centenário, a Irlanda comemora os seis dias que lhe abriram as portas para um futuro independente e reflecte sobre o seu legado. Que não é consensual, que não foi pacífico, mas que é incontornável. “O centenário não podia ser ignorado, tinha de ser feito, é o mais próximo que temos de um dia da independência”, nota Michael O’Reilly, o responsável do comité das comemorações. “Mas foi um processo bastante delicado, devido à questão da Irlanda do Norte. Causou muita ansiedade. A escolha era entre fazer pouco, e o Sinn Féin [partido político] ia tomar contar de tudo, ou fazer algo muito grande, para que todo o país se envolvesse”, explica. O programa, extenso, portanto, começou a desenhar-se — e nas bases.
No início de Março Dublin está como se espera: fria, chuvosa, ventosa. Está também cheia de obras que tornam caminhar (e conduzir) pelo centro da cidade uma espécie de gincana. O Luas, o metro de superfície da capital irlandesa, está a expandir-se e as dores do crescimento são muitas. Desde as ruas semicortadas de ambos os lados da O’Connell Bridge às greves dos condutores que reivindicam aumentos salariais. E por todo o lado, cartazes, em vários suportes publicitários nos passeios e praças, a cruzarem as ruas em autocarros, a interpelarem todos, dubliners e turistas: “How will you remember [1916]?”
A pergunta é do Dublin City Council, mas pode estender-se um pouco a todas as entidades, envolvidas nas comemorações. “Recordar, reflectir, reimaginar”: estes são os três vértices do programa oficial e Michael O’Reilly crê mesmo que a maior herança deste ano será o contributo para a definição da identidade irlandesa. O que o centenário inspira em termos de futuro para a Irlanda?
A “terrível beleza”
E agora recuamos cem anos. As celebrações oficiais ficaram sempre associadas à Páscoa, mas, na verdade, o dia 24 de Abril, no ano de 1916 segunda-feira de Páscoa, foi o dia em que Pádraig Pearson, professor profundamente envolvido no “renascimento irlandês” (língua, desportos, tradições), que recebeu as funções de comandante do exército da República da Irlanda e Presidente do governo provisório, leu a Proclamação da República diante do General Post Office (GPO), o quartel-general dos rebeldes. Ao mesmo tempo, diferentes batalhões ocupavam alguns pontos-chave da cidade. Durante quase uma semana, o centro de Dublin viveu uma situação que começou um pouco esquizofrénica — com as primeiras investidas nas ruas a ocorrerem a par com a vida normal — e acabou num cenário de destruição. Mais importante para o futuro, das ruínas, arquitectónicas e humanas (cerca de 500 mortos, a maioria civis — e a execução dos líderes), nasceu “a terrível beleza” de Yeats: a opinião pública irlandesa, até então bastante dividida entre a independência e a permanência no Reino Unido, mudou radicalmente. A favor da primeira.
É possível andar pelo centro Dublin quase sem nos apercebermos do que se passou nessa Páscoa de 1916 — as faces mais visíveis talvez sejam o GPO e o Garden of Rememberance, construído no local onde os líderes da rebelião passaram a primeira noite depois da rendição. Mas uma vez mergulhados na história sentimo-nos quase a viver em dois planos da realidade, a de hoje e a de há cem anos, separadas por um véu muito ténue e que um olhar mais atento ou um guia como Mick Langan desfaz rapidamente. Quase que podemos ver, entre edifícios decrépitos, os últimos resistentes do GPO a fugirem do acosso britânico, abrindo buracos entre os edifícios até chegarem ao último quartel-general. Mais difícil é atravessar a ponte bucólica, em pedra, de Mount Street Bridge e imaginar que ali foi o local de maior acção durante a rebelião, onde morreram mais de 200 soldados britânicos (incluindo reforços que chegaram de Inglaterra, ainda mal sabendo disparar uma arma, e que, ao chegarem, pensavam que estavam em França, cumprimentando as pessoas com alegres bonjours). E mais incongruente tudo nos parece se caminharmos um pouco mais junto do canal e chegamos a “Silicon Docks”, o hub dublinense das grandes empresas tech (Google, Facebook, Amazon, Twitter...), passando pelo Boland’s Mill & Bakery, local fulcral na estratégia dos rebeldes. Regressamos ao presente quando vemos camiões ao estilo militar, cobertos de fotografias a preto-e-branco dos dias da revolta, e com nomes de personagens centrais (passamos pela Countess Markievicz), que fazem a “1916 Freedom Tour”, como se anuncia na placa de destino.
“É a Irlanda”
Na manhã “do dia mais frio do ano”, garantem-nos, reunimo-nos no pub The International, uma instituição dublinense, aberto em 1888, onde o irish stew nunca falta no menu do dia. É o ponto de partida do “1916 Rebellion Walking Tour”, que Lorcan Collins, historiador, faz há 20 anos. “No início foi complicado”, recorda, “agora nunca falta gente”. Hoje seremos uns 15 — norte-americanos, ingleses, australianos, até irlandeses, “um fenómeno mais recente”. Primeiro uma contextualização que recua até à Grande Fome, em 1852: nesses dias, grandes navios saíam diariamente para Inglaterra, carregados de bens alimentares, na Irlanda morria-se de fome. “Os rebeldes de 1916 tinham, pelo menos, uma memória folk disto.” Na mesma altura surgiu a Irish Republican Brotherhood, os fenianos, e desta surgiriam os Irish Volunteers, liderados por Pearse, que, juntamente com o Irish Citizen Army, de James Connolly (os dois foram os líderes mais carismáticos da revolta), o Cumann na mBan, grupo feminino, e os Hibernian Riffles, se uniram para a Revolta da Páscoa. “Tínhamos causa, tínhamos gente, tínhamos armas, como poderia correr mal?” A pergunta é de retórica, veremos: “É a Irlanda.”
Collins tem o humor típico dublinense, mas não deixa as informações por mãos alheias — o mesmo se pode dizer do nosso guia, Mick Langan. Sim, os rebeldes “tinham” armas: iam chegar, vindas da Alemanha (seguindo a máxima “o inimigo do meu inimigo, meu amigo é”), por mar. Correu mal. O navio chegou mais cedo do que o previsto, foi detectado pelos ingleses e a tripulação optou por afundá-lo. Sem armas, uma facção decidiu cancelar o levantamento; outra decidiu adiá-la por um dia. Resultado: na segunda-feira de manhã foram poucos os que se dirigiram a Liberty Hall, donde haveriam de partir os rebeldes para tomar o GPO. Conta-se que chegaram de eléctrico (pagaram bilhetes), com armas rudimentares. Mantinha-se a causa.
Não tomaram o castelo (mas aqui houve a primeira baixa, um polícia desarmado), não ocuparam Trinity College (uma espécie de fortaleza), mas ocuparam uma fábrica de biscoitos e uma padaria — havia que assegurar a comida, brinca. Tomaram a decisão “incompreensível” de se instalarem no Stephen’s Garden, cavando trincheiras em território rodeado de esguias casas georgianas que compõem muito do centro da cidade, tornando-se presa fácil para os britânicos, instalados no Hotel Shelbourne; entretanto, conta-se, houve momentos de tréguas, por exemplo, para alimentar os patos do lago (ainda assim 22 foram mortos no fogo cruzado).
Stiletto in the ghetto
Pés ao caminho, a direcção é a O’Connell Street, a avenida principal de Dublin e local central da Revolta de 1916. Antes avistamos o actual Banco da Irlanda, antigo parlamento irlandês, até 1800, ano do Act of Union, que uniu o Reino da Grã-Bretanha ao Reino da Irlanda, formando o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda e transferiu todos os poderes para Westminster. Atravessamos a ponte homónima, sobre o rio Liffey, que separa o sul, de onde partimos, do norte da cidade e avistamos o Liberty Hall: o edifício que já foi o mais alto do país é o sucessor do “original”, que em 1916 (tal como hoje) era sede do maior sindicato do país e do Irish Citizens Army, o seu braço “armado” (formado para proteger os trabalhadores da brutalidade policial durante as greves de 1913). Por esses dias, erguia-se uma grande faixa na fachada: “Nós não servimos nem rei nem kaiser, mas a Irlanda”; por estes dias, lê-se “Há outra rebelião a acontecer agora. Ajudem-nos a combater as mudanças climáticas”. Foi um dos primeiros alvos britânicos, que, ao contrário do que previram os rebeldes, não hesitaram em atacar a cidade com artilharia pesada.
A O’Connell Street, uma avenida, recebe-nos com o monumento a Daniel O’Connell (1775), conhecido como “o libertador”. O memorial, de pedra e bronze, tem marcas de balas que recordam os acontecimentos de 1916 — e os pássaros que ali se empoleiram, às vezes confundindo-se com o bronze, também deixam a sua marca. Seguindo O’Connell acima, já quase diante do GPO (e, entretanto, já vimos quiosques com bandeiras e t-shirts comemorativas da rebelião), nova estátua que recorda James Larkin, co-fundador do Irish Citizen Army, um orador brilhante. Na base da estátua, um slogan herdado da revolução francesa: “Os grandes parecem-nos grandes porque estamos de joelhos. Ergamo-nos.”
Chegamos diante do GPO e da Spire of Dublin, também conhecida, conta Collins, como “the erection at the intersection” ou “the stiletto in the ghetto”. É, apesar de novíssima, um resquício de 1916: aqui ergueu-se o Pilar de Nelson, uma espécie de “quilómetro zero” da cidade e visto como uma sombra colonialista, que alguém fez explodir em 1966, antes das comemorações do cinquentenário da rebelião. O GPO ostenta a única fachada neste troço entre o rio e o antigo Pilar de Nelson que não ruiu durante os confrontos em 1916. No início da rebelião continuou a funcionar normalmente, com os funcionários a apresentarem-se sempre ao trabalho. Nas colunas que suportam o frontão do edifício neo-clássico, Collins saca vários projécteis para tornar mais visuais os buracos de balas que ainda se vêem.
Até 28 de Março, o GPO era apenas o que é, um posto de correios em funcionamento, com um memorial aos rebeldes de 1916 na sala principal: uma estátua do herói mítico irlandês, Cuchulainn — a lenda diz que quando foi ferido mortalmente durante uma batalha se amarrou a um pilar para poder olhar de frente os inimigos mesmo na morte; um certo paralelismo com James Connolly, que, ferido de morte, foi feito prisioneiro e para a sua execução teve de ser amarrado a uma cadeira para enfrentar o pelotão —, com o texto da proclamação da República da Irlanda e o nome dos seus sete signatários como inscrição. A 29 de Março abriu um novo museu que ocupa uma das alas do edifício (ver texto nestas páginas).
Uma loucura gloriosa
Não é o único museu a abrir em Dublin que a pretexto do centenário da Revolta da Páscoa revisitam esses dias e a sua herança. Novos museus e exposições (de referir as do The Little Museum of Dublin: uma conta em ilustrações a história que conduziu à revolta; outra é uma homenagem a sete mulheres relacionadas com os líderes) vão ocupar o ano, mas nenhum é tão polémico como o projectado Moore St. Commemorative Centre. Todo o processo está em tribunal e na rua, entre as bancas de frutas e de flores e um forte odor a especiarias que se alinham nos passeios flanqueados de lojas que mostram como Dublin se tornou uma cidade multicultural (há chinesas, indianas, paquistanesas...), uma banca recolhe assinaturas para o movimento “Save Moore Street”. Diante deste, uma série de edifícios entaipados, cobertos pela faixa alusiva a 1916. Há cem anos, com os rebeldes completamente cercados, vendo os soldados britânicos a abater civis, Pearse decidiu-se pela rendição. Aqui terminaram os combates — o ponto final, esperavam os britânicos, aconteceria dias mais tarde, depois de executados todos os seus líderes e feitos prisioneiros centenas de rebeldes, enviados para uma prisão no País de Gales que foi uma espécie “de universidade nacionalista”, comenta Lorcan Collins, “saíram todos com doutoramento” (incluindo Michael Collins). Por estes dias, a modernidade digladia-se com a história: no número 16 foi o último quartel-general dos rebeldes e este edifício de tijolo laranja e os que o ladeiam são monumento nacional. Mas o que o movimento quer é que esse estatuto se estenda a toda a rua — entretanto, o Tribunal Supremo deu-lhes razão.
Há algo quase de sacrílego, dizemos nós, quando vemos a placa na agora chamada O’Rahilly Parade, espécie de traseiras desoladas da Moore St., com a última carta que The O’ Rahilly, como ficou conhecido, escreveu à mulher, já moribundo, neste local. Membro-fundador dos Irish Volunteers, foi ele que conduziu pela Irlanda com o anúncio do cancelamento da revolta mas quando regressou a Dublin e percebeu as movimentações juntou-se aos outros rebeldes — “Bem, eu ajudei a dar corda ao relógio. Posso também ouvi-lo tocar”, comentou com a condessa Markievicz, outra figura proeminente da rebelião, afinal, “é uma loucura, mas é uma loucura gloriosa”. Ferido mortalmente quando abria caminho para a fuga dos rebeldes, terminou a breve missiva dizendo “Foi, de qualquer forma, uma boa luta. Adeus, querida”.
Os “cortiços” da cidade
Se o 1916 Walking Tour termina aqui, a caminhada por 1916 continua e não é preciso andar muito para encontrar novo local icónico daqueles dias. Depois da rendição, a noite dos rebeldes foi passada em Parnell Street, no rebaptizado Garden of Rememberance: fazia parte do jardim do Rotunda Hospital, a mais antiga maternidade do mundo, que também foi, ironicamente, o local de fundação dos Irish Volunteers. É agora um memorial a todos os que ao longo dos séculos lutaram por uma Irlanda livre (e nos últimos 200 anos foram seis as rebeliões e insurreições). O pequeno parque, encaixado abaixo do nível da rua, o que proporciona uma panorâmica abrangente, está repleto de símbolos religiosos e da mitologia céltica. A galeria municipal Hugh Lane e o Museu dos Escritores estão instalados em imponentes casas georgianas do outro lado da rua (em 1916 eram “cortiços”: num quarto poderia viver uma família alargada”, sublinha Mick Langan) e no Ambassador Theatre um enorme cartaz anuncia a exposição Revolution 1916 — Dublin the city that fought an empire é o slogan —, que se anuncia como “a maior colecção privada de artefactos de 1916”.
A noite já está a assentar sobre Dublin e acima dos telhados a Spire já está iluminada, quando nos aproximamos da Inner City. Para trás há-de ficar a zona georgiana mais antiga da cidade, grande parte restaurada, devolvendo a simetria sóbria a praças “tão bonitas como Edimburgo e Londres”, considera Langan. “É preciso não esquecer que Dublin foi durante muito tempo a segunda cidade do império.” E muita da cidade continua igual à de há cem anos. “Não havia dinheiro para pôr abaixo”, explica o nosso guia, “e quando houve dinheiro já se dava outro valor”. As condições de vida, essas, mudaram muito: no último século, depois da Guerra da Independência, da Guerra Civil, da Proclamação da República, da emigração massiva, da entrada na então CEE, do apogeu (e posterior queda) do tigre celta, e chegados à austeridade actual (que obrigou ao pagamento da água, causando grande descontentamento e avanços e recuos na aplicação da medida), os cortiços desapareceram. Na Henrietta Street, a mais antiga rua georgiana da cidade, começou por viver a aristocracia, mas em 1916 vinte casas chegaram a albergar 800 famílias — “Dublin era a cidade mais militarizada, a que tinha mais cortiços e o maior red light district do império”, nota o nosso guia. É uma rua empedrada, curta, um cul-de-sac, para a qual está prevista a abertura, ainda este ano, de um museu que será um espelho das duas realidades que aqui viveram.
Foi entre esta zona e Four Courts, na North King St., que em 1916 se deu o maior massacre de civis da rebelião. Com tantas voltas que damos, parece que estamos muito distantes, mas, na verdade, estamos a apenas dez minutos do GPO. Se essa zona foi central em todas as movimentações, os outros combates deram-se numa espécie de bolha, com os britânicos a formarem um círculo e a atacar de fora, para depois entrarem no perímetro quase em guerrilha urbana. E é a fechar o círculo que nos dirigimos a Four Courts, com o cheiro intenso de cerveja a torrar no ar (a fábrica da Guinness está no horizonte e uma curiosidade: os britânicos utilizaram as cubas da cervejeira para blindar os seus camiões), que como o nome revela é o centro do poder judiciário da cidade (e do país). Em 1916 foi também um ponto estratégico: na margem do Liffey, junto dos cais a norte, e a caminho de alguns quartéis militares, o complexo de edifícios neoclássicos (1802) permitia controlar as movimentações das tropas britânicas.
Mais à frente, na conhecida Half Penny Bridge, que desemboca em pleno Temple Bar, a famosa zona boémia de Dublin (“da qual os dublinenses fogem”, nota Langan), em 1916 ainda se pagava a portagem “e os rebeldes pagavam-na”. Na outra margem do rio, ergue-se a cidade sobre as fundações vikings e por detrás dos telhados distingue-se o castelo de Dublin, símbolo do poder britânico na ilha. Foi aqui que James Connolly, ferido, esperou pela sua execução. A sala que ocupou é um memorial aos líderes mortos, com os retratos de todos e a bandeira irlandesa.
“Quando será suficiente?”
Connolly, que tinha feito parte do exército britânico, era um socialista convicto e o seu envolvimento com os grupos nacionalistas ainda hoje causa surpresa. Sobretudo se atendermos à ideia do “sacrifício de sangue” que se colou à Revolta de 1916, através de Pearse. Entre os seus escritos: “Foi necessário o sangue do filho de Deus para resgatar o mundo, vai ser necessário o sangue dos filhos da Irlanda para resgatar a Irlanda.” Mas não é esse o sentimento da Proclamação da República, que garantia “liberdade religiosa e civil, direitos iguais, oportunidades iguais para todos os seus cidadãos” e declarava o seu empenho “em perseguir a felicidade e a prosperidade de toda a nação”: aí lê-se a confiança absoluta na vitória. Não aconteceu. “Parece que perdemos. Não perdemos. Recusar lutar teria sido perder; lutar é ganhar. Mantivemos a fé com o passado e entregámos uma tradição para o futuro”, escreveu Pearse numa carta à mãe na véspera da sua execução. E, na verdade, depois das execuções, a Irlanda tinha ganho mais 17 mártires — ou, como disse George Bernard Shaw, a política britânica tinha feito heróis e mártires de poetas menores.
O resultado destes seis dias não é consensual: para uns, foi o momento fundacional da República, para outros foi o ponto de não retorno na divisão da ilha — para alguns, os seus ideais ainda não se cumpriram. Aos irlandeses, o que se pergunta durante este centenário é, como ouvimos num dos vídeos no novo museu do GPO, se valeu a pena. Voltamos à poesia: se fosse um poeta português a responder não haveria dúvidas. Afinal, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Mas voltamos a Yeats: “Um sacrifício demasiado longo/ Pode em pedra o coração tornar. / Oh, quando será suficiente?”.
A Revolta da Páscoa em cinco passos – mais a diáspora irlandesa
Richmond Barracks
Diz-se que Richmond Barracks é o “capítulo perdido” da Revolta da Páscoa. Mas o quartel construído durante as guerras napoleónicas é o local onde foram julgados os cerca de três mil homens e mulheres que participaram na rebelião — os líderes foram identificados e transportados para o ginásio onde enfrentaram um tribunal marcial. Daqui, seguiram para a vizinha Kilmainham Gaol, onde seriam executados; os outros foram presos. Do enorme complexo militar restam três edifícios: um é ocupado por um centro de saúde, os outros dois estão a preparar-se para abrir, a 2 de Maio, cem anos exactos sobre o primeiro julgamento marcial. Serão um museu para explorar este período da história irlandesa e a sua participação na formação do Estado Livre: vai contar a história dos dois lados do conflito.
Quando o visitamos, com a responsável do Grupo de Restauração da Richmond Barracks (uma organização cidadã), Éadaoin Ní Chléirigh, como guia, os trabalhos ainda se centram na construção.
Os habitantes do St. Michael’s Estate, um bairro social, estão ansiosos pela abertura, na esperança que traga um desenvolvimento a esta zona negligenciada de Dublin, o Goldenbridge Integrated Service Complex. A comunidade está profundamente envolvida no projecto e na vizinha The Yarn School, edifício minúsculo, encontramos algumas das mulheres que estão a trabalhar num projecto especial, celebrando as mulheres da rebelião. 77 mulheres de hoje para as 77 mulheres de então que estiveram presas no quartel: o resultado será um quilt, com impressão em linho, em que cada uma revisita as motivações dessas mulheres e o que lhes poderiam dizer. A uma dela, Bridget Murtagh, aqui da zona, que teve um marido abusivo e morreu de parto aos 40 anos, dizem “Don’t marry your man”, por exemplo. A bisneta de uma dessas mulheres, Bridget Hegarty, que vive aqui perto, também contribuiu. Depois do quilt as mulheres não querem parar e já têm algumas tote bags prontas para continuar o projecto — os produtos serão vendidos no novo museu.
Kilmainham Gaol
Kilmainham Gaol é um nome infame na história irlandesa: prisão criada em 1796, manteve-se em actividade até 1924, quando o Estado Livre a mandou fechar — mas já depois de quatro republicanos aqui terem sido executados durante a Guerra Civil. Recuperada através de trabalho voluntário, alberga um museu sobre o nacionalismo irlandês e oferece visitas guiadas.
Nós embarcamos numa destas, que começa pela parte antiga da prisão, a ala oeste, pedra viva, húmida, sombria. A primeira paragem, na igreja, recorda um dos episódios da Revolta de 1916: o casamento de Joseph Plunkett e Grace Gilford, poucas horas antes da execução dele — ela, artista e membro do Sinn Féin, também haveria de ser prisioneira aqui, durante a Guerra Civil. Os corredores abrem-se para celas exíguas que recebiam entre quatro a oito prisioneiros com apenas uma Bíblia e uma vela, a única fonte de calor — as mulheres e as crianças tinham ainda pior sorte, dormiam nos corredores, expostos aos elementos. Numa das arcadas lê-se agora “Be aware of the risen people” e seguimos até uma cela invulgar: um quarto grande, com cama, janela e lareira. Não era um bom sinal estar aqui, significava que se tinha 24 horas de vida.
É quase um alívio chegar à ala este, vitoriana. Esta é uma imagem que já vimos em vários filmes — por exemplo, Michael Collins ou In the Name of the Father — e é inesquecível com a sua arquitectura em panóptico, circular, portanto, onde do centro se conseguiam ver todos os prisioneiros. A luz invade por uma clarabóia e ilumina a estrutura que, com as escadas de ferro e corredores superiores, quase parece um aracnídeo. As celas dos líderes de 1916 estão assinaladas.
Mas é nos pátios exteriores, paredes que parecem de castelo agora maculadas de andaimes (preparativos para as cerimónias oficiais do centenário), que se situa o local mais icónico de 1916 — no pátio da pedreira, entre 3 e Maio de 1916, foram executados 14 rebeldes: uma cruz de madeira num dos topos, a bandeira irlandesa hasteada. “You are free to go”, diz o guia ao terminarmos a visita.
Arbour Hill
Depois de percorrer a história da Revolta da Páscoa de 1916, só poderíamos fechar a porta em Arbour Hill. Aqui, numa vala comum foram enterrados 14 dos 16 líderes executados. Estamos na órbita das Collins Barracks (parte do museu nacional que por estes dias alberga uma exposição relacionada com os acontecimentos de 1916) e da prisão de Arbour Hill. Antes de ser prisão, o terreno pertencia a uma guarnição britânica e ainda se mantêm algumas lápides antigas num canto do agora jardim e a igreja que a servia e agora serve a prisão.
Chegamos no meio de mais obras para as celebrações do centenário — todos os anos, as cerimónias passam por aqui — e encontramos um grupo de irlandeses, vindos de perto, de Tallath, a prestar homenagem. A coroa de flores com as cores da bandeira irlandesa que trouxeram está depositada junto do muro de cimento, aos pés de uma cruz dourada rodeada da inscrição da Proclamação da República, em inglês e gaélico (crítica de Mick Langan: “Foi escrita em inglês, para quê mudar a história?”). Em breve, um bagpiper, de kilt laranja, casaco verde e boina azul (um veterano que serviu nos capacetes azuis da ONU) vai iniciar o longo lamento na gaita-de-foles. Há pessoas comovidas, outras concentradas, há quem tire fotos e faça vídeos, mesmo que para isso pise o ponto fulcral deste local: a vala comum. O rectângulo relvado está debruado por placas de calcário, com o nome de todos os que aqui foram enterrados — e porque todos merecem nome: Thomas Clarke, Thomas Mac Donagh, Pádraig Pearse, Edward Daly, Michael O’Hanrahan, William Pearse, Joseph Mary Plunkett, John MacBride, Con Colbert, Éamonn Ceannt, Seán Heuston, Michael Mallin, James Connolly and Seán Mac Diarmada. Os outros líderes executados foram Sir Roger Casement (Londres) e Thomas Kent (Cork).
Glasvenin Cemetery
Mais de um milhão e meio de pessoas estão enterradas no cemitério de Glasvenin — mais do que os “vivos” de Dublin — e entre estas muitos dos que nos últimos dois séculos lutaram pela liberdade irlandesa. “80%das pessoas que ajudaram a criar a Irlanda estão aqui enterradas”, sublinha Langan. Daniel O’Connell, que liderou o processo para a sua abertura (1832) e a consagração a todas as religiões, descansa aqui num monumento funerário que é o ponto central do cemitério. Mais que não seja pela torre circular que se ergue alta, como tantas outras nas paisagens irlandesas. Na cripta, ricamente decorada, o caixão de O’ Connell encontra-se ao centro numa caixa pétrea aberta de lado — dá boa sorte tocar no caixão.
Os “1916 Rising Tours” centram-se no chamado “talhão republicano”, onde os nomes são familiares: Arthur Griffith, fundador do Sinn Féin (1905); Eamon De Valera, “Dev”, que depois de quase 40 anos de governo (participou na rebelião, fundou o partido Fianna Fáil e acabaria por ser primeiro-ministro e Presidente da República), terminou com a imagem tão desgastada como os quatro cravos secos Na sua sepultura. Uma imagem em tudo oposta à sepultura de Michael Collins, que com Griffith negociou o tratado que instituiria o Estado Livre da Irlanda: coroas e ramos de flores, mensagens manuscritas, incluindo de escolas e de uma francesa que, há 40 anos, todos os dias de São Valentim, vem deixar um ramo — ainda vemos o deste ano, “Love, Verónique”.
Mas há muitos mais revolucionários aqui enterrados, como a condessa Markievicz e John Devoy, “o maior dos fenianos”, parte da rebelião de 1867, da revolta de 1916 e da Guerra da Independência. Não fazem parte do tour, mas aqui está também enterrado Edward Hollywood, o homem que criou a bandeira irlandesa, trazida de Paris em 1848 (verde a representar a tradição gaélica irlandesa, laranja para os lealistas, seguidores de William of Orange, e branco como símbolo da aspiração de paz entre ambos) ou Peadar Kearney, que escreveu a letra de Amhran na bhFiann, adoptada como hino nacional.
GPO Witness History
Quando chegamos ainda se corria contra o tempo para ter tudo a postos para a grande abertura, 29 de Março, a seguir à segunda-feira de Páscoa. Mas o coração do novo centro de visitantes do GPO já estava a bater — com vozes e sons de bombardeamentos que recriam a semana da Páscoa de 1916. Sabemos que aqui foi o quartel-general dos rebeldes. Agora, durante 90 minutos, propõe-se que os visitantes vivam com eles nesses dias em que todos os sonhos foram possíveis. “Para os irlandeses é muito entusiasmante”, explica Aline Fitzgerald, “é a primeira vez que vão poder ver a história e ouvi-la contada por testemunhas dos acontecimentos”. Isso graças à tecnologia utilizada, em sintonia com objectos privados — “aqui não há heróis, há homens e mulheres”, por isso mostram-se desde cartas a mechas de cabelos de filhos, lâminas e escovas de barbear — e outros artefactos mais bélicos, como armas, medalhas, fardas, que foram utilizados nesses dias pelos rebeldes.
O tom é dado pelo icónico quadro de Walter Paget, Birth of the Irish Republic, numa versão a preto-e-branco e numa revisitação de Robert Ballagh, cores fortes, figuras bem delineadas a negro. Na sala principal, os visitantes podem dispersar-se pelas vitrinas, pelas representações de cenários da época, desde uma barricada a uma sala de telecomunicações ou até ao interior de casas (as opulentas e os cortiços), pelos jogos interactivos ou pelos vídeos em que historiadores dão visões distintas dos acontecimentos. A peça principal é, contudo, um ecrã semicircular onde mergulhamos em plena acção, escutando diálogos entre rebeldes (como aquele em que falam da desaprovação dos seus conterrâneos, mas da viragem nas gerações futuras: “The republic will come home”), quase como se de 3D se tratasse. No pátio está a homenagem mais singela e emotiva: 40 peças de calcário negro retiradas da Jacob’s Biscuit Factory (um dos postos avançados dos rebeldes) representam as 40 crianças mortas durante a revolta e durante muito tempo negligenciadas pela história. Neste primeiro andar, a exposição The Tale of Two Irelands mostra como a Revolta da Páscoa foi comemorada nos últimos cem anos.
Epic Ireland
Estamos a pouca distância do Abbey Theatre, o teatro nacional da Irlanda, em pleno distrito financeiro, nas margens do Liffey. Um antigo armazém de vinho e tabaco é agora um moderno complexo que alberga restaurantes, start-ups, galerias de arte, lojas gourmet, boutiques de autor. A 7 de Maio abrir-se-ão as portas de um ambicioso projecto, Epic Ireland, onde a proposta é nada mais nada menos do que explorar “a jornada de um povo”, como diz o slogan.
Temos os capacetes na cabeça quando descemos às entranhas do primeiro edifício de betão e ferro fundido do país porque as obras ainda estão a decorrer. Atravessámos 21 galerias, pedra, tijolo e abóbadas, e só vemos os trabalhos, temos de imaginar o que aqui vai ser instalado. Recorrendo às mais recentes tecnologias vai explorar-se o mundo da diáspora irlandesa, como se de uma viagem se tratasse: a entrada vai simular Ellis Island e será entregue um passaporte. Depois viajaremos pela emigração irlandesa, começando pelas motivações, a influência que teve no mundo e como é actualmente. Pelo meio conheceremos heróis e bandidos, cantaremos e dançaremos como irlandeses, ouviremos histórias — e quem tem a sua própria poderá deixá-la. Curiosamente, o edifício está instalado no George’s Dock, de onde saíam os navios carregados de emigrantes durante a Grande Fome do século XIX.
Guia prático
Como ir
A Aer Lingus voa desde Lisboa e Faro Ryanair para Dublin.
A Ryanair voa a partir de Lisboa e Faro todos os dias e do Porto à segunda e sexta-feiras.
Onde ficar
A Fugas ficou no Buswells Hotel, ao lado do Parlamento irlandês, da Biblioteca Nacional e do Museu Nacional.
23-27 Molesworth Street, Dublin 2
www.buswells.ie
Onde comer
As opções mais económicas são, quase sempre, os pubs.
The Winding Stair
40 Lower Ormond Quay, Dublin 1
www.winding-stair.com
Wine Rooms
Custom House Square IFSC, Dublin 1
www.dublinwinerooms.com
Davy Byrne’s (pub frequentado por James Joyce e Brendan Behan)
21 Duke St, Dublin 2
www.davybyrnes.com
O’Neills Pub
2 Suffolk St, Dublin 2
www.oneillspubdublin.com
A Fugas viajou com o apoio do Fáilte Ireland (Turismo da Irlanda)