Passa a correr uma fêmea e todos ficamos quietos, contemplando a passada elegante e ágil. Passa a uns bons metros de nós, mas a respiração como que se sustém, involuntariamente: não queremos correr o risco de perturbar a sua evolução no cimo deste monte gasto, de afloramentos quartzíticos que refulgem na luz matinal como manchas aquosas. Desaparece no seu limite e os binóculos são sacados para vasculhar a paisagem. Vemo-la minutos depois, na encosta do monte seguinte, com companhia. Outra fêmea e, a persegui-las, um macho. Não dura muito a visão, desaparecem na curva do monte. A tempos, ouviremos sons guturais que nos chegam de várias direcções: é o veado a bramar.
Estamos em pleno Parque Natural de Montesinho, com Espanha sempre na mira – andamos pela raia e os ziguezagues em busca de veados que não respeitam fronteiras. Chegamos no segundo fim-de-semana de Setembro apenas pelos veados: está a começar a brama, o período de cio que por estas serras dura o mês de Setembro e entra por Outubro é, dizem, um espectáculo mágico, aquele em que os veados atravessam o véu de invisibilidade pelo qual são conhecidos – ouvimos chamar-lhes “fantasmas”, pela ligeireza e rapidez com que se movem, raramente se deixando ver – para acasalar.
Primeiro, competem pelas fêmeas; depois, com o harém (com quatro a seis fêmeas) já constituído, protegem-no contra as investidas de outros machos - é todo um ritual que pode ter contornos coreográficos: os machos medem as forças visualmente, avaliando o porte e a forma e tamanho das galhadas, e podem chegar a lutar com algum mais afoito que tente quebrar a “família”. E tem sempre (por isso se chama “brama”) uma componente vocal – os bramidos pujantes que ecoam pelos montes têm dupla função: por um lado atrair as fêmeas, por outro intimidar os competidores. Finda a época do cio, machos e fêmeas (juntamente com as crias) andam separados.
Porém, chegamos demasiado cedo na época da brama, o calor inusitado deste início de Setembro não é propício ao acasalamento. Porque se o dia despontou frio e seco em Bragança (7,5 graus quando saímos, perto das 7h), quando chegamos aos planaltos o sol já é (quase) inclemente – entretanto vimos o sol aparecer por detrás das montanhas, mergulhámos na sombra para depois ver a luz, atravessámos Guadramil, aldeia transmontana feita do xisto típico nesta terra fria, onde a escola fechou há anos e é agora uma associação para a população cada vez mais reduzida e envelhecida. “Eles [veados] gostam de manhãs frescas, orvalhadas”, explica Luís Costa, da Anda D’I, o guia da “escapadinha especial” Brama dos Veados promovida pela Rota da Terra Fria Transmontana (RTFT) cujo início foi, aliás, adiado uma semana por este contratempo climatérico – viemos em “falso” e somos os únicos participantes da experiência.
É depois de Guadramil que paramos pela primeira vez. Entramos na estrada que a RTFT construiu para substituir o antigo caminho e é no topo de um monte que avistamos, ao longe, um veado. “Jovem, vê-se pelas hastes”, explica Luís. Só aos seis anos a galhada está completa; até lá, cada ano traz algo de novo: no primeiro ano apenas se desenvolvem os varetos (pivot, roseta e um pequeno tronco); depois vão surgindo o estoque, a ponta intermédia, o contra-estoque, até se formar a coroa. Não conseguimos perceber em que fase está este “jovem”, mas não conta para a actividade reprodutiva.
Paramos porque o vimos e também porque aqui se abre um vale onde os avistamentos são comuns. Noutro monte mais longínquo, um jipe branco parado parece fazer o mesmo que nós: perscrutar as encostas em busca de veados. É uma tarefa que exige paciência e olho bem afinado, “muitas vezes eles estão deitados e as galhas confundem-se com a vegetação”, que aqui é rasteira, um tapete de urzes, giestas, estevas, alfazema selvagem e ervas aromáticas, como o tomilho. A serra da Culebra, em Espanha, está no horizonte (em breve será substituída pela Sanabria), onde o sol se levanta, “os veados vêm [daí] e ocupam o norte do planalto de leste para oeste”.
Normalmente dormem junto a correntes de água, nos vales, depois instalam-se nas meias encostas ou passeiam-se na crista das encostas. Não voltamos a ver o veado, apenas ouvimos “o som que bate no peito”, como o descreve Luís Costa. Contudo, esta é uma das áreas do parque natural “onde o veado nunca se extinguiu”. “Chegaram a ser só cem e há seis, sete anos ultrapassavam 600. Agora são mais.” Passa uma fêmea para o lado de Espanha, mas nenhum macho a segue. Esperamos e o guia decide a próxima paragem: seguiremos os sons, que vêm do lado português, passando por Rio de Onor, onde pararemos no regresso.
Por agora há que aproveitar o tempo: normalmente, a brama termina poucas horas depois do nascer do dia. A estrada, pontuada por alguns soutos, fica definitivamente para trás e encaminhamo-nos por trilhos de terra que rasgam o planalto, ou melhor, os planaltos que se vão desvendando entre subidas e descidas. Aqui e além velhas ruínas revelam ser os “corriços”, onde o gado pernoitava – um recuperado é o apoio de uma pequena, e inusitada, vinha, murada.
Ainda não chegamos ao planalto onde passará a fêmea a correr quando o jipe pára subitamente. Bem à nossa vista uma fêmea, outra e outra, vão surgindo em fila indiana. Olham-nos directamente e logo nos ignoram. Nova espera, pelo macho, “não há-de andar longe”. Mas estes continuam esquivos, preguiçosos diríamos – as fêmeas desaparecem na encosta e nós seguimos para a colina adiante, na esperança de voltarmos a vê-las. Esta é uma caça, mas apenas o olhar (e as máquinas fotográficas) caçam.
Estamos sozinhos diante dos montes pardos que se interrompem em vales profundos e arvoredos aqui e ali. O horizonte é vasculhado, na esperança de ver repetido o encontro de fêmeas com machos. Os bramidos soam aqui mais fortes, cristalinos a cortar o ar, vindos de várias direcções. “À noite ouvem-se de forma diferente, mais nítidos”, explica Luís, mas vê-los só mesmo com infravermelhos. A Anda D’I também promove passeios nocturnos, esses à medida, para um público mais especializado – da mesma forma, também o faz para saídas diurnas, com outras exigências, nomeadamente a disponibilidade para caminhar seguindo as pistas dos veados (os excrementos, por exemplo, que “parecem azeitonas”). Este de que nós desfrutamos é, declaradamente, “mainstream”, como o descreve Pedro Morais, da RTFT – veja-se o jipe que nos leva quase até aos pontos onde as probabilidades de avistamento são maiores.
De onde estamos, por exemplo, encaramos uma clareira onde “costuma haver lutas”, mas a esta hora tudo está tranquilo. Chegamos a ouvir o silêncio, quando o vento cessa e as aves emudecem. É quando já havíamos desistido desta localização que, de repente, tudo muda. Não perto de nós, na encosta onde antes haviam desaparecido as quatro fêmeas. Do pequeno arvoredo emergem, primeiro, cinco fêmeas e depois já temos de nos concentrar para contá-las todas. “Há pouco contei mais, mas eram arbustos”, diz João Marta, da Infotrilhos, parceira nesta escapada. Outras são pedras.
“Para não confundirmos temos de olhar as orelhas, que se movem a sacudir moscas, ou pela cauda, que é mais clara”, indica Luís. Chegamos a contar 13 fêmeas juntas, “estão à espera deles”. Eles não aparecem – aparece um apenas, facilmente identificável, mesmo ao longe, pela imponência da galhada. Está completa, o que acontece aos seis anos, idade a partir da qual apenas se assiste ao engrossar dos troncos e ao aumento do número das pontas na coroa. Isto apesar de todos os anos os veados passarem pelo desmoque, ou seja, todos os anos perdem as galhadas. Acontece normalmente por volta do equinócio da Primavera (20 ou 21 de Março), altura também do nascimento das crias: “As galhadas caem inteiras, pela roseta, mas passada uma semana os veados já têm um coto”, explica Luís. Não são incomuns as caminhadas durante Abril para “caçar” galhadas, troféus. Em Agosto, estas já estão restauradas, “mas cobertas com veludo”, um tecido irrigado com muitos vasos sanguíneos, que causa incómodo e faz com que os veados raspem as hastes nas árvores para o perder. “A galhada fica como madeira.”
As fêmeas correm, o macho corre atrás, a uma curta distância. Desaparecem outra vez da nossa vista e nós movemo-nos ao seu encontro. Em vão. Vemos apenas as fêmeas desaparecerem para o interior, para além de montes onde não podemos aventurar-nos para não perturbar o ritual. Perdemos o macho. Na espera, ganhamos uma revoada de corvos que passam a crocitar intensamente, mais adiante são grifos que sobrevoam um ponto invisível (“haverá alguma carcaça por aí”), diante de um estranho círculo de terra, amarelo, entre a vegetação (“chamam-lhe o ovni”), onde também já se avistaram lutas de veados. Há algo de pagão neste cenário e é inevitável lembrar a mitologia celta, na qual o veado representa a fecundidade, dos homens mas também das terras.
Tentamos alcançar outro ponto de avistamento regular de veados, mas entramos em zona nuclear de uma alcateia de lobos. Não vemos nenhum e não queremos (nem podemos) perturbar. Desistimos já perto das 11h, o silêncio de bramidos há muito instalado nos montes. Ainda passamos por Rio de Onor (com um salto a Riohonor de Castilla) – “hoje não se passa nada em Rio de Onor”, excepto “o casamento de uma das raparigas em Espanha”. É para lá que está muita gente, por isso o café da associação desta aldeia que ainda preserva algum comunitarismo está nas mãos de quem não sabe tirar um café. “Algum de vocês sabe?” Servimo-nos, portanto.
Bragança: A cidade com uma “vila” no coração
Manhã na serra, tarde na cidade – seguimos à risca o programa Brama dos Veados, com Luís Costa a prosseguir como guia. O calor é grande mas não morde, e o centro histórico de Bragança vive na calmaria. Estamos à sombra da torre de menagem à espera que na igreja de Santa Maria termine uma cerimónia. Estamos, portanto, no coração da cidadela, a antiga “vila”, protegida por muralhas e ainda hoje constituindo um mundo à parte na cidade transmontana. É território eminentemente medieval, feita de ruelas que se atravessam nas suas duas vias principais, paralelas, a mais importante a que liga as duas portas, a de Santo António, também conhecida como Porta da Vila, e a do Sol, do lado nascente, quase em linha recta.
Não se vêem muitas pessoas. Há umas poucas deambulando pelas muralhas, nas esplanadas ainda menos, as que sairão da igreja rapidamente se dispersarão, há uma festa num recanto ao lado da muralha no que é um novo espaço relvado da icónica taberna O Celta, em algumas vielas marginadas por vasos vizinhos conversam sentados nos degraus das portas, uma mulher estende roupa na varanda de madeira verde numa casa à beira da porta de Santo António.
Chegamos num período difícil, dizem-nos. O apogeu do Verão já passou – e com ele as férias de muitos portugueses –, o Outono ainda não assentou com aquela transformação que parece assentar na perfeição a estas paragens. Neste período de transição, então, o comboio turístico da cidade, preto e amarelo, chega à igreja de Santa Maria vazio e o condutor está ao lado, sem esperança de ter clientes. No Inverno não funciona, “não faz sentido”; no Verão “tem pouco movimento”. “É a falta de plano de turismo”, diz Nuno, rapaz jovem que não perde oportunidade de dar a sua opinião.
De que outra forma se explica, por exemplo, o comércio fechado ao fim-de-semana?, interroga. “Em Miranda [do Douro] está aberto”, exemplifica, “e temos de começar por algum lado”. “E, aqui”, lamenta Carlos, referindo-se à cidadela, “até entristece”. “Quem viu há 20 anos... Mesmo quem é de Bragança só vem para casamentos ou baptizados. Descaracterizou-se muito e as pessoas saíram.” Nem todas e vêem-se obras em algumas fachadas, outras já estão mesmo restauradas (a mesma dinâmica se vê no centro fora das muralhas), mas muitas adivinham-se algo decrépitas.
Claro que a cidadela há muito que já não é o centro cívico e comercial da cidade. Mas continua a ser o seu ponto mais emblemático, com as suas várias camadas de história. Afinal, aqui houve castro, a Brigantia romana, por aqui passaram suevos, visigodos, muçulmanos e aqui Portugal ergueu um dos seus castelos fronteiriços, uma afirmação da recém-adquirida independência. Porque a primeira versão do castelo foi construída por D. Sancho I, tendo depois sido ampliada por D. Dinis, e profundamente renovada no reinado de D. João I, quando ultrapassada a crise dinástica se implantou a torre de menagem de 34 metros (com o escudo de armas do monarca numa das fachadas), altura invulgar em fortificações do Norte do país. Seria ainda alargado nos séculos XVII e XVIII e no século XIX assistiu às últimas batalhas durante as Invasões Napoleónicas. Foi aquartelamento militar até ao século XX e agora alberga, na torre de menagem, um museu militar.
Não entramos no recinto interior do castelo – raro em Portugal pelo seu forte cariz residencial, ao estilo inglês –, onde a torre de menagem divide protagonismo com a Torre da Princesa, local de várias lendas, conta Luís Costa: desde a princesa mourisca apaixonada por um nobre cristão que recusou o noivo escolhido pelo pai e aí foi mantida prisioneira, até à mulher do quarto duque de Bragança, D. Leonor, acusada de adultério e também encarcerada, passando pela irmã de D. Afonso Henriques que chorava as infidelidades do marido.
Entramos, sim, na Igreja de Santa Maria da Assunção, também conhecida por Nossa Senhora do Sardão: Luís Costa indica-nos a imagem num altar lateral e, apesar de o nome popular de sardão ter vindo, segundo a lenda, do facto de ter sido encontrada numa azinheira (sardão na Idade Média), há dois lagartos aos seus pés. É considerada a mais antiga igreja da cidade, mas a sua raiz românica foi escamoteada pelas obras posteriores que a deixaram com feições barrocas: desde o portal flanqueado por duas colunas salomónicas até ao altar-mor, talha dourada em profusão maneirista.
A capela da Nossa Senhora dos Prazeres é um apontamento renascentista oferta da família Figueiredo, cristãos-novos a quererem afirmar a sua conversão, e um euro acenderá a iluminação da igreja que fará resplandecer o tecto de madeira: abóboda de berço em trompe l’oleil e representação da Assunção da Virgem.
Quase colado à igreja, um dos mais emblemáticos (e enigmáticos) monumentos de Bragança, o Domus Municipalis, um dos raros edifícios de arquitectura românica civil da Península Ibérica cuja data de construção é pouco consensual mas geralmente apontada para o século XV. Em granito, tem como espaço principal a sala superior, uma galeria elegante na sua aspereza granítica, rasgada por arcada baixa fenestrada e acompanhada por bancos de pedra a toda a volta. Aqui se reuniria o conselho municipal ou de “homens bons” – por baixo, uma cisterna, com três acessos pela galeria de chão em cantaria, onde também se vêem traços riscados no que poderá ser o “jogo do galo”, aventa Luís Costa.
Na esplanada do Vila Café, às mesas de madeira compridas sob árvores só faltam clientes; nós seguimos novamente até à órbita da torre de menagem desta vez para começarmos a descer para a Porta da Vila. Detemo-nos no Largo de Santiago, à sombra da “primeira” muralha do castelo e de tílias frondosas, onde existiu a capela de Santiago, que foi sede de paróquia: agora, ergue-se aqui o pelourinho de Bragança, um dos seus monumentos mais notáveis. A sua singularidade resulta da união de uma figura ligada a um culto da Idade do Ferro, um berrão, que forma a base, com um pelourinho medieval. Quase dois mil anos de história da região se encontram congregados neste monumento que é conhecido como a “porca da vila”.
Na Rua D. Fernão o Bravo, a principal, uma loja de souvenirs fechada e o Museu Ibérico da Máscara e do Traje aberto. É aqui que o passado pagão destas terras – até Zamora – é revisitado através dos seus rituais de Inverno (Festas dos Rapazes) e Carnaval, que chegaram até nós e são cartazes turísticos de várias aldeias. Em três andares de um edifício totalmente restaurado, mas que já parece pequeno para tanto espólio, mergulhamos num mundo de simbolismo e cor, uma alegoria onde o bem e o mal, a luz e as trevas se materializam e se enraízam em tradições milenares.
Saímos pela Porta da Vila para a cidade que se estendeu extramuros e abraçou o rio, o Fervença. À volta da muralha, um jardim, nós seguimos o roteiro entre ele e uma fileira de casas antigas, passamos o Convento de S. Francisco e encontramos aberta a porta da igreja do Convento de S. Bento: um impressionante altar-mor com retábulos dourados e tecto de alfarge espera-nos.
Estamos na antiga freguesia de S. João e no local onde antes se localizava a igreja matriz está hoje um edifício renovado no início do século XX onde funcionou o Banco de Portugal e hoje é a sede portuguesa da Fundação D. Afonso Henriques. Em direcção à Praça da Sé caminhamos por território eminentemente nobre, revelado nas fachadas seiscentistas e setecentistas, onde se alinham brasões. Algumas estão transformadas em turismo de habitação (o solar dos Lousada Sarmento), intromete-se a nova Domus Universitária (residência para estudantes) e chegamos à igreja de S. Vicente, génese românica visível na abside, rodeados de lenda: aqui terão casado D. Pedro e D. Inês.
A porta abre para o “largo do Principal”, como é conhecida a Praça de S. Vicente, inclinada, ou não estivéssemos ainda na encosta do castelo, no que foi o centro da cidade extramuros – o nome informal deve-se ao edifício que tutela o espaço, nascido para albergar o Corpo da Guarda Principal; no centro, o monumento aos Combatentes da Grande Guerra torna visível esse carácter militar.
Regressamos à Rua Abílio Beça para visitar o Museu do Abade de Baçal, no antigo paço episcopal. Logo na recepção, deparamo-nos com um dos símbolos da identidade transmontana, um trasfogueiro, imponente no seu trabalho e decoração férreos, antes de iniciarmos a visita que começa numa exposição de desenhos a tinta-da-china de Almada Negreiros e termina numa mostra de pintura de nomes como Silva Porto, Abel Salazar e José Malhoa.
Pelo meio, percorremos caminhos transmontanos através da arqueologia, arte sacra, ourivesaria, numismática, mobiliário, etnografia e epigrafia num conjunto notável – pomos a cabeça no ar para observar um tecto setecentista em caixotões de origem jesuítica (da antiga sé?) para aqui transferido e considerado uma das grandes obras sacras transmontanas.
Estamos numa rua “cultural”. Depois deste museu, surge a Galeria História e Arte, segue-se o Centro de Fotografia Georges Dussaud (ambos encerrados à hora que passamos) e um pouco mais adiante o Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, em dia de inaugurações: Terra, de Sebastião Salgado (até 16 de Outubro), e Ao Encontro de Sophia, de Graça Morais (até 29 de Janeiro de 2017). Entretanto, passamos um dos mais notáveis solares brigantinos, a Casa dos Arcos, e um pouco mais à frente estamos no Largo da Sé, com o seu cruzeiro ricamente trabalhado e o castelo já a espreitar no alto.
Não entramos na antiga sé, que foi igreja de um convento e passou pelas mãos dos jesuítas que construíram um colégio adjacente, hoje dividido em vários espaços culturais municipais, e a visita guiada termina aqui. Regressaremos, porém, no final da manhã de domingo para caminhar pela Praça Camões que foi mercado municipal (a fachada está lá a prová-lo) e pelo Jardim António José de Almeida, em dois níveis, até à beira-rio.
Tinha sido à beira-rio, de passagem, que Luís Costa nos falara, fugazmente, da indústria da seda, outrora pujante em Trás-os-Montes e tendo em Bragança o grande centro industrial. Na zona ribeirinha localizavam-se as tinturarias e como memória ergue-se a Casa da Seda, num antigo moinho, integrada no Centro Ciência Viva. Agora, de volta ao rio, observamos a dinâmica do “Corredor Verde do Fervença”, ciclistas e joggers a passar. Muito espaçadamente: é quase uma da tarde e na terra fria os dias de inferno ainda não terminaram.
Bísaro: da quase extinção à fama gastronómica
Na noite anterior tínhamos tido contacto com ele – no prato: trilogia de porco bísaro. No domingo de manhã fomos conhecer o porco bísaro, ele que esteve perto da extinção devido a vários cruzamentos a que foi sujeito até que na década de 1990 foi reconhecido como raça autóctone em vias de extinção.
E é assim que encontramos os exemplares na Quinta do Bísaro, em Gimonde, às portas de Bragança (Trás-os-Montes e Alto Douro é onde existem a maior parte das explorações desta raça, descendente do javali europeu domesticado do tipo céltico): os malhados, brancos ou negros, com sardas, as orelhas a cobrir os olhos e o focinho mais afunilado “são os mais característicos”; os que “são mais retraídos, mais afastados dos outros são os exemplares mais puros”, explica Alexandrina Fernandes.
Estão aqui porque com a “revalorização do bísaro” o pai de Alexandrina regressou à criação de porcos que alimenta uma salsicharia tradicional (a Bísaro, que com o Politécnico de Bragança promove projectos de investigação da raça) e o restaurante D. Roberto, que foi o negócio-âncora da família e continua a ser uma referência da cozinha típica do nordeste transmontano, com os pratos tradicionais da casa (como os bifes de presunto de porco Bísaro, receita da avó Beatriz) e da região (butelo com cascas, por exemplo).
É para a Quinta das Covas que Alexandrina nos conduz, a curta distância da sede da empresa (que se expandiu ao turismo com alojamento rural e pacotes de experiências). Fica num vale, o rio Sabor a correr no fundo; na encosta em frente, passam dois ciclistas em BTT, revelados apenas pelo brilho dos capacetes. A criação está nas “traseiras”, longe do olhar de quem vem para usufruir de duas casas de turismo rural ou dos diversos salões que recebem eventos de todo o tipo. Passamos uma cancela, aberta e fechada religiosamente, seguimos por caminho de terra para estacionar à beira da maternidade.
“A mortalidade no parto ainda é alta”, explica Alexandrina, por isso se construíram estas instalações, onde os recém-nascidos passam cerca de um mês e meio fechados, quentes. Encontramos uma porca em parto – já nasceram três leitões, mas a média é de 12 (e aqui já se chegou aos 17) – e os maiores já estão separados das mães. São brincalhões, estes bísaros, e gostam de festas. Alexandrina sabe-o, o tratador também. “Todos os anos fazemos uma matança tradicional. O ano passado, quando escolhemos a fêmea, o tratador chorou: ‘Tinha de ser esta?’, dizia.”
É mais abaixo, para lá das cerejeiras e das couves, que estão os “parques”, como se chamam os retalhos de terreno onde vivem os bísaros em grupos de 20 a 30 (400 no total aqui), todos com um abrigo de metal, poças para chafurdarem e bebedouros com chupetas para “não haver desperdício”.
Alguns estão vazios, em pousio, “eles comem tudo, até raízes”. Uma vez que nada resiste à sua voracidade inata, os bísaros são alimentados com erva trazida para aqui complementada com ração; no último mês, comem castanhas “para adocicar o sabor”. Podem chegar aos 200 quilos de peso, mas o ideal é ficarem pelos 140, “para valorizar o presunto”.
O presunto é apenas um dos muitos produtos que a Bísaro disponibiliza nas suas três gamas. Quem quiser, pode adquirir um pacote (19,90€) que além da visita à quinta, como a que nós fizemos integrada no programa Brama dos Veados, passa pela salsicharia com participação no fabrico de enchidos – no final, sai-se com um enchido equivalente ao fabricado.
A. Montesinho
Rua Coronel Álvaro Cepeda, nº1
Gimonde – Bragança
Tel.: 273 302 510
www.amontesinho.pt
Brama dos veados e outras escapadas na Terra Fria Transmontana
A RTFT é um projecto turístico, de conservação da natureza e desenvolvimento local promovido pelos concelhos de Bragança, Miranda do Douro, Vimioso e Vinhais, e abrangendo duas áreas protegidas, Parque Natural de Montesinho e Parque Natural do Douro Internacional.
Ao longo de todo o ano, são várias as propostas de “escapadinhas” neste território que se desenvolve num itinerário de 455 quilómetros, dividido em 11 troços, cada qual com a sua “porta”, algumas com quiosques multimédia, outras ainda apenas com painéis de informação geral. Cada sede do concelho tem ainda a sua “porta da rota”, onde se encontram guias e roteiros mais ou menos pormenorizados e diversas atividades que podem passar pela degustação de produtos ou mostra de ofícios tradicionais, por exemplo. Através da rota é também possível fazer roteiros à medida.
A “escapadinha especial” Brama dos Veados (202€) termina este fim-de-semana e incluía jantar no primeiro dia, a brama, com transporte e acompanhamento por guia, passeio guiado por Bragança e refeições em restaurantes de cozinha típica no segundo, e visita à Quinta do Bísaro no último. Todos os participantes tiveram direito a uma Maxi Box (oferecida em todas as escapadinhas) com vários produtos da terra – mini-sabonete de leite de burra, mel, doce de castanha e canivete feito de modo artesanal em Palalouço – além de um cantil e de um chapéu.
CONTACTOS
Rota da Terra Fria
Tel.: 273 327 680
E-mail: am.terrafria@amtf-nt.pt
http://rotaterrafria.com
Anda D’i
Tel.: 935 355 633
E-mail: info@andadi.pt
www.andadi.pt
ONDE COMER
(incluído no programa)
Rodízio (Hotel São Lázaro)
Av. do Sabor, 2
Bragança
Tel.: 273310070
Email: geral.hsl@hotelsaolazaro.com
www.hotelsaolazaro.com
Cozinha regional e internacional. Recomendamos a posta mirandesa.
O Javali
EN 103-7
Tel.: (+351) 273 000 000
Email: geral@ojavali.com
www.ojavali.com
Restaurante típico. Escolhemos a tábua regional e paté de azeitonas para entradas, javali estufado para prato principal.
Restaurante Poças
Rua Combatentes da Grande Guerra, 200
Bragança
Tel.: 273 331 428
www.facebook.com/restaurante.pocas
Cozinha regional e internacional. A nossa escolha foi a trilogia de porco bísaro, acompanhada de puré de castanhas, puré de maçã e cebola caramelizada.
ONDE DORMIR
(incluído no programa)
Hotel São Lázaro
Av. do Sabor, 2
Bragança
Tel.: 273310070
Email: geral.hsl@hotelsaolazaro.com
www.hotelsaolazaro.co
COMO IR
De Lisboa: Seguir pela A1 até ao IP3, em Coimbra. Prosseguir pelo IP3 até à A24, continuar pela A4. Em Samil sair e apanhar a N217 até ao centro de Bragança.
Do Porto: Do Porto seguir pela A4 até Samil e daí apanhar a N217 até ao centro de Bragança.