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Polónia: Na terra dos mil lagos

Por Sousa Ribeiro

Na Masúria, a poucos quilómetros da fronteira com a Rússia, a água e as florestas ocupam uma região com forte tradição turística mas ignorada por muitos dos polacos.

Elas andavam numa viagem organizada e eu, como quase sempre, entregava-me a uma vida que flutuava na solidão. Em poucos dias, era a terceira vez que os nossos caminhos se encontravam, um acaso do destino — se é que ele existe. 

A primeira fora a meio de uma manhã de chuva, fraca mas persistente, sob os céus cinzentos de Wroclaw; a segunda em Poznan, ao início de uma tarde de um sol pálido; finalmente, para surpresa de todos, em Gdynia, quando afogávamos o olhar nas águas calmas do Báltico. Como quem prevê um novo reencontro, uma das espanholas, todas para lá da meia-idade, não hesitou em perguntar-me para onde os meus passos me levariam a seguir.

- Gizycko? Nunca ouvi falar. Onde fica?
Sentado no comboio que acabara de deixar, com pontualidade, a estação de Gdansk, via, com contornos pouco definidos, a minha imagem e a da jovem sentada à minha frente reflectidas no vidro da janela, sobre um fundo de cores amarelecidas que corria rápido e para o qual ela também ia lançando olhares furtivos, intercalados com outros em que se concentrava no seu telemóvel que, por qualquer razão, a fazia sorrir, um sorriso bondoso que parecia encher de brilho uma pele de uma brancura leitosa.

- Estive na Masúria uma única vez. Imagine! Não me lembro de muitos detalhes, a não ser lagos e barcos. Provavelmente, posso dizer-lhe muito mais sobre Lisboa do que sobre a Masúria. Conhece o Kamasutra, um bar no Bairro Alto?
A manhã despertou sob um céu de nuvens baixas, prometendo, lá mais para a frente, algumas horas de sol e, sentado numa esplanada, vendo o mundo passar à minha frente, recordava agora, no momento em que escutava Anna Gileta, as palavras de Ewa Serwicka, a minha companhia durante parte do trajecto que me conduzira até Gizycko, onde chegara já com a cidade mergulhada na penumbra e num profundo silêncio.

- Na verdade, a Masúria é subestimada pela maior parte dos polacos. Por essa razão, apenas uma escassa minoria sabe que muita da nossa história se esconde nos bosques dessa região, assume Anna Gileta, uma jovem estudante, natural de Gdansk.

Olho em volta e sinto-me fascinado pelas cores outonais, as folhas que começam a deixar as árvores despidas e pousam, após um voo delicado, nos passeios, formando um tapete de diferentes tonalidades.

- O único aspecto negativo é que não há, ao longo dos trilhos, muita informação. Mas, para mim, apesar de reconhecer uma certa negligência da parte das autoridades, é um lugar que realmente vale a pena descobrir, de preferência com um guia local, de forma a não perder os segredos mais bem guardados mas também porque são pessoas apaixonadas pelo seu trabalho e com uma ligação muito forte à história da Masúria. Descobri, por exemplo, que, no covil do lobo, na floresta de Gierloz, existia uma cozinha vegetariana, escondida num dos bunkers. Mas não sei se é verdade.

Anna Gileta segue o seu caminho e eu sigo o meu, que me irá levar, uns dias depois, até essa floresta tão impregnada — não pelas melhores razões — de história. Conhecido entre a população polaca como o Wilczy Szaniec, o covil do lobo é o maior dos sete quartéis-generais de Adolf Hitler espalhados pela Europa, uma extensa área onde foram erguidos dúzias de edifícios mas dos quais não restam mais do que ruínas para impressionar os turistas.

Situado a escassos oito quilómetros de Ketrzyn, o bunker serviu de residência principal do führer entre 1941 e 1944, organizando, a partir da densa floresta — e as florestas ocupam mais de um quarto da superfície do país, cujo total supera os 310.000 km2, três vezes mais do que Portugal — de Gierloz, a invasão da União Soviética.

Nesse mesmo último ano, um grupo de oficiais alemães tentou assassinar o líder do partido nazista, numa conspiração liderada por Claus von Stauffenberg, um coronel que, proveniente de Berlim, chegou ao covil no dia 20 de Julho, aparentemente para um encontro de rotina entre as altas patentes militares. 
Nunca, até essa altura, alguém estivera tão próximo de liquidar Adolf Hitler mas a pasta onde von Stauffenberg transportava uma bomba, colocada mesmo ao lado do ditador, foi estranhamente mudada de lugar no momento em que o conspirador se ausentou para atender uma chamada telefónica previamente combinada. A explosão matou e feriu alguns oficiais mas Hitler escapou com apenas ferimentos ligeiros, ordenando logo no dia seguinte, 21 de Julho, a execução do coronel e de outras 5000 pessoas alegadamente envolvidas no conluio para o assassinar, um acontecimento que foi transposto para as salas de cinema com o título de Operação Valquíria (dirigido em 2008 por Bryan Singer), tendo como protagonistas Tom Cruise e Kenneth  Branagh.

Em Janeiro do ano seguinte, face à aproximação do Exército Vermelho, os nazis provocaram a explosão do Wolfsschanze (como era designado em alemão) e grande parte dos bunkers (admite-se que o de Hitler ostentava o número 13) foram parcialmente destruídos, nada mais restando, nos dias de hoje, espreitando por entre a vegetação, do que enormes placas de betão — algumas com a espessura de 8,5 metros — e um emaranhado de metal.

É sábado, o transporte público é quase inexistente. Deito um último olhar ao mapa colocado à entrada do covil e caminho até que alguém se detém e me deixa, daí a poucos minutos, em Ketrzyn, fortemente bombardeada pelo Exército Vermelho devido à proximidade do quartel-general de Hitler e com uma parte antiga que nunca chegou a ser totalmente restaurada à imagem de sua original magnificência — e os cemitérios bem tratados, cheios de flores e trepando as suaves colinas, são um testemunho desses anos trágicos.

Herança teutónica

Ketrzyn, com uma população que supera os 300 mil habitantes, é uma cidade pacata, no coração do grande distrito dos lagos da Masúria, uma das razões que contribuem para atrair, anualmente, mais de 200 mil turistas. A um sábado ou a um domingo, exacerba a sua quietude e respira uma melancolia que parece contagiar, convidando o viandante a permanecer, pelo menos durante umas horas, antes de se aventurar por outros locais mais turísticos e mais preenchidos. 

Fiel à sua herança, Ketrzyn, em tempos Rastenburg, tem no castelo teutónico uma das maiores atracções, um espaço elegante visto do exterior e sereno dentro das paredes que abrigam actualmente uma biblioteca municipal e o museu Wojciech Ketrzynski (em homenagem a um patriota local), com mostras de documentos e de artefactos científicos da área, bem como exposições de história e arte moderna.

Atravessada pelo rio Guver e localizada a curta distância dos lagos Poj e Siercze e de florestas onde o silêncio não raras vezes apenas é cortado pelo silvo de um pássaro ou pelo quebrar de um galho, Ketrzyn tem uma história que remonta ao século XIV, quando foi fundada pela Ordem dos Cavaleiros Teutónicos na sequência da tomada da pequena colónia prussiana então conhecida como Rast. 

Nesse tempo, o lugar onde mais tarde viria a ser construído um castelo era ocupado por uma torre de vigia em madeira, em redor da qual foi crescendo a povoação que conheceu uma existência tumultuosa no final da primeira metade do século XV, sublevando-se contra a opressão da Ordem Teutónica e unindo-se a outras cidades para formarem a Confederação Prussiana. O embrião da revolta foi germinando e, dez anos mais tarde, os rebeldes apoderaram-se do castelo e exaltaram o rei da Polónia, Wladyslaw Jagiellonczyk, nem sequer imaginando que, em menos de um ano,  Ketrzyn haveria de ser devolvida à Ordem, após um acordo entre o Grande Mestre desta e o súbdito, como resultado do segundo Acordo de Paz de Torun.

Durante os séculos XVI e XVII — entre a secularização da Ordem, em 1525, e o eclodir da guerra polaco-sueca, em 1626 —, a cidade conheceu um período de grande prosperidade mas o conflito, seguido de pestes e incêndios, transformou Ketrzyn num mar de ruínas, tendo de esperar até aos finais do século XIX para conhecer uma segunda época de ouro, com a construção de estradas e de ligações ferroviárias que contribuíram decisamente para o desenvolvimento do comércio e indústria.

A cortina de nuvens cinzenta abre-se e deixa espreitar o sol, colorindo o agradável parque junto ao castelo. Mesmo em frente da estrutura, reparo numa placa comemorativa, recordando o encontro dos dois generais polacos J. H. Dabrowski and J. Zajaczek, comandantes das tropas polacas que combateram sob as ordens de Napoleão Bonaparte no início do século XIX e, mais para lá, depois de passar a casa da cultura, com as suas esculturas de múltiplas cores e os seus bancos onde se sentam jovens casais, deixo-me conduzir até à igreja gótica, cujo patrono é São Jorge, de onde saem a esta hora mulheres com os seus lenços coloridos cobrindo-lhe a cabeça, algumas sorridentes e não menos curiosas perante a presença de um português que lhes faz evocar um único nome:

- Fátima.
Fico por uns minutos na paragem de autocarro, tomo um café no bar da estação ferroviária e percebo, ao fim de algum tempo, que nenhum destes transportes me poderá levar, neste sábado de Outono em que o sol promete aquecer-me, até Swieta Lipka.

Lembro-me, por segundos, do rosto angelical de Anna Gileta.

- Sabe o que significa Swieta?

Não sabia.

- Sagrada.

O milagre da estatueta

À boleia, com um agricultor, não tardo em ver recortado, sobre uma paisagem verde, o santuário mariano que tantos polacos atrai à pequena aldeia onde corre um vento que se entranha e faz encolher a simpática vendedora de mel que espera, desde as primeiras horas da manhã, os turistas e os peregrinos. Ao lado do complexo religioso, o fumo sobe da chaminé de uma casa, um prenúncio do Inverno que se aproxima com a promessa de dias de muito frio. Flanqueio o bonito portão de ferro forjado, admiro as quatro capelas em cada um dos cantos e entro na igreja, por agora entregue ao silêncio mas onde, nos meses de Verão, têm lugar recitais de música todas as sextas-feiras.

Regresso ao exterior e debruço-me sobre a história do mosteiro erguido em honra da Sagrada Virgem Maria.Erguido no século XVII, é um dos mais admiráveis exemplos do barroco tardio da arquitectura da Polónia e encerra uma lenda que, como quase sempre, começa com era uma vez.

Era uma vez um criminioso que, detido nas masmorras do castelo de Ketrzyn, aguardava a hora em que seria concretizada a sua sentença de morte. Todos os dias ele rezava à Virgem Maria para o salvar e, uma noite, na véspera da sua planeada execução, ela surgiu diante dos seus olhos, presenteando-o com madeira e um formão e pedindo-lhe, ao mesmo tempo, para esculpir a sua imagem e apresentá-la aos juízes no dia seguinte.

O condenado cumpriu o desejo de Maria e, a despeito de nunca ter executado qualquer trabalho em madeira, produziu uma estatueta de uma beleza assombrosa. Os juízes, acreditando que aquele era um sinal de Deus, libertaram o criminoso e este, grato por gozar de novo a sua vida em liberdade, pousou a peça em madeira junto a uma tília na estrada que liga Ketrzyn a Reszel, mais ou menos à mesma distância tanto de uma como da outra.  

Rapidamente, o ícone ganhou fama de milagroso e a população local não tardou a carregá-lo para lhe dar um lugar abrigado dos humores da natureza na igreja de São Jorge, em Ketrzyn. Mas a estatueta despareceu, não uma mas duas vezes, regressando à companhia da tília, um sinal claro, para a população, de que competia à Virgem Maria escolher a localização da peça trabalhada pelo criminoso.

A decisão não se fez esperar: teria de ser levantada uma capela naquele lugar.
De repente, a atmosfera inunda-se de música, apuro o ouvido e percebo que vem do interior da igreja. Volto a entrar. Um grupo de turistas, de cuja presença não me dera conta, está sentado nos bancos de madeira e de olhos cravados no órgão.

O momento reveste-se de grande misticismo.

Sento-me, também, observando os anjos que, com movimentos delicados, vão dançando ao som dos acordes musicais. O órgão, de estilo barroco e construído em 1721 por Johann Mosengel, é o elemento decorativo da igreja que mais olhares atrai, com as suas cores, as estátuas de anjos tocando bandolim, os querubins e as suas cornetas, um trabalho artístico que retira importância a um tecto e a um altar soberbos, a todo um interior que produz espanto em todos quantos o visitam, seja para orar ou simplesmente para admirar as obras de nomes importantes como M. J. Meyer ou K. Peucker ou mesmo (um quadro no altar com a Virgem Maria trajando um vestido prateado) do pintor B. Pens.

Quando o silêncio se volta a instalar, regresso ao exterior, caminhando por aqui e por ali, com a história da igreja no horizonte. De acordo com livros antigos, Swieta Lipka já acolhia peregrinos no século XIII.

Neste preciso instante, ainda com a música do órgão a ressoar nos meus ouvidos, volto a lembrar-me de Anna Gileta, do diálogo travado na esplanada de Gizycko.

- E sabe o que significa Lipka?

Desconhecia.

- Lipa, em polaco, quer dizer tília. Lipka é uma tília pequena.

A capela, no entanto, foi construída já no século XV e, quase há 500 anos, em 1519, recebeu a visita do Grande Mestre da Ordem Teutónica, Albrecht von Hochenzollern, que percorreu a pé todo o caminho até chegar a Swieta Lipka, numa manifestação de fé que não antevia tão repentina mudança em pouco mais de um decénio. Na verdade, Albrecht von Hochenzollern tornou-se luterano em 1530 e não perdeu tempo a mandar destruir a capela, a própria estatueta (que foi lançada às águas do lago Wirowe) e, não satisfeito, em ordenar que a famosa tília fosse cortada. 

A fé católica simplesmente foi banida durante o reinado prussiano, os padres remetidos ao exílio e, uma vez que o culto dos santos foi proibido como superstição, quem se aventurasse, como peregrino, a colocar o pé em Swieta Lipka teria, inevitavelmente, o mesmo destino ao qual acabou por escapar o criminoso que esculpiu a estátua: a pena de morte. Quase cem anos mais tarde, os católicos recuperaram a sua liberdade religiosa, o lugar foi adquirido pelo secretário do rei Zygmunt III Vasa e a aldeia ficou a cargo dos jesuítas.

De frente para o portão, olho a igreja uma vez mais, com a sua cor rosada, intrigado com a sua história de sobrevivência — a actual foi construída entre finais do século XVII e meados do século XVIII no lugar onde em tempos crescia uma velha tília.

A vida é boa

A estrada sobe ligeiramente, uma serpente de asfalto que se insinua por entre uma vegetação grata para com as últimas chuvas e prestes a ficar órfã das folhas que por agora permanecem com as suas bonitas cores outonais.

Caminho por alguns minutos, aqui e acolá espreita um lago, com as suas casinhas debruçadas sobre as águas tranquilas — Swieta Lipka está situada num vale parcialmente ocupado por dois lagos, o Dejnowa e o Wirowe. Um carro deixa-me num cruzamento e outro, em pouco tempo (são apenas seis quilómetros), em Reszel, uma pequena cidade que foi a primeira, em todo o país, a ser incluída na lista da Cittaslow, um movimento iniciado em Itália (onde as tradições da dolce vita ainda são observadas) que promove a ideia de uma vida boa, a um ritmo mais tranquilo (a rede é compostaa por mais de 150 cidades em 20 países).

Como num conto de fadas — assim é a atmosfera que se sente em Reszel, com a sua parte antiga plena de charme e carácter, com as suas casas pequenas e as suas ruas estreitas, bem como um castelo que, depois de ser alvo de obras de restauro, atrai um grande número de turistas e tão sedutor se revelava aos olhos de Nicolau Copérnico (1473-1543).

Em tempos uma típica fortaleza fronteiriça, o castelo viu hipotecadas as suas funções defensivas em meados do século XV, servindo de residência a, entre outros, os bispos de Warmia. Nos dias de hoje, abriga uma galeria de arte contemporânea e exibe trabalhos de proeminentes artistas polacos e internacionais.

Subo à torre da igreja vizinha e, desde o alto, o castelo e a cidade surgem aos meus olhos ainda mais belos mas, como a tarde avança e à falta de transporte público, sinto necessidade de partir. Passo de novo por Ketrzyn e, daqui, sempre à boleia, sou levado por um jovem cujo destino era outro que não Gizycko.

- É fim-de-semana, não tenho nada para fazer, diz-me, enquanto vai elogiando a paisagem que passa por nós lentamente.

Gizycko recebe-me agora sob um manto crepuscular. A manhã acorda com chuva mas o sol não tarda a fazer a sua aparição. É domingo. Pelos jardins caminham as mães, empurrando os carrinhos de bebés. As folhas tombam, graciosa e demoradamente, como quem deseja chegar atrasado ao seu destino. Há três dias que faço de Gizycko o meu quartel-general para visitar a região. Antes do fim-de-semana, escutara atentamente Catherine Karolska no posto de turismo.

- Amo a minha Gizycko, tão amável para os turistas que a visitam.

Já no início do século passado, Gizycko era elogiada. “Situada num istmo entre os lagos Mamry e Niegocin, a cidade de Lec (Lötzen) é o centro das atracções turísticas na região da Masúria”, escrevia Mieczyslaw Orlowicz, um notável excursionista polaco, referindo-se aos muitos turistas alemães, a maior parte deles procedentes de Königsberg, que aqui passavam férias, atraídos pela beleza da cidade, com as suas moradias e mansões. Em simultâneo, Gizycko estava bem servida de transportes ferroviários (uma linha, construída em 1868, ligava aquela cidade alemã à fronteira com a Rússia) e funcionava como base para visitar a área envolvente. “A Masúria é a terra dos lagos. Aqui, ao longo de 500 km2, pode encontrar quase mil e os maiores e os mais bonitos estão localizados próximos de Lec — o ponto de partida para excursões nos lagos”, concluía  Mieczyslaw Orlowicz.

Gizycko, com uma população a rondar os 30 mil habitantes, foi em tempos habitada pelos galinda, uma tribo pagã da Prússia que ergueu os seus templos em duas ilhas vizinhas. Durante mais de 50 anos, a Ordem dos Cavaleiros Teutónicos lutou pela conquista destas terras e por introduzir o Cristianismo, provocando, com a sua vitória, o desaparecimento dos galinda, da sua língua e dos seus rituais.

No início Nowa Wies, mais tarde Lec, depois Lötzen, Gizycko viveu períodos tempestuosos ao longo da sua história e até ao final da II Guerra Mundial, quando passou a usar a toponímia Luczany — mas por pouco tempo, uma vez que, logo em Março de 1946, adquiriu a actual designação, em homenagem a Gustav Gizewiusz, um importante activista polaco. 

Independentemente dos nomes e dos tempos turbulentos, Gizycko nunca deixou de fazer sonhar muitos polacos, alguns deles vivendo a centenas de quilómetros de distância — a cidade teve sempre a capacidade para se erguer das cinzas e, logo em 1960, recebia o estatuto de capital aquática de Verão da Polónia, organizando, anos mais tarde, campeonatos mundiais de vela de cadetes.
As mudanças políticas e sociais na última década do século passado serviram como estímulo para a cidade se desenvolver ainda mais, sempre em íntima relação com a água mas beneficiando — cada vez mais — da beleza natural da região.

Sem grande surpresa, pelo menos para os polacos que a conhecem, a região dos grandes lagos masurianos, cuja capital é Gizycko, foi uma das finalistas, em 2011, do prestigiado concurso Novas Sete Maravilhas da Natureza e todos os anos atrai um número crescente de turistas, entusiasmados com a quietude dos seus lagos, dos seus canais e das suas florestas (a floresta municipal estende-se por uma área de quase 70 hectares e acolhe árvores monumentais, incluindo um carvalho velhinho de mais de 600 anos).

Ao início da tarde, admiro a ponte giratória do século XIX, caminho até à marina, a pé chego ao porto e por ali fico, olhando as pontes, escutando o último suspiro do comboio na estação de Gizycko, observando os pescadores, os barcos de recreio, as pessoas caminhando, sem pressas, para cá e para lá, banhadas por um sol que doura tudo à sua volta e dá encanto ao Outono e às suas cores.

É domingo.

Agora tenho menos dificuldade em perceber Catherine Karolska e, se tivesse oportunidade, pedir-lhe ia desculpa por ter achado exageradas as suas palavras. Ela ama a sua Gizycko, que tão bem recebe os turistas. E eu sinto-me grato pela sua sensibilidade. À minha frente, o sol transforma em mil espelhos o lago. Um entre mil.

GUIA PRÁTICO

Como ir

A Ryanair liga Lisboa a Varsóvia duas vezes por semana e, desde que faça a reserva com alguma antecedência, pode conseguir uma tarifa muito em conta (a rondar os 100 euros) para um voo (directo e com uma duração de aproximadamente quatro horas) de ida e volta. A outra possibilidade (mas sujeita uma escala) passa por fazer uma pesquisa em companhias aéreas como a TAP, Swiss, Brussels Airlines, KLM e Lufthansa, entre outras, já que todas elas  operam voos para a capital polaca. Desde Varsóvia, são pouco mais de 250 quilómetros (mais ou menos a mesma distância de Gdansk) até Gizycko, um trajecto que pode cumprir em cerca de três horas se alugar um carro. De comboio, a viagem é confortável e demora aproximadamente cinco horas, obrigando a uma curta paragem em Bialystok, em Olsztyn ou em Ilawa Glówna. De autocarro, há vários serviços por dia mas nem todos eles ligam Varsóvia a Gizycko em menos tempo do que o comboio — há um, da empresa Arriva, que completa o percurso em menos de quatro horas.

Quando ir

A região dos lagos beneficia de um clima temperado, com verões relativamente quentes e invernos frios. Regra geral, Julho é o mês em que a temperatura média atinge valores mais altos, se bem que é também um dos meses em que ocorre maior precipitação. Entre Dezembro e Fevereiro os termómetros sofrem uma acentuada descida e, por norma, os lagos permanecem gelados até Abril. Em Outubro e em Novembro, são frequentes os dias de sol, com temperaturas máximas ligeiramente acima dos dez graus, o que permite fazer caminhadas e observar a beleza da natureza vestida nas suas tonalidades outonais.

Onde dormir

O hotel Relax, na Ulitsa Bialostocka, 5A, em Gizycko, é um espaço confortável, com um ambiente familiar e ideal para quem viaja com um orçamento reduzido. Para um pouco mais de luxo, recomenda-se, também no centro da cidade, na Plac Grunwaldzki, 8, o hotel Cesarski, com tarifas diárias a rondar os 20 euros (single), os 35 (duplo) e os 45 (suíte) na época baixa — em Julho e Agosto, meses em que a região recebe um grande número de turistas, espere pagar pelo menos mais 50 por cento. Caso opte por se alojar em Mikolajki, fazendo da pequena e pitoresca aldeia a base para visitar os lagos, não terá dificuldade em encontrar um quarto disponível em pensões ou em casas particulares ao longo da Ulitsa Kajki, a rua principal que abraça o lago Mikolajskie. Uma das melhores alternativas passa pela Pensjonat Mikolajki, precisamente nessa artéria, no número 8, um lugar atractivo com uma panorâmica sobre o lago e um preço razoável — cerca de 30 euros por um single e um pouco menos de 50 euros por um duplo (com varanda e vista para o lago), valores que sofrem apenas um ligeiro aumento na temporada alta.

Onde comer

A dieta polaca é à base de batatas, confeccionadas de diferentes maneira, e de carne de porco. Entre o centro de Gizycko e o forte de Boyen, na Ulitsa Olsztynska, 16, o restaurante Papryka é um espaço agradável, que não desilude e é barato. Na mesma cidade, na Praça Grunwaldzki, 1, o Kuchnie Swiata é um lugar mais romântico (e mais caro), ideal para um jantar mais formal, com comida italiana e algumas especialidades polacas.  

A visitar

Na Warmia-Masúria, considerada a província mais limpa de todo o país, a água ocupa sete por cento de uma área total que goza também do estatuto de região com menor densidade populacional — apenas 59 habitantes por metro quadrado e um pouco mais de 1,4 milhões de habitantes, 60 por cento dos quais vivendo nas cidades. Sendo assim, é na água que residem os seus maiores atractivos (são 200 quilómetros de canais ligando os lagos) mas um deles — e talvez um dos maiores — é uma obra da engenharia com mais de 150 anos, uma experiência única, por terra e por água: o canal de Elblag, também conhecido como Elblag-Ostroda Canal, com uma extensão de 80 quilómetros, o que faz dele o canal navegável mais longo da Polónia. A curiosidade reside no facto de, devido ao desnível de altura, os barcos, hoje utilizados quase exclusivamente por turistas (o serviço de passageiros em barcos a vapor foi inaugurado em finais do século XIX), serem transportados, num determinado trecho, em cima de vagões que correm sobre trilhos.

Em Gizycko, não deixe de visitar Boyen, um forte construído no século XIX pelos prussianos mas tenha em conta que a Warmia-Masúria oferece múltiplas possibilidades de dar por bem empregue o seu tempo, a pé (não faltam trilhos, alguns deles muito extensos), de bicicleta ou de barco (ou desportos como canoagem e caiaque). O melhor mesmo é recorrer aos serviços dos postos de turismo, em Gizycko ou em Olsztyn (a bonita capital da província), sendo que nesta última pode admirar, entre outros monumentos, o castelo onde o astrónomo Copérnico serviu como administrador da Warmia (em tempos uma única província), entre 1516 e 1520.

Informações

Os cidadãos portugueses apenas necessitam de um documento de identificação (passaporte, bilhete de identidade ou cartão de cidadão) para visitarem o país.
A língua oficial é o polaco e, pelo menos na zona dos lagos, torna-se difícil encontrar quem fale inglês (mais fácil é comunicar em alemão).
A moeda é o zlóti (admite-se que a Polónia adopte o euro em 2020 mas não há certezas) e um euro equivale a aproximadamente a 4,30 zlótis.

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