Fugas - Viagens

  • Adriano Miranda
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Dentro de uma Rússia há sempre outra Rússia

Por Luís J. Santos

De Moscovo a São Petersburgo, navegamos por uma estrada de água de mais de mil quilómetros e mil e uma histórias. Entre cidades monumentais, ilhas-museu, mosteiros e catedrais, uma doce viagem por uma Rússia matrioska.

Ao virar de uma esquina da Praça Vermelha, Estaline, Lenine, Ivan o Terrível e Putin sorriem-nos. Os sovietes afiam o bigode, o velho Ivan controla a cena, o novo czar apõe os óculos de sol. Estaline está, curiosamente, a contar rublos. Lenine pisca-lhe o olho. Isto não deixa de ser estranho, tendo em conta que acabámos de ver a múmia deste último sob beata iluminação no seu santuário negro, o busto do outro no seu túmulo, que já pressentimos a tumba do Terrível na catedral vizinha e já passámos perto da residência do Presidente. Mas este quarteto à nossa frente é, claro, apenas para turista ver. Isto de os apanharmos em momento de descontração a repartir o dinheiro das fotos com os turistas é um acaso.

“Pareces tal e qual o Putin!”, dizemos ao seu imitador na língua universal possível — o nosso russo é zero, o que será uma chatice ao longo da viagem, e estes actores, tal como grande parte das pessoas que encontraremos ao longo de uma semana e meia de passeio por esta Rússia de água doce, não domina outros idiomas. “Putin” percebe e sorri, vaidoso. Guarda o seu quinhão no bolso e faz-se à foto, musculando o fato. Nos seus óculos espelhados brilha o sol, reflexos da Praça Vermelha, dourados das igrejas e das lojas de marcas de luxo mundiais que nos rodeiam, talvez a velha e também a nova Rússia, tudo misturado.

É esse mote-matrioska que nós — um virgem na Rússia, outro em regresso ao país que visitou na adolescência já lá vão 35 anos — pressentiremos a cada passo: sempre que pensamos ter percebido alguma Rússia, descobrimos dentro outra, depois outra… A navegar num pequeno navio nascido ainda em tempos soviéticos, deslizaremos pelo extraordinário sistema que liga o Volga, o maior rio da Europa, ao Báltico, obra-prima da engenharia que se prolonga por mais de 1100km. Melhorada ao longo de três séculos, a via segue entre rios e canais, eclusas astronómicas, lagos artificias e lagos reais que são mares — vamos até passar pelos dois maiores do continente. Iremos, muito lentamente, dentro do nosso barco, o Andrei Rublev (baptizado em homenagem ao pintor tornado santo responsável, no século XV, pelos ícones ortodoxos tal como os conhecemos), a ver reflexos do mundo russo. Muita água e, a cada dia, uma curta paragem em terra, por cidades e aldeias históricas, ilhas-museu, mosteiros sobre lagos, por esplendor e ruínas, por memórias e sinais dos novos tempos. “Temos orgulho em recriar um pouco da nossa cultura e vida durante estes dias no barco”, dir-me-á Olga, directora deste clássico cruzeiro da Mosturflot, gigante histórica da navegação russa com século e meio de vida. “As pessoas admiram tranquilamente uma Rússia que poucos vêem, damos-lhe música e pratos tradicionais, umas pequenas lições de russo, umas grandes lições de história.” De cara redondinha, cabelo curtinho, loiro, a emoldurar o sorriso, Olga garante: “É artificial, claro, mas é também muito real.” Todos a bordo?

Como um sol de Moscovo

O sol já arde quando o nosso grupo de turistas avança de autocarro pelas estradas congestionadas desta Moscovo, área onde vivem mais de 12 milhões de pessoas, que parece toda ela em obras e imparável. “Estão a repavimentar tudo, há muita obra”, vai dizendo Elena, a nossa guia. “Vem aí muita coisa até ao Mundial de Futebol de 2018”, sublinha. A cidade renova-se a alta velocidade, ao contrário da nossa viagem. Elena terá tempo de ir pela história, dos mongóis aos czares, da revolução às dificuldades da URSS e após o fim desta até à esperança corrente da vida contemporânea, apesar dos pesares.

O venerado Teatro Bolshoi, com a sua imponente fachada, prende-se ao olhar mas avançamos logo a pé para o coração russo, esse outro centro do mundo, a Praça Vermelha. Quando chegamos, a praça está cortado ao meio por… obras. Pelo menos temporárias, já que está a ser montada a feira do livro. Entre os operários, de um lado brilha ofuscante a Catedral de São Basílio, chamas multicoloridas soltam-se das suas cúpulas-cebola encimadas pelo dourado-ouro. No outro lado, o Museu Histórico do Estado, vizinho da pequena e icónica Catedral de Kazan, destruída por Estaline e reconstruída pós-URSS.

Na lateral, penetramos pelas infinitas galerias comerciais GUM. “Noutros tempos, todos os soviéticos sonhavam vir aqui às compras”, diz Elena. Agora talvez todos os russos também sonhem, mas as “galerias do povo” são agora galerias de todas as Prada e Vuitton deste mundo. Lá centro cintila dinheiro. Chocam-se os tempos, chocam-se os poderes. Estar na Praça Vermelha e olhar em redor explica-nos muita coisa do poder: Igreja, Estado, Dinheiro. Entre tantos santos, o poder encontra-se com a memória no túmulo de um outro “santo”, uma espécie de pirâmide a vermelho-sangue e negro-luto: é o Mausoléu de Lenine, onde temos direito a alguns segundos em redor do corpo mumificado do líder da Revolução, no seu eterno e silencioso descanso apenas perturbado, claro, pelos turistas. Logo atrás, à muralha do Kremlin, fica um panteão de figuras dos tempos soviéticos, incluindo Estaline, relegado pela História a singelo túmulo e busto. Com os olhos no passado e no presente, fica-nos a questão: que fará a História com os líderes actuais?

Nem de propósito, vamos à casa do Presidente, figura tão popular e controversa como o serão os souvenirs com o seu rosto (t-shirts, canecas, ímanes, é escolher). Entramos pelo Kremlin, que, lembre-se, não é apenas sinónimo da presidência russa: kremlin vem de fortaleza (cada velha cidade russa tem o seu) e é onde a cidade começou no século XII — são 250 mil m2 entre muralhas de 20 metros de altura). Não veremos o Presidente mas espiamos a casa presidencial, o Grande Palácio do Kremlin, bem cercada por agentes que não nos deixam pôr pé em falso e sair do caminho. “Depressa, depressa”, gritam, com o ar mais maldisposto que vimos em toda a viagem. Tirando isso, o Kremlin é uma paz que sobreviveu a tudo, se bem que agora, quase a baterem as cinco da tarde, parece tremer por duas multidões inversas: a dos turistas e a dos muitos trabalhadores que estarão a terminar a jornada — e não deixa de ser marcante ver o Kremlin cheio de operários…

Dentro das muralhas (sendo o complexo de acesso pago), é passear pés e olhos pela dúzia de catedrais e palácios, incluindo os do Patriarca, o líder ortodoxo, um museu das artes, e os do Estado, que recebe espectáculos, ou o Terem, com as suas 11 cúpulas e o Arsenal, museu das riquezas czares. Da Catedral da Assunção — cuja magnitude advém do século XIV, luxo policromático e dourado onde o poder era coroado e os patriarcas da igreja eram enterrados — à Catedral da Anunciação ou do Arcanjo, onde até os olhos se levantam perante a tumba levitada de Dmitri, o filho assassinado de Ivan o Terrível — cujo túmulo também está aqui mas não se pode ver —, considerado anjo e por isso não enterrado sob a terra. Por todas, uma miríade de frescos e ícones. E que dizer de colossos tão singulares quanto o maior sino do mundo (quebrado por sinal) ou o maior canhão do mundo? Não diga nada e faça como toda a gente, faça-se a foto (até, prova provada, este vosso escriba tirou uma foto acompanhado por dois agentes de segurança do Kremlin, mais ou menos satisfeitos com a ideia…).

Saímos por entre jardins que Elena nos garante estarem sempre viçosos só para descobrirmos mais jardins de encher o olho, Jardins de Alexandre (o czar), espectáculo público monumental, matematicamente delineado entre mármore, verde e flores, com fontes e estátuas saídas das lendas. Com o calor que está não é de admirar que algumas crianças mais ariscas mergulhem a bom mergulhar no canal cruzado por pontes. Ali ao lado, outro monumento mais introspectivo, com as suas chamas e guarda de honra eternas — haveremos de voltar, nós e umas centenas, para acompanhar a cerimónia de mudança de guarda (é a cada hora certa) do Túmulo do Soldado Desconhecido, homenagem aos soldados soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial. Pode haver muitas opiniões, mas no ar sente-se o (também nosso) respeito por quem deu a vida para derrotar o exército nazi.

Em visita panorâmica, passamos os olhos do Palácio dos Romanov ao Museu Pushkin e pelo assustadoramente sólido edifício do ex-KGB. Paramos frente à única estátua resistente de Karl Marx, onde um bloco de granito reza “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Já houve discussões para retirá-la… Sinais dos tempos, como o são dois monumentos quase frente a frente, cada um do lado do rio. Descemos à Catedral do Cristo Salvador, branca que transluz com as essenciais cúpulas douradas a chamar-nos. O interior não desilude: parece tamanho do céu, poderosa, repleta de tesouros. É verdadeiro símbolo do regresso do poder da Igreja após o comunismo: tendo sido construída no século XIX, foi destruída de alto a baixo a ordens de Estaline no século XX. No ano 2000 foi inaugurada como nova, levantada do chão e da História. É ver para crer.

Do outro lado do rio, outra reinvenção: passada a bela ponte do patriarca, é descer as escadas para a esquerda e entrar no “ilhéu” (Bersenevskaya) da antiga Fábrica de Chocolate Outubro Vermelho, que tantas alegrias deu à pequenada. Toda a zona está em transformação e é um manancial de lojas, restaurantes, bares, galerias de arte, ginásios, empresas de media e artes (e apartamentos topo de gama) — incluindo o Strelka, Instituto para Imaginar o Futuro, organização não-governamental que quer revolucionar a cultura urbana. Por nós paramos no Primitivo, restaurante e bar de vinhos. Entre dois copos, descansamos enquanto olhamos para trabalhadores em actividade à frente de um grande grafitti galáctico, focado num astronauta de corpo inteiro.               

Ainda teremos tempo para um tour pela Moscovo nocturna, entre as luzes do skyline do bairro financeiro à iluminação eterna de memoriais como o da Grande Guerra Patriótica. E há que descer às profundezas do metro de Moscovo, atracção por si só, corrente de estações monumentais, reais galerias de arte, compostas de escadas rolantes quilométricas e corredores a chão polido, estátuas e esculturas, relevos e pinturas, lustres, frescos temáticos, azulejos e espigas de cerâmica, deusas humanas com armas da lavoura, soldados, operários, archotes de ouro. Quando deslizámos numa escada rolante e toca um instrumental do Tico Tico no Fubá até viajámos no espaço e tempo.

Na estrada de água

O barco vai de partida, adeus ao canal de Moscovo. Agora é uma semana de barco para o relaxe total. Esqueça os grandes cruzeiros. Aqui temos solário, três barzinhos e dois restaurantes, temos umas mini-aulas de russo, concertos, shows que incluem os passageiros, DJ com clássicos pop de sempre. Mesmo que não se dance, quem pode esquecer a imagem de um par a dançar em slow o Sailing popularizado por Rod Stewart ou, momento dos momentos, a Nikita de Elton Jonh pela noite fora enquanto flutuamos no Volga? Tudo no barco é pequenino, acolhedor e familiar, passeio contra-indicado para viciados em adrenalina. A grande maioria dos passageiros é, até, sénior, confirmam-nos, e nós até nos sentimos uns jovens.

Esta vai ser uma semana de sossego, a ver as margens passarem, o barco a cortar as águas devagarinho, uma vegetação mais rasteira que frondosa, aqui e ali, de vez em quando, um vilarejo, uma fábrica, uma ruína, umas crianças que nos dizem adeus de um cais, um agricultor seminu a cavar sob a torreira do sol. Uma paz minimal. E é mesmo um descanso, até porque os passeios a terra, um por dia, são curtos, duas ou três horas. O resto é contemplação. E comida, que, claro, praticamente todas as refeições são a bordo e vão exemplificando, na medida do possível, a cozinha russa. 

De vez em quando, desperta-nos a voz de Anna com o seu duo acordeonista, cantora potente e lírica que lança canções tradicionais ao ar com uma beleza de banda sonora perfeita. “Kalinka, kalinka, kalinka maya/V sadu yagada, malinka, malinka, maya” que, na verdade, é como quem canta amores cantando amores e framboesas. Quantas vezes se pode repetir este hino? “Muitas, muitas, até gosto de cantá-la.” Pequenina e roliça, a ruiva Anna é estrela da navegação, canta em palco, pelos corredores, canta connosco (até canta, e bem, o “Cheira bem, cheira a Lisboa” se for preciso).

E, de vez em quando, erguem-se surpresas enquanto navegamos. Lá à frente, subitamente, pode surgir a visão fantasmagórica no meio das águas do campanário da submersa catedral de São Nicolau sobre o Zhabna, um sinal do que está afundado em nome da nossa estrada de água. Não é caso único de afundanço, há mais pelo caminho desta excepcional via navegável.

“Volga, volga, minha mãe”, diz uma das canções russas que ouviremos na viagem. Não é de estranhar que uma das imagens mais belas seja a estátua da Mãe Volga, à entrada da gigantesca represa de Rybinsk. A “mãe” surge do rio, num pedestal-ilha com a mão estendida à sua frente como pronta a agarrar quem precisar de ajuda. Porque se agora a via é navegável e segura, nem sempre assim foi, muito pelo contrário. A obra de todo o sistema Volga-Báltico é impressionante e “em si própria um espectáculo”, como nos sublinhará o comandante do navio, Nikolay Semprun. A navegação faz-se por canais e represas gigantescas, grandes rios, não só como o Volga, Svir ou Neva, lagos que são mares, como o maior da Europa, Ladoga (18mil km2 de superfície), que tem ao lado o segundo maior do continente, o Onega. Já para não contar com as imensas eclusas, “elevadores” hidráulicos que permitem aos barcos subir ou baixar em zonas de desnível. Só nós vamos passar por 18 e a cada uma, novo “espectáculo”. “É obrigatório ver a de Uglich”, garantem-nos. O show é simples mas impactante: o barco entra nas comportas e eleva-se ou baixa-se nas águas, seguindo depois o seu caminho. Ao longo do trajecto, habituamo-nos a estes “elevadores” e ao seu corrupio, incluindo de bandos de aves que rodeiam e esvoaçam em volta das eclusas.

A principesca Uglich

A meio da tarde, a nossa primeira paragem, Uglich, uma das cidades do Anel de Ouro da Rússia, de que também faz parte a paragem seguinte, Yaroslavl. São jóias ricas em História, milenares. Das igrejas, monumentos e casas pitorescas já estávamos à espera, o que não esperávamos era logo à saída do barco entrar para um cais já repleto de turistas, uma banda a tocar When the saints go marching in ou um corredor de vendedores de souvenirs e artesanatos. Seguimos Tatiana, a guia local, pelo kremlin de Uglich, destruído e reconstruído ao longo dos séculos, agora leque de igrejas ornamentadas e coloridas. Na cidadela deste velho principado, vê-se o Palácio do Príncipe a tijolos vermelhos ou a Catedral da Transfiguração, que tem uma singularidade: frescos menos ortodoxos, incluindo… nus de Adão e Eva (coisa rara). Aqui na catedral, como acontecerá noutras paragens, há também um coro pronto a dar-nos música, são sempre duas ou três canções, folclóricas ou litúrgicas (há CD para comprar). Neste caso, o coro da catedral canta exemplarmente duas preces solenes. Já a roxa Igreja de São Demétrio do Sangue Derramado é ponto central de peregrinações, erigida onde terá sido assassinado aos 10 anos o príncipe Demétrio, o filho de Ivan o Terrível, que espalha frescos históricos pelas paredes. Pela cidade há mais que ver (até museus do folclore russo, de arte feita por prisioneiros ou da vodka e loja de velhos, ou réplicas de velhos, relógios que aqui se faziam) mas passeio e meio pela terra e temos que voltar ao barco. Há que decidir que animação nocturna preferimos: vemos o Dr. Jivago ou assistimos ao concurso de danças de par?

Yaroslavl e o mundo

Novo dia, logo pela fresquinha, o deslumbramento da mais antiga cidade do Volga, e Património Mundial pela UNESCO. Temos como guia Aleksandr, que, do alto dos seus sessentas e muitos, nos vai recitando a história desta que já foi capital russa nos idos do século XVII. Nota-se na cidade um certo orgulho, patente até na voz alquebrada de Aleksandr, apesar de se lhe pressentir alguma desilusão sempre que refere o século comunista. Mas veja-se que é ainda centro de mais de meio milhão de habitantes e está repleta de atracções. “Sempre foi uma cidade importante”, vai frisando, lembrando a mais de meia centena de igrejas e que, “apesar dos comunistas terem destruído algumas” (e as guerras e raides aéreos na Segunda Guerra Mundial outras e muito mais), criaram uma escola de restauros históricos que é um marco. O passeio pelos jardins e margem, com o seu ar romântico de casas elegantes, pelo bem preservado centro histórico, aqui e ali com memórias soviéticas, leva-nos até aos frescos impressionantes da igreja do Profeta Elias, à avermelhada igreja de São João Baptista (que, aliás, decora notas de mil rublos, uma riqueza de frescos também) ou ao imenso mosteiro fortificado do Salvador, no encontro dos rios Volga com Kotorsl. Sim, a imagem é de postal ilustrado e o complexo é imenso, incluindo a Catedral da Transfiguração, com mais de meio século e espaços museológicos de artesanato, pintura e artes várias: como se podia subir ao telhado da torre dos sinos, adivinhem como eu e outras crianças nos divertimos… E a vista é de facto magnífica, campos e águas, cidade e monumentos, bosques, uma imagem salvadora. E quando os sinos em redor começam todos a repicar em concerto, a festa é ainda maior.

O grande mosteiro

O dia seguinte é dedicado a uma paragem em Goritsy, para visitar a grande atracção local: o esplendoroso Mosteiro de São Cirilo do lago Branco. Do cais ao mosteiro, vamos de autocarro pelo campo, um curto passeio que nos deixa às portas do mosteiro, onde, à parte ainda vivem dez monges em clausura e nas redondezas cresceu a vila de Kirillov. À beira de um lago glacial, o Siverskoye, o mosteiro remonta ao século XIV e foi crescendo. Hoje é uma imensa área fortificada com onze igrejas centenárias e catedral. As propriedades espalhavam-se por 12 hectares, um verdadeiro museu vivo nacional (com uma colecção impressionante de iconografia), herança histórica desta fortaleza que atravessa a história e cultura do país, não apenas pela religião, embora seja ainda meca de peregrinações e muitos passeios.

A grandeza do mosteiro descobre-se a cirandar até que, talvez cansados já de tanta poderosa e santa arte e arquitectura, saímos para a beira do lago, para o seu frescor glacial. Um casal passeia com os filhos que brincam na água e o quadro tem a sua formosura natural. O fotógrafo sorri-lhes e eles sorriem para a fotografia, há ali um momento qualquer de beleza e paz e todos nós percebemos essa linguagem universal.

Ilhas que são museus

Para os próximos dois dias de navegação temos direito a diversões únicas. Se num temos Kizhi, na região de Carélia, noutro brilha Mandrogui, numa margem do rio Svir. Em comum, dois pontos singulares em formato ilha-museu. A Kizhi chegamos a meio da tarde, depois de um dia passado como se em alto-mar, graças ao cruzamento do grande lago Onega, onde por vezes a vista só alcança água, de vez em quando uma ilha (há mais de 1600…). Onde estão as margens? A meio da tarde aportamos numa fresca ilha (estão 11 graus, a paragem mais fria da viagem), quadro a verde e madeira, com tempo para deambular por esta língua de terra que até se podia calcorrear toda: são 7km de comprimento, 500m de largura. 

A ilhazinha foi povoada durante séculos até ser abandonada nos tempos da colectivização e tornada museu ao ar livre nos anos de 1950, uma mostra etnográfica da região da Carélia. Tudo por aqui é um hino à construção em madeira — 83 monumentos assim feitos — é também património UNESCO: além da reconstrução dos edifícios locais, foram também para aqui trazidas casas históricas da região. Enquanto ouvimos as batidas na madeira de uma igreja em reconstrução e os sinos a repicarem, passeamos por uma grande casa familiar de agricultores, por igrejas, moinhos e celeiros. A jóia da coroa é a Igreja da Transfiguração, com 22 cúpulas e 37m de altura, um dos maiores edifícios do mundo em madeira (e não tem nem um prego, garantem). Já ardeu e foi reconstruída, o que impressiona ainda mais. Mas há também a mais velha igreja russa, a igreja de São Lázaro, ou a rica em frescos igreja da Intercessão da Virgem. Para assegurar os serviços da ilha, mais de 200 pessoas vivem aqui na temporada alta, incluindo artesãos que vamos encontrando a trabalhar, como o carpinteiro Eugeni, vestido como há 300 anos, talhando madeira — entre outras peças de arte, vai também fazendo as “escamas” com que são feitas as cúpulas das igrejas.

A ilha do dia seguinte é outro caso à parte. Chegamos de manhãzinha a Mandrogui, outra antiga aldeia da Carélia. Foi destruída durante a Segunda Guerra Mundial e assim ficou até aos anos 1990. Eis que um empresário russo, Sergei Gutzeit, passa de barco e a “redescobre”. Torna-se uma paixão pessoal voltar a dar-lhe vida. Moradores foram atraídos com casa e trabalho. Nasceram hotéis em casas tradicionais, museus (mais um de vodka, lá está, outro de samovares), pavilhões para piqueniques (o nosso almoço foi uma espetadinha feita ali mesmo), casas de artesãos, minizoo, floresceram carpinteiros, oleiros, ferreiros, cavalos e carruagens, artes do vidro e do âmbar, até novos criadores de design a reinventar materiais. O fogo chama-nos e o sorriso do ferreiro Sergey é cativante, bigode de aço, mãos de ferro. Atiça o fogo para a foto e bate a bigorna com gosto enquanto dá lustro ao seu “little english” e responde a Portugal com o estalido “Ronaldo, Ronaldo”. É outra aldeia levantada do chão e, entre o cenário e as pessoas a trajarem vestes antigas, poderíamos até chegar a pensar que tínhamos realmente viajado no tempo, não fossem os seis barcos de cruzeiros entretanto chegados…

Enquanto sonhamos com as riquezas e as noites brancas de São Petersburgo, que ao longo de todo o percurso se têm vindo a sentir no anoitecer mais tardio e o amanhecer mais temporão (já despertámos às quatro e picos com luz), voltámos ao nosso Rublev, que esta noite somos também estrelas: ao palco sobem representações de cada país dos passageiros para cantarem uma canção das suas e uma russa, e quem somos nós para faltar? Portugueses somos oito, por isso, como no resto do cruzeiro, vivemos com Espanha em união ibérica. E, juntos, somos um êxito a trinar ClavelitosCheira bem, cheira Lisboa e, pasme-se, um clássico local, Vecherniy Zvon. Chuva de aplausos, obviamente. A nossa canção russa fala de como as badaladas nocturnas de um sino levam o pensamento até à saudade de casa, da pátria, do primeiro amor. O barco avança pela noite, cada vez mais branca, e pela nostalgia russa.

São Petersburgo entre nuvens

E, por fim, a meca: Leninegrado, Petrogado, Petersburgo, tudo de uma vez só. A monumentalidade da cidade entra-nos pelos olhos adentro, entre rio e canais, Veneza do Norte com todo o direito ao lugar-comum, flutuando sobre centenas de ilhas e terras roubadas às águas, de coração palaciano, corpo dado ao ornamento e ao dourado. Reluz que ofusca e até num dia de quatro estações, do sol à chuva de Verão ao entardecer de vento invernoso, do azul ao cinza, nos consegue perturbar os sentidos. Vamos em visita panorâmica por Petersburgo e é um fascínio em movimento, cruzado pelo literário rio Neva rumo ao golfo da Finlândia no Báltico. 

Esta é outra Rússia, uma máquina de turismo, uma cidade-museu em que serpenteamos com pouco tempo para lhe sentir a vida mais real. Mas pressentimos a cada palácio (se não são um milhão, parecem), a cada quilómetro de mármore e colunas, cúpula dourada e detalhe renascentista, jardim e ponte, livro e sinfonia, a outra versão da matrioska russa, império cosmopolita virado a Ocidente — é que, como diz Olga, a nossa guia, “São Petersburgo é Europa” (onde ficará a Rússia?). A cidade fundada por Pedro o Grande há pouco mais de três séculos, tornada maior pela grande Catarina, atormentada pelas batalhas, merece mais que um dia e pouco da vida de uma pessoa (tal como Moscovo, mas a vida é assim).

Cruzamos avenidas de ouro, calcorreamos a rua dos milionários (adivinhe porquê o nome…), paramos frente ao esplendoroso teatro Alexandrinsky para olhar a estátua de Catarina enquanto fugimos à chuva e nos preparamos para o museu dos museus, o Hermitage, herança máxima de Catarina, de olhos arregalados. Por mais imagens vistas, por mais factos sabidos, o espanto é o espanto, apesar da multidão (a tal ponto que a guia nos avisa: “Atenção aos carteiristas dentro do museu”…). Repartido agora por uma dezena de edifícios, com epicentro no imponente Palácio de Inverno, antiga residência dos czares, dispensará apresentações mas ainda assim citamos: “São mais de duas mil salas, a colecção toda tem mais de três milhões de peças, precisaríamos de anos e anos, uma vida inteira”, suspira a guia. Temos uma duas horas, suspiramos nós. De toda a pintura deste mundo aos frescos, do luxo ao lixo, do chão ao tecto, sala a sala é um tesouro contínuo.

Como o é a própria cidade, tanto vista da outra margem como das profundezas e artes do seu impressionante metro, onde nos deu gosto perdermo-nos. E entre os vislumbres da imponência da catedral de São Isaac, da impressionante catedral de Kazan ou da igreja do Sangue Derramado, seguimos pela História até à estação Finlândia, onde uma estátua de Lenine marca o local onde o líder chegou para fazer um discurso que mudaria a história do mundo.

O choque dos tempos faz-se também nesta viagem e de outras maneiras. Sentados no salão do luxo palaciano do Hotel Astoria, onde Hitler planeava fazer a festa da derrota do exército russo e onde reinaria a elite comunista, na praça nobre de São Isaac, bebemos um chá de 500 rublos com os olhos na História e noutras viagens. À minha frente, Adriano, o nosso fotógrafo, que ficou instalado no hotel em jovem com os avós há 35 anos, vagueia o olhar pelas salas e eu sei que se está a ver, adolescente, a passear pelos corredores com os avós. O olhar dele transpõe os tempos. “Ali naquela mesa era onde almoçávamos.” O nosso olhar transpõe os tempos. Com os dias contados na Rússia, olho para Adriano e quero imitá-lo. Sim, é preciso voltar para descobrir mais Rússias e então, nessa nova viagem, voltar a navegar esta.

A Fugas viajou a convite da Agência Abreu

 

Guia prático

Como ir

A Fugas viajou a convite da Agência Abreu, que comercializa este cruzeiro da Mosturflot desde 1430 euros (já com voo). O voo para Moscovo foi feito via Amesterdão com a KLM, companhia preferencial da agência para este trajecto (de Lisboa ou Porto). Temporada de cruzeiros de Maio a Setembro.

Informações

No barco, todas as refeições estão incluídas (excepto as bebidas), assim como visitas guiadas — há ainda a possibilidade de adquirir visitas extras ou idas a espectáculos como o Lago dos Cisnes. Os preços variam entre cerca de 40 a 90 euros, conforme a opção. Manda ainda a tradição que no fim do cruzeiro se dê uma gratificação por cada passageiro (em geral, 50 euros). Os transfers barco-aeroporto estão incluídos (nós não tivemos problemas mas outros portugueses, vindos via outras agências, tiveram dificuldades à chegada, previna-se e guarde os contactos locais).
O visto turístico para a Rússia obriga a vários documentos, sendo obrigatório também seguro. Para residentes em Portugal, poderá consultar toda a informação, formulários, taxas e documentos necessários em www.vhs-portugal.com. A agência também pode fazer este serviço (o pack visto + seguro obrigatório diário, no caso deste cruzeiro, fica assim por cerca de 160 euros).

Língua: russo (espanhol é língua franca no cruzeiro e visitas guiadas)

Moeda: Rublo (1 euro = 71,6 R)

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