“Basta-nos/ saber que sonharam e estão mortos;/ e que importa se por excessivo amor/ Enlouqueceram até à morte?/ (...) Agora e seja onde for,/ Algures onde impere o verde,/ Mudaram, mudaram completamente:/ Uma terrível beleza nasceu.”
Não é estranho começar um texto sobre a Irlanda, sobre Dublin, com poesia: afinal, o país tem quatro prémios Nobel da literatura e Dublin foi considerada a primeira cidade literária pela UNESCO. E tão-pouco é estranho fazê-lo quando embarcamos numa viagem sobre a Revolta da Páscoa de 1916: “líricos” e “sonhadores” são adjectivos muitas vezes associados aos seus protagonistas e muitos poemas (e baladas) foram dedicados a esta gesta que não só foi seminal na história do país, como ganhou contornos míticos (e quase sagrados). Sete séculos de ocupação britânica, muitas insurreições e revoltas, muitas negociações depois, os vários grupos nacionalistas republicanos viram na I Guerra Mundial uma oportunidade para a Irlanda.
No ano do centenário, a Irlanda comemora os seis dias que lhe abriram as portas para um futuro independente e reflecte sobre o seu legado. Que não é consensual, que não foi pacífico, mas que é incontornável. “O centenário não podia ser ignorado, tinha de ser feito, é o mais próximo que temos de um dia da independência”, nota Michael O’Reilly, o responsável do comité das comemorações. “Mas foi um processo bastante delicado, devido à questão da Irlanda do Norte. Causou muita ansiedade. A escolha era entre fazer pouco, e o Sinn Féin [partido político] ia tomar contar de tudo, ou fazer algo muito grande, para que todo o país se envolvesse”, explica. O programa, extenso, portanto, começou a desenhar-se — e nas bases.
No início de Março Dublin está como se espera: fria, chuvosa, ventosa. Está também cheia de obras que tornam caminhar (e conduzir) pelo centro da cidade uma espécie de gincana. O Luas, o metro de superfície da capital irlandesa, está a expandir-se e as dores do crescimento são muitas. Desde as ruas semicortadas de ambos os lados da O’Connell Bridge às greves dos condutores que reivindicam aumentos salariais. E por todo o lado, cartazes, em vários suportes publicitários nos passeios e praças, a cruzarem as ruas em autocarros, a interpelarem todos, dubliners e turistas: “How will you remember [1916]?”
A pergunta é do Dublin City Council, mas pode estender-se um pouco a todas as entidades, envolvidas nas comemorações. “Recordar, reflectir, reimaginar”: estes são os três vértices do programa oficial e Michael O’Reilly crê mesmo que a maior herança deste ano será o contributo para a definição da identidade irlandesa. O que o centenário inspira em termos de futuro para a Irlanda?
A “terrível beleza”
E agora recuamos cem anos. As celebrações oficiais ficaram sempre associadas à Páscoa, mas, na verdade, o dia 24 de Abril, no ano de 1916 segunda-feira de Páscoa, foi o dia em que Pádraig Pearson, professor profundamente envolvido no “renascimento irlandês” (língua, desportos, tradições), que recebeu as funções de comandante do exército da República da Irlanda e Presidente do governo provisório, leu a Proclamação da República diante do General Post Office (GPO), o quartel-general dos rebeldes. Ao mesmo tempo, diferentes batalhões ocupavam alguns pontos-chave da cidade. Durante quase uma semana, o centro de Dublin viveu uma situação que começou um pouco esquizofrénica — com as primeiras investidas nas ruas a ocorrerem a par com a vida normal — e acabou num cenário de destruição. Mais importante para o futuro, das ruínas, arquitectónicas e humanas (cerca de 500 mortos, a maioria civis — e a execução dos líderes), nasceu “a terrível beleza” de Yeats: a opinião pública irlandesa, até então bastante dividida entre a independência e a permanência no Reino Unido, mudou radicalmente. A favor da primeira.