Uma chuva miudinha, tombando de um céu cinzento, recebe-me quando transponho, às primeiras horas da tarde, a monumental porta Košice, como uma visão fantasmagórica que se exacerba perante o silêncio que envolve a cidade muralhada.
Espero, a todo o momento, face à ausência de sons familiares, cruzar-me com a Biela Pani, a Dama Branca, com a sua beleza triste errando pelas ruas de cores alegres de Levoca.
Ainda é cedo, Biela Pani apenas ensombra as artérias quando a noite cai, tacteando as paredes que testemunham um passado glorioso.
Até lá, até o dia se extinguir, há muito para ver: à minha esquerda, logo depois da porta Košice, uma igreja, em tons de pastel e estilo barroco, marca o início de uma rua orlada de árvores e de casas pintadas de todas as cores do mundo, como que recordando ao turista que, durante a Idade Média, Levoca viveu o seu tempo de esplendor, pouco ou nada tendo mudado ao longo dos séculos.
A porta de madeira da igreja do Espírito Santo, vizinha do novo mosteiro, construído em 1750, é aberta por uma idosa (a maior parte da população professa a religião católica) e eu aproveito para admirar o interior, ricamente decorado, antes de estender os olhos ao longo da rua despida de gente, como se, por qualquer motivo, os residentes acabassem de acatar uma ordem de evacuação.
- Não é a época alta. Se voltares, um dia, no Verão, vais ver muita gente; por vezes, dependendo da data, mas mais no início de Julho, com tamanha afluência que, de repente, sentirás falta deste silêncio, enfatiza Dávid Bor, um jovem estudante que viveu toda a sua infância e adolescência em Levoca e só não nasceu na cidade por uma única razão:
- Não existia maternidade. Mas a minha mãe sempre viveu em Levoca e não é fácil convencê-la a visitar outros locais. É nesse ambiente sereno que se sente bem.
Dávid Bor (e a mãe) tem razão, a atmosfera reveste-se de quietude e, de acordo com os números orgulhosamente divulgados, no início do mês de Julho, a população local, que não excede os 15 mil habitantes, sente-se confusa perante a presença de 300 mil peregrinos. Uma rua perfila-se à minha direita, eu ergo os olhos mais para lá, primeiro até aos campos lavrados, depois, trepando a colina, até um prado de um verde viçoso e, finalmente, até uma igreja Neogótica cuja agulha do campanário ameaça furar os céus, parcialmente dissimulada por entre a neblina que faz das montanhas um berço. É a Marianska Hora, um dos mais antigos e famosos locais de peregrinação e onde, a 3 de Julho de 1995, o Papa João Paulo II rezou uma missa perante 650 mil fiéis que se acotovelavam em 21 hectares de terrenos agrícolas.
Admite-se, embora sem evidências documentais, que já em tempos de antanho existia uma pequena capela no dorso da colina, mandada construir pelos habitantes da região de Spiš (à qual pertence Levoca) como sinal de gratidão por terem sobrevivido aos raides tártaros entre 1241 e 1242. Desde então, tanto os residentes da cidade que é Património Mundial da UNESCO desde 2009, como todos os outros que vivem nas aldeias vizinhas, comemoram a data com uma procissão que atrai não apenas eslovacos mas muitas outras nacionalidades.
O mestre Ján Pavol
- A cidade da glória e do aroma mágico da Idade Média, um paraíso do Gótico e do Renascimento, uma galeria única de arte sacra, de gente famosa, de peregrinos e de lendas, a cidade cuja história vale a pena descobrir. Agora, se achas que estou a exagerar, passeia e volta mais tarde para me contar se tenho ou não razão.
Como que respeitando uma ordem, despeço-me de Dana Kristekova e abandono o posto de turismo. Situada no sopé da cadeia montanhosa de Levocské Vrchy, Levoca é uma verdadeira jóia cultural entre as cidades eslovacas, acolhendo um grande número de monumentos arquitectónicos. É necessário recuar até ao distante ano de 1249 para encontrar a primeira menção a uma comunidade então conhecida como Leucha que, tirando partido da importância estratégica ao longo da rota comercial Via Magna, rapidamente atingiu o estatuto de vila.
Sem surpresa, Levoca tornou-se o centro da colonização germânica de Spiš e, pouco anos mais tarde, em 1271, foi promovida a capital da associação dos saxões daquela região. De forma gradual, esta influência esbateu-se, mas Levoca, vivendo uma vida próspera, não se detinha no seu crescimento, com a força e a pujança de um burgo, desenvolvendo-se à custa do comércio e com uma dimensão cada vez mais internacional.
Os habitantes, com uma visão ímpar, negociavam com mercadores de Cracóvia, com as cidades da Liga Hanseática, até com Veneza; os artesãos não produziam apenas para consumo próprio, como também para os mercados e as feiras que tinham lugar na Polónia e na Velha Hungria Unida – e Levoca, sem favores, transformava-se num dos palcos do Renascimento e do Humanismo dessa Grande Hungria.
Sento-me para admirar a beleza estética da Námestie Majstra Pavla. As cores das fachadas das casas burguesas, de um lado e do outro, prendem-nos como os olhos sonhadores de uma mulher apaixonada.
No total, são mais de 60, de estilo renascentista, uma herança viva de uma idade de ouro que atraiu artistas e, graças ao incremento do comércio (ferro, borracha, peles, milho e vinho), fez de Levoca um importante centro cultural – o humanista inglês, Leonard Cox, foi mestre-escola na cidade durante um ano (em 1520) e, já no século XVII, os irmãos Laurenz e Bruno Brewer, proprietários de uma livraria, decidiram criar, no número 26 da Námestie Majstra Pavla, uma tipografia que se manteve em actividade durante mais três gerações com o estatuto de uma das mais produtivas em toda a Hungria e imprimindo livros de uma qualidade marcante para a época.
Alguns turistas alemães caminham sem pressas pela praça dominada pela majestosa igreja católica-romana de Sv. Jakuba, erguida no século XIV (no lugar onde em tempos existiu uma outra) e ainda hoje um dos monumentos mais sagrados de todo o país, com a sua torre delgada da primeira metade do século XIX. Mais precioso, ainda, é o interior deste lugar outrora de culto, na actualidade um museu único da arte sacra medieval (nas décadas que se seguiram à sua construção as paredes foram revestidas de frescos).
Perscruto o altar, em madeira de tília e do gótico tardio, e por ali fico, como que magnetizado, fitando até o olhar chegar a uma altura de quase 19 metros, orgulhoso por estar de frente para um dos mais altos do mundo neste estilo e levantado, em diferentes etapas, entre 1508 e 1517 pelo mestre Paulo, um dos mais famosos escultores da Idade Média (a toponímia da praça presta-lhe homenagem), com obra espalhada por outras cidades eslovacas.
Beleza estética
Mesmo ao lado da igreja, os noivos correspondem às exigências do fotógrafo, recortados por uma bela estrutura com as suas elegantes arcadas que acolhe a câmara municipal e com uma história que remonta ao século XV mas destruída duas vezes, em 1550 e em 1599, na sequência de incêndios – e logo restaurada e ampliada, em 1615, ano em que também foram acrescentados os arcos que decoram rés-do-chão e primeiro andar (que acolhe diferentes exposições). Posterior é a torre sineira renascentista na fachada norte, enquanto a que está virada para sul exibe uma pintura original e outras entre as suas janelas, representando virtudes como moderação, prudência, bravura, paciência e justiça.
Em contraste com estes valores – ou para os valorizar -, a meia dúzia de passos encontra-se a jaula da vergonha, uma estrutura em ferro utilizada para castigar os autores de pequenos delitos durante o século XVI e que conheceu duas outras localizações antes de ser oferecida, em 1933, pela família Probstner e colocada em frente à câmara municipal.
A cortina do céu ameaça abrir-se mas não passa de uma promessa e a chuva volta a cair, ainda que de uma forma dócil. A Námestie Majstra Pavla continua a oferecer-me motivos para permanecer: o museu dedicado ao Mestre Paulo (Ján Pavol), a Casa do Comércio, em tempos abrigo de ourives e cenário de muitas outras funções até ser renovada para receber nos dias hoje os serviços administrativos, mas também a Grande Casa Provincial (Levoca foi desde o século XVI e até finais de 1922 sede da província de Spiš), um projecto do arquitecto de Eger, Anton Povolny, que ajustou na perfeição o seu estilo clássico ao carácter renascentista da cidade, colocando ênfase nas linhas horizontais - e rapidamente considerada como a mais bonita, entre as casas provinciais, de toda a Hungria.
Um menino equilibra-se no seu skate e aproveita a inclinação suave da praça para gozar dos últimos minutos de luz do dia. Veloz, passa em frente da admirável fachada da Casa Thurso (nome de uma família famosa de Levoca que aquí viveu até meados do século XVI) sem lhe prestar atenção, numa atitude de todo impensável para qualquer turista, tal é o encantamento que produz em todos os olhares com as suas cores e os seus esgrafitos do início do século passado. Volto a encontrá-lo, agora com o skate na mão, na parte mais baixa da Námestie Majstra Pavla, recortando uma casa pintada de um verde desmaiado.
A meio da fachada duas palavras: Biela Pani.
Centro da Reforma Protestante no norte da Hungria, a cidade começou a assistir ao seu declínio no século XVII, durante as rebeliões contra a monarquia Habsburgo. Júlia Korponayová, natural de Oždnay, uma aldeia no sudeste da Eslováquia, casa-se por essa altura com Ján Korponay, um dos líderes da revolta. Numa tentativa para recuperar alguns dos bens confiscados ao filho, Júlia Korponayová aceita actuar como espia para o imperador e, com esse objectivo, é enviada para Levoca, então cercada pelas tropas dos habsburgos.
Esta mulher, imortalizada pelo escritor húngaro Móric Jókai e pelo pintor Viliam Forberger (o quadro encontra-se na câmara municipal), rapidamente se tornou amante do barão rebelde Štefan Andrássy, a quem roubou as chaves da cidade para as entregar ao inimigo, materializando uma ocupação à qual os húngaros não ofereceram qualquer resistência.
O dia desaparecera por completo, à janela do quarto chega um longínquo rumor.
De acordo com a lenda, Júlia Korponayová perdeu os favores do imperador no momento em que aceitou receber cartas dos rebeldes exilados na Polónia. Acusada de traição, foi alvo de torturas e executada a 25 de Setembro de 1714 em Györ.
A Námestie Majstra Pavla está agora envolta no mais profundo silêncio. Algures, nos túneis secretos da cidade, move-se Júlia Korponayová. A Biela Pani. A Dama Branca.
Castelo com vista para o mito
Ainda dei uma corrida mas, quando cheguei à paragem, já o autocarro avançara, sem que o motorista se apercebesse dos meus acenos. Agora teria de esperar mais uma hora. Caminhei ao longo de uma rua bordejada de casas térreas, de matizes vivos, encimadas pelo castelo imponente abraçado por um halo de bruma. Passam poucos carros mas tento a minha sorte. O primeiro detém-se.
- Uma vez, há já alguns anos, vi um programa na televisão sobre um casal eslovaco em viagem pela Nova Zelândia a quem os locais nunca negavam ajuda. Por isso, sempre que vejo um turista, sinto prazer em fazer o mesmo. Queres que te leve ao castelo?
Agradeci mas respondi que não. Já o havia visitado.
- Então levo-te a Prešov. Vou só buscar a minha namorada.
Dávid Bor espera uns segundos e surge Anett, sorridente. Deixo que se sente à frente e o carro circula agora por uma estrada secundária, pelo meio da natureza verdejante. Ao lado, na auto-estrada, a vida parece decorrer com mais pressa.
- É a primeira auto-estrada que temos. Com o dinheiro que pago de portagem posso fazer outras coisas, como jantar fora.
Ao cimo, nas suas cores cinzentas, continuo a avistar o castelo.
Mencionado em crónicas já em 1209 (a torre central data dessa época mas a construção teve início ainda no século XII), o Spišský hrad, com a sua localização privilegiada, desempenhou um papel fundamental para repelir as invasões dos tártaros em 1241 e, ao longo dos séculos XV e XVI, governantes e famílias nobres continuaram a acrescentar fortificações e palácios, até que, já em 1780, perdeu toda a sua importância militar, agravada com o facto de ter sido parcialmente destruído na sequência de um incêndio. Em 1970, começaram as obras de restauro, um esforço compensado em 1993, quando a UNESCO integrou a fortaleza na lista de Património Mundial – e filmes como A Última Legião (2007) e Coração de Dragão (1996) elegeram-no como cenário.
- Sabes que este é um dos castelos mais assombrados da Europa Central? As tropas inimigas tentaram conquistá-lo e nunca tiveram sucesso. Muitas pessoas, em tempos medievais, viam-no como um ovni. E, claro, há um mito, uma lenda a envolvê-lo, uma história de vinganças em tempo de guerra com os polacos. Há quem diga que o fantasma de Hedviga, uma das protagonistas, ainda hoje deambula por ali e a sua cara surge, de quando em vez, nas paredes do castelo.
Por instantes faz-se silêncio dentro do carro e eu recuo um pouco na minha errância, até à quietude observada em Spišská Kapitula, a curta distância de Spišské Podhradie, no sopé do castelo. Rodeada por muralhas do século XVI, Spišská Kapitula é um complexo católico que remonta ao século XIII, com bonitas casas góticas de um lado e do outro da única rua – e que liga as duas portas medievais. No alto, projecta-se a catedral de St. Martin, construída em 1273, com as suas torres gémeas românicas e um santuário gótico, com altares impressionantes do século XV. Não muito longe da catedral, um seminário e o palácio renascentista do bispo, contribuindo, todos juntos, para conferir legitimidade a quem designa Spišská Kapitula como o Vaticano da Eslováquia.
- Não tens nada que agradecer. Fico feliz por ter ajudado. Espero que leves uma boa impressão do país, diz-me Dávid Bor quando nos despedimos em Prešov.
Levo. E uma pequena parte de Biela Pani e de Hedviga.
GUIA PRÁTICO
Quando ir
O clima da Eslováquia sofre fortes influências da Europa Continental, com verões quentes e secos e invernos rigorosos. Janeiro é, por norma, o mês mais frio, com temperaturas negativas, especialmente nas regiões montanhosas, onde a queda de neve é frequente. O Verão é a melhor altura para visitar o país (os termómetros, durante o dia, andam pelos 22/25 graus mas podem chegar aos 30), sendo Julho o mês com melhor média (22 graus).
Como ir
Levoca, com cerca de 15 mil habitantes, não tem aeroporto e o mais próximo, servido por companhias aéreas internacionais, é o de Košice, a 90 quilómetros de distância. De Portugal, não há qualquer ligação aérea directa à segunda maior cidade eslovaca, pelo que a opção mais prática passa pela Austrian Airlines, com uma escala em Viena. A tarifa para um bilhete de ida e volta não fica muito em conta (um pouco mais de 600 euros), mas pode sempre estudar outras alternativas: um voo barato até Barcelona e, desde Girona, com a Ryanair até Bratislava (apenas às segundas e sextas e por cerca de 150 euros, ida e volta); ou voar até Praga e, desde a capital checa, com a Czech Airlines, até ao aeroporto de Barca, a escassos seis quilómetros do centro de Košice. Do terminal, a não mais do que dez minutos a pé da zona histórica da cidade, saem oito autocarros por dia para Levoca, um trajecto que se cumpre em cerca de uma hora e meia e com preço (ida) de 4.90 euros. Os horários podem ser consultados em www.eurobus.sk e se, por qualquer motivo, perder uma dessas ligações, tem a possibilidade de recorrer a Prešov como escala para chegar a Levoca (peça ao motorista para o deixar na paragem próxima da parte antiga). De regresso a Košice – se for o caso – poderá aproveitar para visitar Spišské Podhradie (na mesma direcção), a 20 minutos de autocarro.
Onde dormir
Situado no coração do centro histórico, na Majstra Pavla, 55, o hotel Stela proporciona conforto e uma atmosfera familiar. Com uma longa história (já no século XVI recebia mercadores de passagem pela cidade), o Stela cobra, na época alta, 51 euros por um single, 71 por um duplo e 81 para quem preferir uma das suites. Na mesma praça, no número 26, num edifício totalmente renovado e que em tempos acolheu uma tipografia, encontra o Arkada, com preços mais em conta (37 para um single, 54 por um duplo e 65 por uma suite). Finalmente, na Nóva, 65, pode desfrutar de um espaço acolhedor e calmo, o Oáza, uma casa que dispõe de seis quartos e com preços (a partir de 10 euros) à medida de quem viaja com orçamentos reduzidos.
Onde comer
Em Levoca, goze do prazer do Bašta, que significa bastião, por se encontrar num deles, no interior da cidade muralhada, com preços atractivos e comida deliciosa, do U Leva (literalmente no leão), instalado no Hotel Arkada e com uma ementa convidativa e, para algo mais tradicional, experimente o Spišský salaš, em Spišské Podhradie, vizinho do castelo de Spiš.
Informações
A moeda em curso, desde 1 de Janeiro de 2009, é o euro. Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (passaporte, bilhete de identidade ou cartão de cidadão) para visitar o