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O inesperado e inevitável Museu do Calçado

Por Alexandra Couto

A oferta museológica de São João da Madeira está completa, da cabeça aos pés. A poucos metros do Museu da Chapelaria, abre hoje o Museu do Calçado, onde a história do sapato se cruza com as artes plásticas e também com o design contemporâneo de criadores como Luís Onofre.

No século XXI, a Torre da Oliva está longe de impressionar com a mesma imponência que conferia à paisagem menos urbanizada da São João da Madeira dos anos 1950, quando milhares de operários das indústrias chapeleira e metalúrgica acorriam diariamente às fábricas dessa zona da cidade, a pé, de bicicleta ou em pequenas motos, tendo sempre o edifício como referência no horizonte.

Hoje, após a sua readaptação para fins culturais, o imóvel parece mais pequeno em proporção com a envolvente e, a partir do exterior, é difícil acreditar que ainda lhe reste espaço vago quando já acomoda o Welcome Center do Turismo Industrial, uma mostra sobre a marca Oliva e várias galerias para exposições e eventos. Mas a realidade é essa: no edifício começa hoje a funcionar também o Museu do Calçado e, depois de uma visita a essa nova estrutura, a primeira impressão é de que a Oliva voltou a superar-se. “Que grande que isto é!”, repara-se. “Tanta coisa que aqui está!”.

A visita é conduzida por Suzana Menezes, que, após vários anos de liderança no Museu da Chapelaria, mesmo ali ao lado, aplicou essa experiência na criação do Museu do Calçado e acumula agora a direcção dos dois equipamentos. No mais recente, guia-nos através das salas, nichos e corredores em que predomina o branco, mas onde há também algo da yellow brick road do imaginário de Oz — e não apenas porque lá encontramos os sapatinhos rubi da Dorothy, que o encenador Filipe La Féria usou numa das suas produções.

Será porque a entrada se faz junto aos sapatos de cristal da Cinderela e mais tarde nos iludimos com os botins do Peter Pan? Ao longo da colecção há várias referências literárias ao objecto de culto do museu, mas a missão desse espaço é realista e concreta: dar a conhecer a história do calçado ao nível do uso e da produção, explorando também a faceta emotiva de sapatos verídicos doados por personalidades públicas e reflectindo ainda sobre o potencial plástico desse objecto quotidiano quando transformado em obra de arte.

Nessa homenagem à indústria do calçado — que é simultaneamente a mais reputada de São João da Madeira, uma das mais pujantes do país e também das mais respeitadas no universo internacional do sector — só há margem para bairrismos quando eles servem o propósito do museu e daí a escolha de Luís Onofre como designer em destaque na primeira das muitas exposições temporárias que acompanharão a oferta da casa.

O criador é natural do município vizinho de Oliveira de Azeméis, veja-se só a audácia!, mas São João da Madeira sabe reconhecer-lhe o estatuto de maior ícone nacional do calçado e, pé ante pé, literalmente, o novo museu revela agora como evoluíram os seus sapatos, a sua sensibilidade criativa e até o seu sentido empresarial. “A ideia é contarmos a história de vida do designer através dos modelos que ele foi concebendo em cada fase da sua carreira”, explica Suzana Menezes.

Luís Onofre estará habituado a calçar figuras como a rainha Letizia de Espanha, Naomi Watts e Michelle Obama, mas admite que ver todo o seu percurso pessoal e profissional exposto no museu tem um simbolismo particular: “Significa homenagear várias gerações da minha família e a identidade de uma cidade como São João da Madeira, cuja história foi sempre tão moldada pela indústria da produção de calçado.” Sapatos, croquis, ferramentas e matérias-primas cruzam-se assim com dados biográficos para compor “uma viagem essencial” ao trajecto do estilista, mas, perante a vitrina que exibe essa montagem, não é no passado que ele se detém. “Isto foi um desafio que me permitiu ganhar um renovado sentido de futuro para a minha marca, que quero continuar a ver crescer em Portugal e no mundo”, confessa. 

Lição anatómica
Após essa nota de contemporaneidade, o percurso expositivo do museu retoma a ordem natural das coisas para começar pelo princípio — sempre com contextualização em Português e Inglês, tanto nos painéis escritos como nos ecrãs interactivos e códigos QR. O primeiro capítulo da história dá assim a conhecer a anatomia do calçado numa sala que reproduz toda a cadeia produtiva de um mesmo modelo de sapato, desde a sua idealização em papel até à fase de acabamentos. Nove máquinas fabris ajudam a visualizar o processo, retiradas às 54 que integram o fundo do museu, e 77 ferramentas complementam a tarefa, entre as 1500 da colecção.

(Des)contruído o sapato em moldes, gáspeas, solas e outros componentes, segue-se então para a viagem cronológica que explora os seus usos e costumes desde a pré-história até à actualidade e esse “túnel do tempo” percorre-se a passo rápido, evitando exaustivos compêndios sobre períodos de que sobreviveram poucos modelos. Suzana Menezes realça, aliás, que a predominância das réplicas entre os 500 sapatos que o museu tem expostos e os 6500 que guarda em reserva se deve precisamente ao facto de que “há poucos originais bem preservados e quem os tem não os quer vender”.

Esse problema deixa de colocar-se, no entanto, quando chegamos às últimas décadas do século XX, cuja produção é retratada em quantidade e com generosidade — o que não será uma redundância considerando que essa parte da colecção resulta de diversas doações por empresas e criadores de São João da Madeira. Assim se justifica a disposição farta das montras com os meios-tacões e peles perfuradas dos anos 1980, com as socas e plataformas hippies dos anos 1970, com as sapatilhas Sanjo que já em 1960 começavam a convencer os jovens de quanto o que é nacional é efectivamente bom. 

Galeria de “Notáveis”
Na insuspeitavelmente ampla Torre da Oliva, o Museu do Calçado também consegue ter espaço para uma sala de serviço educativo, um recanto lúdico para crianças e um centro de documentação especializada. Estas valências estão dispostas em torno da última sala do circuito, que, reservada para o calçado enquanto objet d’art, procura estabelecer um contraste com o produto histórico, prático e factual que se dá conhecer nos espaços anteriores.

“Queríamos terminar a visita com uma visão mais disruptiva e inovadora sobre este objecto do quotidiano”, justifica Suzana Menezes. A exposição reúne assim várias obras de artistas como António Saint Silvestre e Agnès Baillond, que, antes mesmo de convidados a integrarem a colecção do Museu, já haviam assinado peças evocando ou reinterpretando calçado.

É no penúltimo segmento do circuito, contudo, que melhor se percebe quão injusto poderá ser desfazermo-nos de um par de sapatos que, mais do que a meros lugares, nos levou a experiências. Para pôr fim a esse desdém, o museu criou, portanto, uma galeria em que reúne jovens e velhos “Notáveis”: na lista dos primeiros, sempre novos e a estrear, inclui calçado de marcas como a Melissa, Cubanas e Caterpillar, e modelos de designers como Miguel Vieira, Egídio Alves, Katty Xiomara, Max Azria, Agatha Ruiz de la Prada e Noritaka Tatehana; no rol dos segundos, sempre com sinais já bem evidentes de uso, apresenta sapatos doados por dezenas de figuras públicas portuguesas, que dessa forma partilham com o público os enredos em que lhes gastaram as solas.

As botas de Luísa Ducla Soares, por exemplo, pareciam boémias e até foram compradas em Paris, mas afinal são tristes e dolorosas. É por isso que a sua história fica reservada para o intimismo do museu, resguardada da exposição pública nas páginas tão partilhadas de um jornal. Já Manuela Azevedo, vocalista dos Clã, doou umas botas festivas, bem dançadas. Usou-as em todos os espectáculos de uma tournée e quase invariavelmente lhes partiu o tacão a meio de cada performance, socorrendo-se depois de um sapateiro para com elas regressar ao palco. Um dia o homem pediu-lhe que parasse: que usasse outras botas no próximo concerto, que essas já não tinham conserto.

Quem mais demonstrou gratidão pelos seus sapatos, ainda assim, foi o músico David Santos, que os seus fãs conhecem como Noiserv. E é ao ler-se a carta em que ele se despede das suas sapatilhas que melhor se percebe quanto o Museu do Calçado tardou em chegar, quão destinado esteve sempre a ter que existir. Explicando os seus ténis, Noiserv explica o museu: “Com eles fiz 60 concertos em 2011, viajei por todo o país, fui a Nova Iorque, Londres e Estocolmo. Com eles toquei no mesmo palco que os Arcade Fire e os Portishead; entrei em estúdio e gravei com Sérgio Godinho. Tinha-os calçados quando visitei a minha primeira casa e quando o meu melhor amigo foi pai pela primeira vez. Fazem parte de uma história que é minha, mas também de todos aqueles que foram vendo e gostando da minha música. Obrigado, ténis-azuis-em-pele-com-uma-tira-em-laranja. Foi um prazer.”

Museu do Calçado
Rua Oliveira Júnior
São João da Madeira
Tel.: 256 200 204
museu-do-calcado.pt
Horário: Das 9h às 12h30 e das 14h às 18h, de terça a sexta; das 10h às 13h e das 14h às 18h ao sábado; das 10h30 às12h30 e das 14h30 às 18h ao domingo.
Preço: 2€

 

 

 

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