Passa a correr uma fêmea e todos ficamos quietos, contemplando a passada elegante e ágil. Passa a uns bons metros de nós, mas a respiração como que se sustém, involuntariamente: não queremos correr o risco de perturbar a sua evolução no cimo deste monte gasto, de afloramentos quartzíticos que refulgem na luz matinal como manchas aquosas. Desaparece no seu limite e os binóculos são sacados para vasculhar a paisagem. Vemo-la minutos depois, na encosta do monte seguinte, com companhia. Outra fêmea e, a persegui-las, um macho. Não dura muito a visão, desaparecem na curva do monte. A tempos, ouviremos sons guturais que nos chegam de várias direcções: é o veado a bramar.
Estamos em pleno Parque Natural de Montesinho, com Espanha sempre na mira – andamos pela raia e os ziguezagues em busca de veados que não respeitam fronteiras. Chegamos no segundo fim-de-semana de Setembro apenas pelos veados: está a começar a brama, o período de cio que por estas serras dura o mês de Setembro e entra por Outubro é, dizem, um espectáculo mágico, aquele em que os veados atravessam o véu de invisibilidade pelo qual são conhecidos – ouvimos chamar-lhes “fantasmas”, pela ligeireza e rapidez com que se movem, raramente se deixando ver – para acasalar.
Primeiro, competem pelas fêmeas; depois, com o harém (com quatro a seis fêmeas) já constituído, protegem-no contra as investidas de outros machos - é todo um ritual que pode ter contornos coreográficos: os machos medem as forças visualmente, avaliando o porte e a forma e tamanho das galhadas, e podem chegar a lutar com algum mais afoito que tente quebrar a “família”. E tem sempre (por isso se chama “brama”) uma componente vocal – os bramidos pujantes que ecoam pelos montes têm dupla função: por um lado atrair as fêmeas, por outro intimidar os competidores. Finda a época do cio, machos e fêmeas (juntamente com as crias) andam separados.
Porém, chegamos demasiado cedo na época da brama, o calor inusitado deste início de Setembro não é propício ao acasalamento. Porque se o dia despontou frio e seco em Bragança (7,5 graus quando saímos, perto das 7h), quando chegamos aos planaltos o sol já é (quase) inclemente – entretanto vimos o sol aparecer por detrás das montanhas, mergulhámos na sombra para depois ver a luz, atravessámos Guadramil, aldeia transmontana feita do xisto típico nesta terra fria, onde a escola fechou há anos e é agora uma associação para a população cada vez mais reduzida e envelhecida. “Eles [veados] gostam de manhãs frescas, orvalhadas”, explica Luís Costa, da Anda D’I, o guia da “escapadinha especial” Brama dos Veados promovida pela Rota da Terra Fria Transmontana (RTFT) cujo início foi, aliás, adiado uma semana por este contratempo climatérico – viemos em “falso” e somos os únicos participantes da experiência.
É depois de Guadramil que paramos pela primeira vez. Entramos na estrada que a RTFT construiu para substituir o antigo caminho e é no topo de um monte que avistamos, ao longe, um veado. “Jovem, vê-se pelas hastes”, explica Luís. Só aos seis anos a galhada está completa; até lá, cada ano traz algo de novo: no primeiro ano apenas se desenvolvem os varetos (pivot, roseta e um pequeno tronco); depois vão surgindo o estoque, a ponta intermédia, o contra-estoque, até se formar a coroa. Não conseguimos perceber em que fase está este “jovem”, mas não conta para a actividade reprodutiva.