[Sentámo-nos - frente a frente - com os sonhos, com os medos. Enfiámos os medos todos num saco - preto. Pegámos na balança e pesámo-los. Assustámo-nos. Depois fizemos o mesmo com os sonhos e não havia saco que os fechasse, não havia lugar em que coubessem, não havia balança que os pesasse].
O relógio parou. Os ponteiros deixaram de rodar. O calendário deixou de contar os dias, as semanas, os meses. O tempo deixou de ser contado.
Esta será a mais fiel metáfora que encontro para vos dizer esta nossa viagem.
Tempo: que parámos, que ganhamos, que nos oferecemos.
Quando digo oferecemos, está longe de ter sido dado ou sem implicações. Não, não somos ricos (nem filhos de pais ricos), cortámos as amarras profissionais, abdicámos de alguns bens materiais, vendemos o nosso carro, pegámos em parte das economias que conseguimos juntar e trocámos tudo por isto: o desengavetar de sonhos; uma mão e meia cheia de países; vivências que nos alargaram cada um dos cinco sentidos e memórias (mil) para o futuro, contadas em palavras, ditas por imagens - tudo no blogue Menina Mundo.
No dia em que passámos a ser uma casa, de pernas e braços – pelo mundo -, estávamos como no dia em que nos havíamos conhecido, ainda miúdos de escola: de mochilas às costas e pés nas sapatilhas, mas agora com 17 anos de história partilhada e uma filha. De todas as nossas coisas levámos apenas 20 kg, mas foi com tudo o somos que fomos – e isso, nem quilos, nem litros, nem cifrões serão capazes de medir.
Foi assim, a três corações, que partimos. Nos ouvidos entravam-nos palavras fortes: como inspiração, sonho, amor, saudades. Ouvimos muitos: “gandas malucos”; “corajosos/loucos”; muitos “se alguém é capaz serão vocês” e muitos medos, desses que se alimentam facilmente de pequenas dúvidas, de pequenos “cuidado”; “e o que vocês têm?”; “e os empregos?”, “e a pequenina?”.
- E os sonhos? – respondíamos, às vezes sem nenhum som a sair-nos da garganta.
- E os sonhos? Quem nos trata dos sonhos?
Foi neste momento que nos sentámos, frente a frente – balança em braços – e pesámos medos e sonhos. E, das voltas que a vida dá, haverá sempre em nós gratidão por esta volta que demos aos medos. Porque os medos, esses, não percorrem a grande muralha da China; não sobem o Mekong; não plantam árvores a seis mãos; não lançam lanternas ao céu ou ao rio; não mergulham na baía onde desceu o dragão; não caminham pelos arrozais; nem nadam no oceano Pacífico, nem no Índico.
Os medos não atravessam o caos que são as ruas de Hanói; não tocam nem alimentam elefantes; não conhecem pessoas novas, nem provam novos sabores e não vivem entre montanhas. E nós fizemos isto tudo. E os medos não moram no meio da selva do Bornéu, onde apenas se chega e se sai de barco, para trabalhar em troca de casa e alimentação; não vivem dentro das muralhas da cidade rosa do Rajastão e sentem que pertencem ali. E nós fizemos tudo isso, com uma filha no colo. Fizemos tudo isso: em família; crescemos todos os dias: em família.
A Mia cresceu também em pernas e braços, em abraços e algumas birras. Cresceu em pés descalços e mãos na terra. E quão certo isto me parece! Cresceu, em viagem, como se se cumprisse essa “menina mundo”: numa aprendizagem que se constrói no contacto com a natureza, com os outros, com o mundo. É nesta aprendizagem que acredito, mesmo que os outros sejam os vizinhos e o mundo a rua para onde dá a porta de casa. Por isso, deixo que explore, que traga os pés descalços e com eles sinta a terra, a relva, a areia e a água do mar. Que prove a água da chuva e os seus cabelos soltos ao vento, que traga as unhas sujas: das mãos, dos pés. O banho resolve.