Fugas - Viagens

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    A catedral de Zagreb Nikola Solic / Reuters
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    Mulher coberta com as lamas numa praia de Nin Mulher coberta com as lamas numa praia de Nin

No país que combate a melancolia

Por Victor Ferreira

A Croácia é sinónimo de ilhas, mar límpido e calmo, praias e Dubrovnik. Mas para lá desta jóia superpopulada de turistas há outros locais menos conhecidos que merecem entrar no roteiro dos viajantes, numa viagem pela costa, do Norte ao Sul. Mar meu, mar meu, diz-me lá que croata sou eu?

Paula Padovan, 38 anos, expressa-se fluentemente em português, apesar de nunca ter tido educação formal na língua. Enquanto guia turística em Zadar, uma cidade na costa leste do Adriático, tem muitos clientes que falam português, embora a maioria seja de origem brasileira. “Espero que isso mude nos próximos tempos”, diz, sorridente, demonstrando grande apreço pela língua que diz ter aprendido “pela Internet, com uma rapariga croata”. “Comprei um livro de gramática e de resto esforcei-me muito para adquirir o vocabulário”, prossegue. O seu conhecimento do italiano ajudou, o empenho fez o resto. E empenho é algo que rima muito bem com a Croácia, ou não tivessem o país, o povo e o Estado que se empenhar fortemente por uma cultura e uma identidade que, ainda hoje, não sobrevive sem um permanente confronto com um passado multifacetado que por vezes chega a parecer esquizofrénico.

Quis o destino que a data desta reportagem coincidisse com a data de uma efeméride importante: o Dia da Declaração da Independência da Croácia face à antiga Jugoslávia. Foi a 25 de Junho de 1991, há precisamente 25 anos, que o parlamento croata (Sabor) declarou em nome do país a sua separação da federação jugoslava. E quis o destino que esse dia seja também o do aniversário de Paula, que se recorda bem dos tempos em que o país estava mergulhado na guerra dos Balcãs. “Acho que esses tempos sombrios passaram, mas eu costumo dizer que não dou nada por garantido. Foram dias muito duros, Zadar foi bastante poupada, mas as marcas continuam cá, nas nossas ruas, em alguns monumentos, dentro de nós”, sublinha.

Não é preciso muito mais para se compreender que a construção identitária croata é um processo ainda em curso e que visitar a Croácia é mais do que passear por um país muito conhecido pelas suas mais de mil ilhas, algumas delas muito apetecidas pelo turismo que aprecia as cores tranquilas do Adriático. Em contraponto a essa tranquilidade, o país fervilha: ele é o processo de adesão à moeda única europeia, que pôs as finanças sob vigilância de Bruxelas; ele é o receio, remoto mas ainda presente na psique colectiva, de que as lutas na Bósnia entre sérvios muçulmanos e bósnios se reacendam; ele é o fluxo turístico que não dá sossego a cidades-emblema como Dubrovnik; ele é a aposta em novos mercados como o italiano, o russo e o português, que levaram a Croatian Airlines a abrir novas ligações aéreas directas para cidades como Lisboa; ele é, no que toca a Zadar, a eleição desta cidade como melhor destino europeu de 2016, distinção que em anos anteriores já foi atribuída a cidades portuguesas como Lisboa e Porto (duas vezes). Se no passado, a identidade local estava pressionada por sucessivos ocupantes ou invasores, desde os Venezianos ao Império Austro-Húngaro, passando pelos turcos e os gemânicos, hoje é a pressão turística que parece colocar os responsáveis croatas em frente ao espelho azulado da água do Adriático a perguntar: mar meu, mar meu, diz-me lá que croata sou eu?

Quem aterra no aeroporto de Zagreb não vai encontrar uma resposta para uma pergunta tão profunda. Mas à saída da aerogare arrisca-se a ser surpreendido. Porque quem deixa o terminal principal depara-se com uma paisagem incomum para um aeroporto de uma capital europeia: a habitual azáfama de carros, autocarros e toda aquela coreografia de partidas e chegadas desenrola-se em frente a um parque verde, cheio de árvores e bancos de jardim. O mais comum é ver florestas de parques de estacionamento, prédios de serviços e hotéis, uma floresta de betão e sinais publicitários. Por isso, o viajante que se prepare para a primeira surpresa. Que não responde a perguntas complexas, mas que o preparará para a descoberta de um país que parece apostado em combater a melancolia.

“Eu revejo-me nessa ideia” de um país que combate a melancolia, diz Paula, que será a guia de serviço quando o grupo da Fugas chegar a Zadar. Mas antes de aí chegar por auto-estrada, a viagem segue rumo ao norte, Opatija, cujas primeiras referências históricas datam do século XV. E, curiosamente, é nessa pequena cidade ao lado de Rijeka, no noroeste do país e a 50km da cidade italiana de Trieste, que se pode encontrar a primeira referência turística a esta ideia de um país que combate a melancolia.

Opatija, um rico sonho

Em croata, Opatija quer dizer abadia, por causa do mosteiro e da igreja que estão na base da fundação desta vila que há cerca de 170 anos se tornou numa coqueluche do turismo europeu, especialmente para a realeza de então, os nobres e os endinheirados. A expansão deste berço turístico começou em 1844, quando Ignio Scarpa, um empreendedor rico de Rijeka, comprou as terras onde viria a construir, em homenagem à sua mulher, uma das casas mais famosas de Opatija, a Villa Angiolina.

É ainda hoje um ponto de passagem obrigatório para os visitantes, seguindo as peúgadas de nomes ilustres dos séculos XIX e XX que por ali passaram por razões diversas. A mais relevante para a questão identitária talvez seja o facto de em Opatija o Adriático se estender a dois passos de distância da montanha Ucka (lê-se Utschka), uma combinação que permite o melhor de dois mundos ao longo do ano: praia no Verão, montanha e neve no Inverno.

Albert Einstein foi um dos ilustres habitués de Opatija; a bailarina Isadora Duncan e o compositor Gustavo Mahler também; da realeza, os registos mais antigos mencionam o Imperador Francisco José, e os mais recentes assinalam um sem número de vedetas do cinema mundial, porque se trata de uma terra muito procurada pelas grandes produções cinematográficas. Não se espante se der de caras com um Robert de Niro ou uma Naomi Watts a andarem por ali descontraídamente, tal como em tempos mais remotos o fizeram Charlie Chaplin ou Kirk Douglas.

O Hotel Kvarner, que abriu em 1884 como a primeira unidade local, é uma das jóias da coroa desta riviera que se estende muito para lá e para cá de Opatija. Era, e é ainda hoje, o poiso para aqueles que procuram o clima ameno desta localidade, outrora recomendada pelos médicos da elite austro-húngara e, depois, de toda a Europa, para curar diversas enfermidades. Uma referência a esse passado que se transportou para os dias de hoje encontra-se num placard turístico na Villa Angiolina, em que se menciona que Opatija era procurada pela combinação única dos ares marítimos e de montanha para curar “problemas respiratórios e cardíacos sérios”, bem como “depressões e estados de melancolia”.

Mesmo depois da I Grande Guerra, que pôs fim ao domínio Austro-Hungaro, Opatija manteve essa aura de ser a “Meca” do turismo de saúde, altura em que os italianos escolheram esta cidade tão perto das suas fronteiras como o principal resort para restabelecer forças. “Opatija foi promovida a lugar que tinha um efeito milagroso sobre os doentes e cansados”, lê-se num dos guias da cidade. E depois da II Grande Guerra, esses atributos estiveram presentes na fundação da Talassoteraipa – um hospital, aberto em 1957, especialmente para cardíacos, gente com problemas respiratórios e doenças reumáticas. Hoje, se alguma coisa dói, são os olhos que vêem mais beleza do que a memória humana pode reter. E o coração, quando chega a hora da despedida.

Evitando os grandes aglomerados turísticos actuais da Croácia, como a já citada Dubrovnik – onde chegam diariamente dezenas de milhares de turistas de todo o mundo, atraídos pelas mesmas razões que levaram a UNESCO a declarar aquela cidade Património Mundial –, a viagem da Fugas por este país teria mesmo assim de prosseguir para sul, em direcção à Dalmácia. O próximo destino é a cidade mais antiga da Croácia, Nin, a Guimarães lá do sítio. Seguindo primeiro pela linha de costa e depois pelas boas auto-estradas que o país possui e que furam, através de múltiplos túneis, as muitas formações rochosas que pontuam a paisagem nesta zona, chega-se confortavelmente a este pequeníssimo povoado que se proclama como o berço da Croácia e que atrai milhares de pessoas anualmente também por causa das lamas medicinais que justificaram a abertura de um resort no centro da lagoa principal de Nin, muito próxima da mais longa praia arenosa do país (e fica o aviso para quem gosta de praia: aqui, muitas praias têm cascalho e não areia).

Nin, onde tudo começou

Nin situa-se a cerca de 15km a Norte de Zadar, numa ilha de 500 metros de comprimento. É palco de uma história de 3000 anos de tumultos, uma espécie de “cidade-igreja” rodeada de água, que testemunha alguns dos mais antigos exemplares da cultura croata desde os séculos IX e XII.

Reza a história que foi um dos principais locais ocupados pelos Libúrnios até à chegada dos conquistadores romanos, altura em que passou a chamar-se Aenona. Devastadada e abandonada por duas vezes, nos séculos XVI e XVII, tinha sido um importante porto. Hoje tem cerca de 1700 habitantes e vale sobretudo pelo interesse histórico, com exemplares arquitectónicos e arqueológicos únicos.

É curiosa a Igreja de Santa Cruz (séc. IX), considerada a catedral mais pequena do mundo, e a colecção arqueológica guardada no museu local. O acesso à vila pode ser feito por uma das duas pontes velhas. Os croatas terão colonizado a cidade algures no século VII e no século seguinte foi criada a primeira formação de governo que daria origem à primeira cidade real croata.

Quem a visita é recebido, numa das pontes, pela estátua do príncipe Branimir, duque da Croácia que reinou 13 anos, no final do século IX, período durante o qual a Igreja de Roma deu o reconhecimento papal à soberania croata, mantendo o país acima das pretensões territoriais e de poder dos bizantinos e dos francos. Terá sido nessa altura que a Croácia se tornou independente de jure. E essa história passa por Nin, ao lado da qual se estende uma riviera que oferece praia, saúde e natureza, desde as localidades de Zaton, Privlaka e Vir, todas de acesso fácil.

Zadar, o sinónimo de sol

De Nin a Zadar é uma viagem rápida que vale a pena fazer com tempo, sobretudo porque Zadar é, de facto, um diamante ainda bastante desconhecido do grande público. Um ilustre visitante do seu tempo, Alfred Hitchcock, disse dela que ali se pode ver o pôr-de-sol mais bonito do mundo. “Foi uma frase que ficou famosa e que é muito importante para a cidade”, recorda a guia Paula Padovan.

Foi em 1964 que Hitchcock o disse, enquanto visitava um fotógrafo local, seu amigo, de nome Ante Brkan. “Há quem graceje com essa afirmação dizendo que o realizador já teria bebido maraschino [licor de ginja]”, acrescenta a guia, com um sorriso, enfatizando que o tal licor é bastante forte. Mas, com ou sem álcool, será fácil dar razão a uma afirmação tão hiperbólica, se se tiver a oportunidade de ver o sol a desaparecer nas águas do Adriático. E há óptimos locais para isso, como a instalação pública denominada Saudação ao Sol ou o Órgão de Mar, duas criações recentes situadas na marginal.

O Órgão de Mar é uma engenhosa construção concebida por Nikola Basic e inaugurada em 2005. Caracteriza-se por aberturas feitas nos degraus de mármore da escadaria que dá acesso às águas do Adriático e funciona da seguinte forma: sempre que a maré sobe ou quando um barco passa pela marina e agita as águas naquele local, as ondas batem nos degraus e o ar passa pelo sistema de tubos de plástico e pelas cavidades que ficam por baixo do mármore, o que produz e faz ecoar um som, como se se tratasse de um órgão. É um som algo melancólico, diz quem já o ouviu – e lá voltamos ao adjectivo com que já nos tínhamos cruzado.

Mas não há melancolia em Zadar. É até uma boa vacina contra estados de alma desse género. A cidade está repleta de museus, ruínas romanas e exemplares da arquitectura medieval. Em alguns espaços públicos subsiste a marca de um passado recente, marcas de uma guerra civil que não se apagaram, porque todos querem esquecer, mas é preciso lembrar, que “tudo muda num instante e quando menos se prevê”, resume Paula.

Dali é fácil zarpar por mar através da Jadrolinija, um ferry que liga a ilhas e assegura também acesso fácil internacional a outros destinos, como Itália. Como toda a Dalmácia, Zadar foi regida por Veneza no século XV. Ainda hoje tem a cultura como marca identitária, por meio da música, do teatro e do cinema. E da criatividade, bem patente na outra instalação pública já referida, a Saudação ao Sol. Obra do mesmo arquitecto Nikola Basic, encontra-se na ponta da península de Zadar, muito perto do Órgão de Mar e é composta por 300 placas de vidro instaladas no solo, perfazendo um círculo de 22 metros de diâmetro.

Por baixo do vidro existem células fotovoltaicas que, durante o dia, acumulam  a energia proveniente do sol e que, à noite, iluminam esse círculo com luzes de diversas cores. Parece uma pista de dança, mas a Saudação faz mais do que isso: fornece energia eléctrica a todo o sistema de iluminação pública da marginal, com um custo três vezes inferior ao da energia eléctrica fornecida pela rede pública. Além disso, simbolicamente representa a forma geométrica de um anfiteatro que inclui uma representação do sistema solar, com os planetas e as órbitas.

Resumidamente, a cidade é uma antiga zona portuária, muralhada e com torres, construída numa península segundo os preceitos urbanísticos dos romanos, com as ruas principais a estenderem-se de forma longitudinal. Repositório da arquitectura antiga, medieval e renascentista, o turismo de Zadar dá destaque ao que resta do Fórum Romano e à catedral de Santa Anastácia.

E para quem prefere paisagens menos urbanas, recomenda-se a viagem pelas ilhas, que se espraiam em torno da península e protegem Zadar dos ventos. São ceca de 150 ilhas de diferentes dimensões, vizinhas de uma região que possui ainda seis parques nacionais e naturais, e que são outro trunfo deste pequeno país que aposta tudo no turismo para fortalecer a sua economia, focando-se nos nichos dos que gostam de viajar para locais que oferecem possibilidades de actividades ao ar livre e de aventura na natureza.

Split, herança de Diocleciano

Completando a viagem em direcção ao sul, mas sem toocar na ponta onde fica Dubrovnik, chega-se finalmente a Split, pouco mais de uma hora de viagem por estrada desde Zadar. Split é a segunda maior cidade do país e a “capital” da Dalmácia. O seu coração é o Palácio de Diocleciano, mandado construir por este imperador romano no século IV. Uma construção histórica que perfaz boa parte da cidade antiga de Split e que continua visitável, tendo parte do seu interior transformado numa espécie de mercado local.

Os adeptos incondicionais da famosa série de televisão Guerra dos Tronos, que passa em Portugal num canal por cabo, reconhecerão talvez alguns dos sítios deste palácio, nomeadamente as galerias situadas por baixo e que serviram de cenário a algumas cenas dessa ficção de culto que tem arrastado multidões.

Aliás, não é só ali que se encontram palcos desta série. A cerca de meia hora de carro de Split – que tem um aeroporto com ligações internas a Zagreb, mas também voos internacionais directos –, está o santuário de Klis, de onde se pode avistar toda a baía e pensínsula de Split: os verdadeiros aficcionados de Guerra dos Tronos reconhecerão, olhando lá de cima, o que na série foi chamada de Baía dos Escravos.

A cidade não perdeu esta oportunidade de estar associada a um dos produtos televisivos modernos de maior sucesso mundial e tem usado – e bem – este facto para reforçar a sua promoção nos mercados internacionais.

Fundada como uma colónia grega, Split passou pelas mãos dos romanos, dos venezianos, bizantinos, otomanos e húngaros, para nomear apenas alguns. Essa sucessão de poderes deixou naturalmente marcas que ainda hoje são visíveis na sua arquitectura urbana, caracterizada por uma profusão de estilos. A catedral local, católica (como a esmagadora maioria da população) é composta por um mausoléu imperial romano e uma torre sineira, sendo a igreja dedicada à Virgem Maria. É considerada a catedral mais antiga ainda em uso na sua estrutura e desenho original, datando a sua consagração do século VII, apesar de a torre ser já do século XII.

À pergunta “é verdade que Split tem as mulheres mais bonitas da Croácia” – uma afirmação que se ouviu da boca de uma mulher de Zagreb –, Nives Marusic, guia para turistas de língua inglesa, espanhola e portuguesa, responde com um sorriso meio envergonhado e humilde, como se esperaria de uma mulher de Split que é posta perante essa pergunta. Talvez a única resposta aceitável seja: não há um padrão de beleza universal. O que há é uma alegria no rosto de quem, de facto, tinha muitas razões para ceder à melancolia e, no entanto, não perde uma razão para sorrir à vida.

GUIA PRÁTICO

Como ir

De avião, a opção mais imediata para quem viaja a partir de Lisboa são os voos da Croatian Airlines, que começou em Maio com três ligações semanais entre a capital portuguesa e zagreb (voos às segundas, quartas e sextas-feiras). O hub desta companhia que integra a rede Star Alliance, situa-se em Zagreb, a partir de onde se pode chegar facilmente por voos internos a Split, Zadar e mesmo Dubrovnik.

O que comer

A gastronomia croata assenta na dieta mediterrânea e todas as cidades têm múltiplas opções para apreciar as iguarias locais. O azeite está sempre presente, bem como o pão, os queijos e as azeitonas, que estão tão presentes à mesa como as camélias se encontram nos jardins e a lavanda nos campos espalhados pelo país. O inevitável goulash é de experimentar, havendo uma forte selecção de carnes e peixe fresco nos melhores sítios para se comer. Curiosamente, nas épocas de Natal, os croatas comem bacalhau – e chamam-lhe bakalar. Mas é muito fácil encontrar este e outros exemplares durante todo o ano. Além disso, há uma forte influência italiana, com uma grande variedade de massas.

A Fugas viajou a convite da Croatian Airlines

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