Como ustedes no lo ignoran, he viajado mucho. Esto me ha permitido corroborar la afirmación de que siempre el viaje es más o menos ilusorio, de que nada nuevo hay bajo el sol, de que todo es uno y lo mismo, etcétera, pero también, paradójicamente, de que es infundada cualquier desesperanza de encontrar sorpresas y cosas nuevas: en verdad el mundo es inagotable.
Jorge Luís Borges, Cuentos Breves y Extraordinarios
O convite veio pelo telefone. “Queres ir mergulhar à Jordânia?” Do outro lado da linha, a editora da Fugas deu-me uns instantes para reflectir. Nunca tinha estado no Médio Oriente e não reconhecia a Jordânia como destino de eleição para actividades subaquáticas. Por outro lado, estava num período particularmente intenso de trabalho e sem grande disponibilidade. Mas pouco hesitei. Duas semanas depois, entrava no Aeroporto de Lisboa, numa madrugada chuvosa e fria de domingo. As expectativas eram relativamente modestas. Essencialmente, tinha curiosidade em conhecer um país plantado numa das regiões mais quentes do globo, a conviver tão perto com as barbáries da guerra para lá das suas fronteiras, na Síria e Iraque. Era uma viagem definitivamente diferente, mas não alimentava grandes surpresas, depois de tantas outras que fui fazendo ao longo dos anos. Enganei-me: o mundo é mesmo inesgotável. O que se segue saiu de alguns dos apontamentos que fui anotando no meu habitual caderno de viagens, normalmente para consumo pessoal. Originalmente, o tema de fundo deste artigo era o mergulho no mar Vermelho, mas tal seria redutor numa experiência que se revelou tão enriquecedora.
Aeroporto de Amã
Cinco horas e meia desde Madrid até Amã. Aterramos na capital jordana pelas 19h locais (mais duas do que em Lisboa). O aeroporto é moderno e muito amplo. Está estranhamente calmo para a hora. Pouca gente a circular e quase todos jordanos ou turistas provenientes de países próximos. Há poucos ocidentais e o nosso grupo, ruidoso, não passa despercebido. Inicialmente, as medidas de segurança parecem ser débeis. É ilusório. Pedem-nos algumas dezenas de dinares jordanos (JD: uma unidade equivale a cerca de 0,70 euros, no câmbio local) pelo visto de entrada, mas o elemento da Royal Jordanian, que nos aguarda, ultrapassa as burocracias e evita a despesa. Indica-nos a zona de embarque para Aqaba e despede-se, sem sorrisos. Pouco afáveis são também os funcionários alfandegários, que inspeccionam morosamente cada passaporte, vasculhando os destinos anteriores, antes de carimbarem os documentos. À medida que nos aproximamos da zona de embarques para os voos domésticos, o aparato policial aumenta. Tudo é examinado com o máximo detalhe e o material de mergulho que, quase todos, os meus companheiros transportam obriga a uma revista mais pormenorizada. Motivam algumas perguntas curtas, por vezes ríspidas. Esperamos pelo embarque numa zona com poucos bancos e aguardamos sentados no chão. Finalmente, as portas são abertas e sujeitamo-nos a nova inspecção, com um detector de metais. Há alguma tensão no ar.
Aqaba
São 22h e as ruas fervilham de actividade. Há muitos cafés e restaurantes, as lojas estão abertas e a temperatura é agradável. Aqaba é uma cidade portuária, no extremo Sudoeste da Jordânia, capital da província autónoma com o mesmo nome. É um destino de praia, especialmente procurada pelos amantes do mergulho. O parque automóvel é invejável, a circulação ordenada e não se vê pobreza nas ruas. Não imaginava que fosse assim. Jantamos numa esplanada agradável de uma pequena pizzaria. Olho em volta: vejo um Burger King e outras reconhecidas marcas ocidentais de fast food. Também há casas mais tradicionais, que servem as especialidades locais. Nenhum restaurante muçulmano serve bebidas alcoólicas. Só se encontram em alguns estabelecimentos autorizados e nas mais reputadas unidades hoteleiras internacionais. A nossa pertence a um grupo suíço e está a cerca de 15 minutos de Aqaba, em direcção ao sul. É para lá que desejamos ir, após uma longa viagem que, no meu caso, dura desde as 5h45.
Subimos para o pequeno autocarro, que irá ser o nosso transporte nos próximos dias. No caminho, vejo o gigantesco porto que serve a cidade e que é a única porta da Jordânia para o comércio marítimo internacional. No total, o país dispõe apenas de uma costa de 19 quilómetros, confinada entre Israel, a norte, e a Arábia Saudita, a sul, no golfo de Aqaba, um estreito braço do mar Vermelho. Na margem ocidental, vêem-se as encostas áridas da egípcia península do Sinai. Na estrada, somos parados por um posto de controlo e cruzamo-nos com uma longa coluna militar.
À entrada do hotel, toda a nossa bagagem tem de passar por um detector de metais, um procedimento habitual em todos os grandes hotéis que iremos visitar nos próximos dias. Por fim, chego ao quarto. Ligo a televisão, pela primeira e única vez nesta viagem e procuro os canais locais. Não entendo árabe, mas as imagens de guerra não precisam de legendas e relembram-me onde estou. Apago o aparelho e sento-me numa cadeira no exterior da minha habitação. Tem um pequeno terraço, aberto para os jardins do hotel. Ouço o som tranquilo do mar. Está escuro, mas vejo uma pequena criança a caminhar sobre a relva, aos ziguezagues, a uns 20 metros de distância. Parece sozinha, mas reparo em alguns movimentos subtis atrás dela. Aos poucos, ganha forma uma silhueta de burqa preta integral. Brincam as duas. Um pouco atrás, surge um homem, com uma t-shirt cavada, a fumar. Olha para mim e eu aceno-lhe discretamente. Não retribui.
Cedar Pride
Em 1964, foi lançado ao mar, em Gijón, nas Astúrias espanholas, o cargueiro Mone Dos, com 74 metros e mais de mil toneladas. No mesmo ano, alteraram-lhe o nome para Puerto de Pasajes e esteve ao serviço de uma companhia de Bilbao, até 1969. Passaria depois a chamar-se San Bruno e, em 1978, após ser adquirido por um transitário libanês, seria rebaptizado, pela quarta e última vez, como Cedar Pride. Em Julho de 1982 chegou ao porto de Aqaba. Estava ali fundeado a 2 de Agosto desse ano, quando um incêndio se propagou rapidamente pela sala de máquinas e atingiu a área de alojamento, matando dois tripulantes.
O Cedar Pride ficou também fatalmente danificado, apesar de manter o casco intacto e permanecer à tona. Durante três anos, a embarcação manteve-se no porto jordano, sem ninguém assumir responsabilidades pela sua manutenção ou pelas taxas portuárias que se acumulavam. A 16 de Novembro de 1985, por ordem do então herdeiro da coroa jordana e actual Rei Abdullah II, a história do Cedar Pride teve o seu mais honroso capítulo. O navio foi propositadamente afundado para se transformar num grande recife artificial, muito perto da costa. É hoje uma das grandes atracções marinhas do golfo de Aqaba. Repousa apenas a nove metros de profundidade, o que o torna acessível para qualquer mergulhador, independentemente do nível de experiência.
Foi surgindo à minha frente, imponente, num mergulho matinal. Está virado para bombordo, assente em dois recifes de coral, que permitem passar por baixo do casco, através de uma pequena fresta. Com os mais variados corais encrustados na sua ferragem, é também o habitat de inúmeros pequenos peixes coloridos. Maior prática de mergulho é necessária para explorar o seu interior. Quem o possa fazer não o esquecerá. Dentro de um compartimento do navio, existe uma grande bolha de ar, que permite respirar sem o regulador na boca, embora, por precaução, não seja aconselhado. Visitei-o duas vezes, em dias diferentes. Tem um ar solene e enigmático.
Na última vez, fomos conduzidos por Shadi Hatokay, um jovem jordano, bastante profissional e minucioso no que respeita à segurança dos clientes que vão ao centro de mergulho Ahlan Aqaba, que dirige com a sua mulher. Ela é eslovena. No seu iate, depois de dois mergulhos, Shadi contou-me que a conheceu por estas paragens e lembrou, com saudade, uma visita que fez à Eslovénia. Deslumbrou-se com as vastas florestas verdes desta república da ex-Jugoslávia, contrastantes com as áridas paisagens do Médio Oriente. O cheiro a churrasco, que a tripulação do bem equipado barco está a preparar para o almoço, invade o ambiente e aguça-nos o apetite. Servimo-nos e comemos em silêncio, contemplando a paisagem. Indica-me depois as altas e estéreis montanhas, em tons ocres claros, que cercam as águas calmas e transparentes do golfo, em redor de Aqaba. “Gosto muito das árvores e do verde, mas o deserto também é maravilhoso. Vais gostar.”
Maria e Fernando
Quase todo o grupo que viaja comigo na Jordânia (somos 14 no total) é composto por agentes de viagens, especializados em mergulho ou em desportos radicais. São todos espanhóis, excepto eu e outro português, que conheci no avião, logo na partida de Lisboa. Até aos 39 anos, Fernando era um quadro médio de uma grande companhia de seguros, com uma vida estável e financeiramente confortável. Um dia decidiu mudar tudo e investir o seu tempo num pequeno negócio conhecido por O Peixe Voador. Inicialmente, acompanhando o fundador, com mais duas outras pessoas; agora, sozinho, com o apoio de três dedicados colaboradores. O mergulho é a sua grande paixão e detalha cada experiência num pequeno e grosso notebook, onde escreve com uma caneta de bico particularmente fino, numa letra miudinha, quase indecifrável a olho nu. Já leva mais de 600 mergulhos no currículo e estreou, recentemente, o segundo caderno de apontamentos. Ao longo desta viagem, insistiu sempre, em várias conversas, que para se mergulhar bem são necessárias apenas duas coisas: controlo de flutuabilidade e, acima de tudo, atitude. Debaixo de água e à superfície.
Quase todos os restantes são igualmente muito experientes. Alguns têm o nível de mestre ou instrutor. Maria Chacón é uma instrutora, com mais de dois mil mergulhos espalhados pelo globo. Conviveu de perto com as mais assustadoras espécies de tubarões e algumas das fotografias que mostra são tão deslumbrantes como aterradoras. Tem uma agência de viagens de mergulho, em Madrid, chamada Blue Planet. É filha da conhecida poetisa e romancista espanhola Dulce Chacón, autora, entre muitas outras obras, da premiada novela La voz dormida (A voz adormecida, editada em Portugal pela Difel), que foi adaptada ao cinema, em 2011, pelo realizador Benito Zambrano. Faleceu repentinamente, a 3 de Dezembro de 2003, com apenas 49 anos. Ao seu funeral não faltou o próprio Rei de Espanha. “Não esperava ver tanta gente no enterro da minha mãe. Deram o seu nome a ruas e a um prémio literário.” Dulce Chacón tinha uma irmã gémea, Inma, com quem mantinha uma relação estreita e emocionante. A morte súbita impediu a mãe de Maria de iniciar um romance que esteve anos a pairar na sua cabeça. Inma Chacón escreveu-o. Chama-se La princesa india e foi publicado em 2005. Maria não escreve. Pelo menos livros. Mas emociona-se com os da sua mãe. Enviou-me recentemente uma pequena parte da sua obra. Vive em Madrid, uma cidade sem mar, e faz alpinismo para combater as vertigens. A sua arte expressa-se debaixo de água.
Eu sou, de longe, o mais inexperiente do grupo em matéria de mergulho, com modestas dezenas de carimbos no meu livro de registos da PADI (Professional Association of Diving Instructor). Fernando e Maria alternam-se como meus parceiros nas profundezas jordanas. Falam com prazer nos mergulhos ao largo do mar Vermelho egípcio. Garantem que os desafios que se colocam ali aos praticantes são maiores. Essas paragens estão agora quase vazias, após o atentado terrorista que derrubou o avião russo no Sinai, proveniente da famosa estância de Sharm el-Sheik. Já as águas de Aqaba são perfeitas para mergulhos menos exigentes, óptimas para acumular traquejo. É o que necessito. Aprendo muito com os conselhos que me dão. Não me deixam escapar nada. Com eles vi peixes-palhaço, peixes-leão, peixes-cofre, peixes-vidro, peixes falcão, peixes-trombeta, peixes-anjo, peixes imperador, peixes-pedra — com a sua engenhosa capacidade de camuflagem —, moreias, nudibrânquios, anthias e napoleões. E há muitos outros. Há ainda uma grande quantidade e variedade de corais, tanto rígidos como moles. Também encontrámos lixo. E este é um problema que as autoridades de Aqaba querem resolver. A nossa guia, Salaam Malki, não culpa apenas os banhistas que invadem as praias do golfo todos os fins-de-semana — sexta-feira e sábado (domingo é um dia normal da semana) —, ou os tripulantes dos muitos barcos que cruzam estas águas. Aponta igualmente o dedo às tempestades de areia, provenientes do deserto, que empurram tudo para o mar.
Terra de ninguém
Não é todos os dias que se pisam terrenos sem pátria. Estou precisamente no meio de duas fronteiras, separadas por algumas centenas de metros. De um lado, a Jordânia e Aqaba, do outro, Israel e a cidade de Eilat. Longe vão os dias de tensão e guerra entre estes dois vizinhos, separados étnica e religiosamente. Um tratado de paz, assinado em 1994, resolveu as disputas territoriais e normalizou as relações. São muitos os israelitas que visitam a zona franca de Aqaba para compras e lazer. No voo de Amã encontrámos três, que falavam espanhol. Hoje, esta terra de ninguém, que separa as duas nações, serve de observatório para os amantes das aves. O espaço dispõe de algumas lagoas, árvores, arbustos e atrai milhares de aves migratórias. Têm aqui um porto seguro nas suas longas jornadas entre a Eurásia e África. Num dos observatórios de madeira, com uns binóculos emprestados, apontei as lentes para Eilat. Vejo um enorme centro comercial e outros edifícios de grande envergadura. Apesar da proximidade, as duas cidades são muito diferentes.
William
O centro de mergulho Sea Star está em cima de uma pequena praia. Tem um restaurante modesto e uma esplanada encantadora, com vista privilegiada para o mar. O sol brilha intensamente, não há nuvens e a temperatura, pouco depois do meio-dia, é elevada. Acabámos de chegar de um mergulho por um recife submerso, chamado Cazar Reef. Retirado o pesado equipamento e depois de tudo lavado com água doce, aproveitamos a paisagem. Junta-se a nós o proprietário do espaço, um homem alto e robusto, com um minúsculo boné e uns grandes óculos redondos escurecidos. Veste uma camisa às riscas, enfiada dentro das calças verdes claras. Foge ao padrão jordano. Tem um enorme sorriso jovial, que esconde os seus 80 anos, recém-completados. Com as mãos na cintura, pergunta-me se também sou espanhol. Digo-lhe que venho de Portugal. “São todos do Al-Andalus!” Quero saber o seu nome: “Chamo-me William.” Não escondo a surpresa. “O meu pai adorava ingleses.” Ao almoço, vai contar-me a sua peculiar história.
William Sawalha nasceu em 1936, em Jerusalém, mas as suas origens encontram-se numa tribo beduína cristã, proveniente de Madaba, a sul de Amã. Foi dali que saíram os seus pais no final da I Guerra Mundial, em direcção à cidade santa da Palestina, então administrada pelos britânicos. A família tinha algumas posses e investiu na educação do pai de William. Aprendeu a falar inglês e alemão e formou-se em engenharia. Viajou por alguns países europeus durante o pós-guerra. Nos anos de 1930 assentou em Jerusalém e foi construindo um pequeno império hoteleiro. Entretanto, nascia William e, pouco depois, eclodia a II Guerra Mundial, que trouxe algumas privações. Com o fim do conflito global, outro começou a ganhar forma, agora às portas de casa. A crescente hostilidade entre judeus e árabes, e os contantes tiroteios nas ruas de Jerusalém, levaram a família Sawalha a procurar segurança na Jordânia. O novo estado de Israel impediu, para sempre, um regresso, e todo o seu património imobiliário foi ocupado e nacionalizado.
Recomeçaram do zero. William cresceu e seguiu as pegadas académicas do pai. Foi para os Estados Unidos, onde tirou dois cursos superiores de engenharia, na Califórnia, regressando depois à Jordânia. Primeiro para Amã, onde investiu também no sector hoteleiro; depois mudou-se para Aqaba. Gosta do país e é um admirador confesso do Rei Abdullah II, como todos os jordanos com quem me fui cruzando. Ser cristão aqui não é um problema. Diz ser respeitado por todos os muçulmanos. Pergunto-lhe sobre a guerra no Iraque e na Síria. O seu sorriso desaparece. Abomina todo o radicalismo, em particular aquele que é promovido pelo autoproclamado Estado Islâmico. Coloca uma expressão grave: “É a ignorância que provoca o extremismo.”
Wadi Rum
O sol ainda estava baixo e o deserto já ardia. Primeiro ponto de paragem: a velha e abandonada estação ferroviária de Wadi Rum. Uma antiga locomotiva com a bandeira do Império Otomano esvoaça numa carruagem. Os carris estão ferrugentos. É um museu ao ar livre. Em redor, o cenário é esmagador e cinematográfico. Areias com tonalidades de amarelo escuro, âmbar, vermelho; à distância, revelam-se majestosas montanhas de rocha monolítica, de arenito e granito; alguns arbustos salpicam a paisagem. Lembra o Grand Canyon americano. O silêncio é profundo.
Wadi Rum, ou “Vale da Lua”, é um enorme vale no Sul da Jordânia, a 60 quilómetros a leste de Aqaba, com uma área aproximada de 720 quilómetros quadrados (74 mil hectares). Em Junho de 2011, foi classificado pela UNESCO como Património Mundial. A ocupação humana data do Paleolítico, numa altura em que a paisagem seria drasticamente diferente, com numerosas espécies animais e vegetais que, gradualmente, desapareceram com o processo de desertificação. A água foi e é um elemento essencial neste deserto. A sua presença deve-se à estrutura do subsolo: as fundações de granito impermeável impedem que se perca no subsolo. As nascentes existentes tornaram o local num ponto de passagem obrigatório das caravanas comerciais, que ligavam a península arábica ao norte.
Um café no deserto
A viagem de jipe pelo trilho do deserto durou perto de meia hora, até chegarmos a um ponto abrigado do sol escaldante. Aguardava-nos um pequeno grupo de beduínos e 20 camelos. Homens e animais tranquilamente sentados. Montámos as pacíficas e lerdas criaturas, que se ergueram, faseadamente, contrariadas. Seguimos, lentamente, em direcção a um formoso desfiladeiro de Wadi Rum. Parámos junto de três outros beduínos, atarefados em volta de uma mesa de madeira comprida. Preparavam um almoço tradicional do deserto, com muitos vegetais, pedaços de frango e cordeiro. Somos convidados a participar. No chão está estendido um grande tapete onde iremos comer e repousar. A uns metros de distância, atrás de um arbusto, uma silhueta negra capta-me a atenção. Olho mais atentamente e vejo uma mulher de burqa preta ajoelhada no chão, silenciosa e imóvel como uma estátua. Mais tarde, os homens vão permitir que nos aproximemos dela, para a ver fazer o tradicional shrak (pão beduíno), numa grande chapa oval, sobre uma pequena fogueira, com uma inesperada agilidade.
Na tradição beduína, comida e bebida têm hierarquias. No topo, em termos de importância simbólica, está o café. A sua preparação e oferenda são essenciais na hospitalidade deste povo. Por norma, quem trata da bebida é o próprio chefe da tribo ou do clã. Numa frigideira de ferro, com uma longa pega, o nosso anfitrião frita os grãos verdes. Esmaga-os de seguida, num almofariz, de forma ritmada, e despeja tudo, cuidadosamente, numa cafeteira de água fervida. Junta-lhe algumas sementes de cardamomo, uma especiaria que lhe empresta o sabor característico. E está pronto. Servi-lo envolve todo outro cerimonial e o desrespeito da etiqueta é ofensivo. Para os beduínos, o café está relacionado com a hospitalidade, generosidade e responsabilidade. É uma linguagem prévia às palavras. Enche-me um pequeno copo de plástico e entregou-me com a mão direita. Se fosse com a esquerda, estaria a dizer que não era bem-vindo e que fosse rapidamente embora. A bebida é amarga e forte, não particularmente saborosa para o meu paladar. Sorvo até à última gota.
A maioria da população jordana é de origem beduína e isso reflecte-se profundamente na identidade do país. O estilo de vida destes árabes nómadas, os “habitantes do deserto”, tem sofrido drásticas alterações desde o século XIX. Muitos foram forçados à sedentarização pelo Império Otomano, para facilitar a cobrança de impostos. O final da I Guerra Mundial reforçou esta tendência. Habituados a circular livremente, passaram a ser submetidos ao controlo governamental, que os circunscreveu aos limites fronteiriços dos novos estados independentes. Na Jordânia, os actuais beduínos combinam dois estilos de vida: os sedentários e aqueles que ainda praticam a pastorícia. Estes acampam por alguns meses em determinado local, com as suas cabras, ovelhas e camelos. E por ali ficam até esgotarem as forragens. As únicas concessões que fazem ao mundo moderno passam, em alguns casos, pela aquisição de uma pick-up (para transportar animais), garrafas de água de plástico ou um pequeno fogão de querosene. O governo jordano que, no passado, promoveu fervorosamente a fixação dos beduínos, reconhece o seu papel ímpar na cultural e património nacionais. Diz que são “a espinha dorsal do reino”. Os cuidados de saúde, educação e habitação para estas populações têm sido reforçados nos últimos anos. Mas alguns, cada vez menos, continuam a rejeitar apoios, mantendo inalterado um estilo de vida que os serviu durante séculos.
Sob as estrelas
Trepar a uma rocha isolada e contemplar um pôr do sol em Wadi Rum é um momento que fica gravado na memória. As cores vão mudando nas montanhas circundantes, com emocionantes tons laranja a cobrirem a paisagem. Um profundo silêncio reforça a atmosfera mística. Os derradeiros raios estrelares formam um enorme leque de luz, antes de o crepúsculo envolver serenamente o deserto. Ao longe, avisto dois beduínos e três camelos a seguirem para ocidente, numa marcha vagarosa. O tempo parou.
A temperatura diminuiu drasticamente. A escuridão é quase completa quando nos aproximamos de umas ténues luzes, transportados por três jipes de capota aberta. Do nada, surge um amontoado de tendas de lona. Só se pode entrar no acampamento por um lado. Está aninhado entre imponentes paredes de rocha granítica, que abrigam o local do vento e do frio. Saltamos das traseiras dos veículos de todo-o-terreno e entramos. Feitas as apresentações, indicam-nos onde vamos dormir. O jantar está quase pronto e será servido, instantes depois, numa grande tenda aberta, ao fundo do campo. O chão, no interior, está coberto de tapetes. A dieta em Wadi Rum não é muito variada, com o frango e o cordeiro a liderarem a ementa, mas, desta vez, a confecção é mais original. Os alimentos são tapados e enterrados na areia, a pouca profundidade, cozinhando ao sol durante várias horas. Lembra o cozido açoriano das Furnas. Depois do jantar, somos brindados com músicas e danças tradicionais. Já só penso nas estrelas.
Perto da meia-noite, Salaam aconselha-me a procurar uma enorme duna, fora do acampamento, onde a escuridão é total. Encontro-a do lado esquerdo e começo a subir. Quase no topo, uma sombra ganha forma humana. Reconheço Hussam, o motorista do autocarro, que transporta o nosso grupo em Aqaba. Fuma um cigarro e cumprimenta-me delicadamente, como sempre. Travámos amizade na minha primeira noite na Jordânia e aprecio a sua companhia descontraída e bem-disposta. Deitamo-nos calados e olho para o mais maravilhoso céu estrelado que já vi e, possivelmente, jamais verei. É noite de lua nova. Passa algum tempo até voltar a falar com Hussam. É casado, tem quatro filhos e parece feliz. Conversamos sobre os hábitos jordanos. Explica-me que beijar um homem na cabeça é um gesto de respeito e carinho. Algo que se faz a um pai ou a um familiar mais idoso. Aos amigos e conhecidos mais próximos, dá-se três beijos nas faces. Na cara também se podem beijar algumas mulheres, em determinadas circunstâncias e em locais menos expostos. E como beija a mulher? Eleva a voz: “À minha mulher, beijo em todo o lado!”. Rimos os dois com gosto. Falo-lhe de Portugal. A noite terá muitos episódios e será inesquecível.
Os nawar de Petra
Ao longo da História, o povo cigano conheceu os mais diversos processos de exclusão e discriminação nas regiões que atravessou ou onde acabou por se fixar. Na Jordânia não é diferente. O seu número varia consoante as fontes, oscilando entre os 7200 e os 20 mil. Por aqui são chamados de nawar, um termo depreciativo, que significa algo como “ferreiro” ou “adorador do fogo”. Uma importante comunidade vive em Wadi Musa, ou Vale de Moisés, onde, de acordo com a tradição, o profeta fez sair água de uma rocha para dar de beber aos seus seguidores. A cidade cresceu à sombra das ruínas de Petra, a grande jóia do turismo jordano. Mais ainda depois de ter sido eleita como uma das Novas Sete Maravilhas do Mundo, numa cerimónia realizada em Lisboa, em 2007.
É neste extraordinário recinto arqueológico que muitos dos ciganos de Wadi Musa, principalmente os mais jovens, procuram sustento. Oferecem-se para transportar turistas com os seus burros e camelos, enquanto as crianças vendem pequenas recordações. Para atrair clientela, apresentam-se como beduínos e pintam olhos e sobrancelhas com uma espécie de henna preta, o que reforça bastante o seu exotismo. Meto conversa com um grupo de três, que descansam numa sombra, ao lado dos seus jumentos. O mais comunicativo é a reencarnação de Jack Sparrow, a personagem de Johnny Depp na saga Piratas das Caraíbas. Ao saber que sou português, ergue-se e grita: “Cristiano Ronaldo!” Estava quebrado o gelo. Foi assim que iniciei muitas conversas na Jordânia. Quase todos os que encontrei são adeptos fervorosos do Real Madrid ou do Barcelona. De Ronaldo ou de Messi. Seguem os jogos pela televisão com algum fanatismo. Portugal não é um país desconhecido em Petra, e na Jordânia em geral, muito por causa do futebol. O meu “Sparrow” fala dos últimos jogos da sua equipa, até se despedir com um sorriso aberto.
Mais tarde, no autocarro, a iniciar o regresso a Aqaba, o nosso guia em Petra, um jordano chamado Suliman, que fala um castelhano fluente, mostrou-me o bairro dos nawar, em Wadi Musa. Casas pobres e degradadas. Muitas crianças brincam no chão. Os beduínos não gostam deles, apesar das coincidentes origens nómadas destes dois povos. Não gostam da concorrência em Petra, nem que incomodem os turistas. Criticam a sua higiene e garantem que a maioria está envolvida em actividades ilícitas, relacionadas com a venda e consumo de droga. Dizem que não são jordanos e que não respeitam as tradições.
Para trás, vai ficando Petra, a outrora sumptuosa capital dos Nabateus, que se fixaram nesta região, a partir do século VI antes de Cristo, provenientes do deserto arábico. Foi um ponto de passagem obrigatório para as caravanas comerciais, prosperando com o seu principal recurso natural: a água. A perdida Petra, redescoberta para o ocidente pelo explorador suíço Johann Ludwig, em 1812, quando viajava por estas paragens, disfarçado de mercador árabe. Seguia as fantásticas histórias dos beduínos acerca de uma cidade secreta, oculta em estreitos desfiladeiros, no coração de uma montanha.
Uma noite no mar
Tudo muda quando mergulhamos à noite. É nessa altura que muitas espécies marinhas abandonam a protecção dos seus esconderijos diurnos, em busca de alimento. É no recato da escuridão que os pólipos alojados nos corais se estendem para o exterior, desabrochando como flores de múltiplas cores. Tal como a vida marinha, também os mergulhadores alteram os seus comportamentos na escuridão. O uso da lanterna é obrigatório, mas tem de ser cauteloso, para não encandear os parceiros. E há cuidados redobrados com a orientação. É um mundo novo, maravilhoso, onde se recuperam as cores perdidas pela absorção da luz do sol pela água. Foi assim em Black Rock e Rainbow Reef. Subo sozinho à superfície, por instantes, para admirar as estrelas. Respiro fundo e volto a mergulhar.
O músico
Sofian Jaser é um conhecido músico de Aqaba. Tem olhos castanhos-claros. Grandes e tristes. Toca magistralmente simsimiyya (ou semsemia), um instrumento de cordas árabe, uma variante da lira, com uma sonoridade singular, muito apreciada pelos beduínos. Naquela manhã quente de Abril, esteve connosco numa viagem de veleiro pelo golfo de Aqaba, elegantemente vestido com uma longa túnica branca (dishdasha ou thawb) e um tradicional lenço jordano (keffiyeh), com padrões vermelhos e brancos, a cair-lhe pelos ombros. Toca alguns temas melancólicos com uma gravidade profunda. Depois fica quieto, à parte do nosso grupo. O seu recato manteve-se durante o almoço junto à piscina do fabuloso Sindbad Dive Club. Trocamos olhares e ofereço-lhe um cigarro. Segundo Hussam, é um gesto apreciado em Aqaba e, como verifiquei, desbloqueia a timidez. Foi um revés no meu processo de deixar de fumar.
Vamos os dois para uma mesa afastada. Sofian não fala inglês e eu não falo árabe. Mostro-lhe algumas fotografias de Lisboa. Ele sorri, pela primeira vez. Depois, levanta lentamente o dedo e retira do bolso um smartphone. Procura algo no visor do aparelho e, com um movimento delicado, cola-o ao meu ouvido esquerdo. A melodia que sai do objecto é tocante. Tapo o ouvido direito com a palma da mão e cerro os olhos. Não é parecido com nada que tenha ouvido até então na Jordânia. Ou em qualquer outro lado. Aqui a simsimiyya ganha nova dimensão sonora. Num momento, vibra como uma guitarra eléctrica, noutro tem a delicadeza de uma harpa. O arranjo instrumental é assombroso. Um rumor de ondas do mar vai aumentando vagarosamente até se impor por completo. E depois, o silêncio.
Aponto o dedo para Sofian, a perguntar se a composição é sua. Acena suavemente. Faz movimentos ondulares com uma mão e murmura: “The sea.” Vira-me a seguir a cabeça para as montanhas atrás de nós. Este será sempre, para mim, o som de Aqaba. O mar e o deserto, num bailado eterno, por vezes calmo, outras, desenfreado. E a ligar estes dois elementos, os beduínos, na sua marcha lenta e imparável. Os poucos que continuam a deambular por Wadi Rum e por todas as paisagens áridas jordanas. Sem tempo. Despeço-me de Sofian com três beijos e um abraço apertado. Tudo o que me quis transmitir estava naquela melodia.
Aeroporto de Amã
Em contraste com muitos dos seus vizinhos árabes, a Jordânia não dispõe de grandes recursos energéticos, como petróleo ou gás natural. A sua economia depende da exploração de fosfatos e carbonatos, do comércio e do turismo. É neste sector que o país está a investir fortemente nos últimos anos, mas o explosivo contexto político no Médio Oriente tem afastado muitos visitantes, em particular os ocidentais. Apesar dos conflitos, que destroçam, ali ao lado, a Síria e o Iraque, e dos ventos do radicalismo religioso, a Jordânia é um país pacífico, estável e tolerante. A educação tem sido uma das suas prioridades e 97% da população adulta é alfabetizada. Uma percentagem que sobe para os 99 nos jovens, de ambos os sexos, entre os 15 e 24 anos. Desde o início da guerra civil na Síria, acolheu mais de 1,2 milhões de refugiados deste país. E a Jordânia tem menos de sete milhões de habitantes. Comparativamente, estima-se que tenham chegado à Europa perto de um milhão de sírios, segundo dados de Fevereiro de 2016, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
No Aeroporto de Amã, antes do embarque para Madrid, a segurança volta a ser apertada. Tudo é inspeccionado ao detalhe. A Jordânia integra a coligação internacional que combate o autoproclamado Estado Islâmico e é um alvo do terrorismo, tal como grande parte das nações do mundo. A protecção da população e dos turistas estrangeiros é encarada seriamente pelas autoridades, de forma quase obsessiva.
Deixo-me cair no meu lugar no avião. Sinto-me exausto, com muito poucas horas dormidas nos últimos dias. Há muito para digerir. Fecho os olhos e vejo as águas cristalinas do golfo de Aqaba. Vejo Petra e o arrebatador El Khazneh. Mas são as imagens magnéticas de Wadi Rum que se vão impondo, aos poucos, na minha mente. Foram as suas cores, montanhas, estrelas e silêncios que tornaram estes dias inesquecíveis. Ou foi tudo junto. O mar. O deserto. As pessoas. Daquelas que falo e de muitas mais, guardadas no meu caderno de viagem. Vejo pela primeira vez as fotografias que fui tirando com a câmara do telemóvel. Recordo rostos, conversas longas pela noite. E os beduínos e seus camelos numa cadência lenta em direcção ao sol-posto. A Jordânia será sempre para mim a melhor das viagens. Mas o mundo é mesmo inesgotável.
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Como ir
Não há voos directos de Portugal para a Jordânia e a alternativa é fazer uma escala em Madrid. A Royal Jordanian (com quem a Fugas viajou) disponibiliza seis voos semanais (a excepção é segunda-feira), com a ligação entre Lisboa e a capital espanhola a ser feita através da Iberia. Depois de Amã, voo doméstico para Aqaba.
Programas com mergulho
Em Portugal, a agência especializada em viagens de mergulho O Peixe Voador oferece um conjunto de programas para Aqaba, que incluem visitas a Petra. Os preços por pessoa situam-se entre os 1377 euros e os 1716 euros, dependendo das opções de hotel. Os preços, para sete noites, incluem a passagem aérea Lisboa/Madrid/Amã/Aqaba, em classe económica, pela Royal Jordanian; taxas de aeroporto, segurança e combustível (no valor de 283 euros, sujeitos a eventuais alterações); franquia gratuita individual de uma peça até 20kg de bagagem de porão; tranfers do aeroporto de Aqaba para o hotel pretendido; alojamento com pequeno-almoço incluído; uma visita de um dia a Petra, com entrada incluída e um guia em inglês; oito mergulhos, com guia, garrafa de 12 litros com enchimento de ar e cinto de lastro; uma noite em Amã, no regresso, em regime de alojamento e pequeno almoço e ainda seguros de acidentes pessoais e assistência em viagem (exceptuando acidentes decorrentes da prática de mergulho).
Onde ficar
Há inúmeras opções para ficar em Aqaba ou nos arredores desta localidade, ao longo do litoral, para todas as bolsas. A Fugas ficou no Resort Movenpick & Spa, em Tala Bay, a cerca de 15 minutos do centro da cidade e a 25 minutos do Aeroporto Internacional Rei Hussein. Este hotel de cinco estrelas possui 306 quartos, todos com um terraço ou varandas, e tem uma agradável praia particular, várias piscinas e oito restaurantes e bares. Dispõe ainda de um centro de mergulho e possibilita também a prática de outros desportos aquáticos. Em todo o hotel é possível aceder a wifi gratuito. Os preços, ao balcão, começam nos 117 euros por noite.
Onde comer
A oferta é vasta em Aqaba, entre restaurantes, bares e as tradicionais cadeias internacionais de fast food. A Fugas experimentou o acolhedor Papaya Restaurant & Café. O serviço é bom, rápido e agradável. Oferece vários pratos locais, saladas e mariscos. Quem o desejar também pode fumar aqui a tradicional shisha ou optar por um cocktail ao final da tarde. Outra boa opção é o Al-Shami, localizado no centro da área de mercado da cidade velha, atrás da Mesquita de Al-Sharif Al-Hussein bin Ali. A comida tradicional árabe, nomeadamente algumas especialidades jordanas, com cordeiro, arroz e legumes, podem ser aqui degustada num clima descontraído e casual e a preços convidativos. Em Petra, os visitantes podem optar pelo Al Qantarah ou pelo Petra Kitchen.
Informações
Para entrar na Jordânia é necessário um passaporte com validade de, pelo menos, seis meses. A Primavera e o Outono são os períodos ideais para visitar o país, em particular se o destino for Aqaba, o deserto de Wadi Rum e Petra. Nestas estações, as temperaturas são mais agradáveis, enquanto no Verão o calor é intenso. O visto de entrada na Jordânia é de cerca de 50 euros, 40 dinares jordanos (cada unidade desta moeda é equivalente a aproximadamente de 1,30 euros), mas se o destino final for Aqaba não será necessário pagar esta taxa no aeroporto de Amã. Em Petra, é necessário pagar 50 dinares jordanos (62 euros) para obter um passe turístico de um dia.