A monção foi-se há um par de semanas e restam umas chuvas dispersas. Por ora, as paisagens mais meridionais do Laos ainda conservam uma paleta de verdes cintilando sob uma campânula de luz claríssima. Mas daqui a alguns meses será como atravessar a savana africana — a estiagem virá transfigurar o cenário e o cinzento dos matagais há-de arder ao sol, só suspenso aqui e ali por um ou outro arrozal à beira do Mekong.
Desde Savannakhet, a porta de entrada para o Sul do Laos para quem vem da Tailândia, via Ubon Ratchathani, ou do Vietname, pela fronteira de Lao Bao, até chegar a Pakse, o caminho mostra o rosto de um país que se tem mantido arredado do boom de desenvolvimento dos seus vizinhos (à excepção do Camboja), os designados “tigres asiáticos”, nas últimas décadas, apesar da retórica grandiloquente — e com explícito e copioso vocabulário neoliberal — produzida em Vienciana pelo poder (ainda) comunista, que mantém um sistema monopartidário e uma centralização política e administrativa mas liberalizou uma parte da economia. Nos cartazes de propaganda estampados à beira do Mekong, na capital, há arranha-céus de papel, mas tais projecções quiméricas não chegaram a este Sul mais ou menos remoto.
Aqui abundam aldeias de casas rústicas assentes em estacas de madeira, “à prova” dos vendavais e inundações da monção, a maioria em madeira com coberturas de palha muito inclinadas para fazer face aos dilúvios sazonais da estação das chuvas. Outras, poucas, são de alvenaria e exibem-se pintadas de cores berrantes, porventura para reforçar urbi et orbi o estatuto possidente dos inquilinos, quase todas elas com frontões triangulares à maneira das fachadas dos templos.
Os meios de transporte afinam com a elementaridade reinante: apanha-se um autocarro caduco, mas lesto, em Savannakhet, a transbordar de quilometragem e passageiros e tralhas, e a meio da viagem através da savana um pneu cansa-se e estoura com a solenidade de um foguete tradicional, sem que entre os viajantes avulte qualquer sobressalto ou alguém pestaneje. Espera-se com oriental paciência ao sol enquanto outro pneu sai lá dos derradeiros assentos, rolando por cima das bagagens entrincheiradas no corredor do autocarro. Em cada paragem, para provimento dos passageiros, lá acorre o pitoresco das vendedoras de espetadas e outros petiscos fumegantes a passearem dentro da nave.
Em Savannakhet o Mekong já se apresenta com amplidão, mal se avistando a outra margem. O mesmo em Pakse, onde um afluente, o Nam Sedone, vem engrossar o caudal que, mais adiante, na região de Si Phan Don, atingirá o seu expoente máximo — durante a monção a largura pode ultrapassar os dez quilómetros. Aí, o Mekong, um dos maiores rios da Ásia, bem se assemelha a um lago, sobretudo se já passaram as enchentes torrenciais da monção e se descontarmos os braços por onde as águas rolam em rápidos e tombam em cascatas, perto da fronteira com o Camboja.
Pakse é o ponto de partida para a última etapa até Si Phan Don e é uma base com infraestruturas minimamente adequadas para se preparar expedições a outros lugares de interesse do Sul do Laos, como o planalto de Bolaven, região montanhosa de clima temperado povoada por cafezais e impressivas quedas de água e cada vez mais popular entre os ecoturistas, e o complexo religioso de Vat Phou, que concilia arquitectura khmer e hinduísmo.
Ilhas no fim do mundo
Si Phan Don, que na língua local significa “quatro mil ilhas”, não é a região mais remota do Laos — nos últimos anos tornou-se, aliás, uma zona de passagem para o Camboja para quem não queira dar a volta pela Tailândia e entrar pela fronteira de Poipet ou andar a cirandar pelo Vietname até Ho-Chi-Minh e a partir daí navegar pelo Mekong até Phnom Penh. Mas os trâmites de fronteira em Strung Treng e o sistema de transportes, distantes da débil regulação do poder central de Vienciana (um paradoxo, sendo o Laos, oficialmente, um país comunista) e sujeitos a arbitrariedades, não facilitam a vida dos viajantes, pelo que uma boa parte dos forasteiros que aqui vem parar fá-lo essencialmente em busca de experiências de turismo cultural ou de ecoturismo.
Outro atractivo deste imenso arquipélago de incontáveis ilhas e tão longe do mar, além dos trekkings nas áreas protegidas do planalto de Bolaven, é a possibilidade de observação de golfinhos (da espécie Orcaella brevirostris), uma comunidade em forte declínio no Mekong (restam cerca de 80 em Si Phan Don, segundo o World Wild Fund) que tem sido objecto de iniciativas de protecção por parte de várias entidades, como o WWF. Uma das ameaças que se perfilam no horizonte é, precisamente, a do megaprojecto hidroeléctrico de Don Sahong, planeado para um local próximo da fronteira com o Camboja e apenas a cerca de um quilómetro do habitat dos golfinhos.
O número de ilhas e ilhotas varia de acordo com a estação e o volume do caudal do Mekong. Só algumas das ínsulas são habitadas e as escolhas dos visitantes são condicionadas também, sem estranheza, pela oferta (ou falta dela) de animação de carácter turístico e pela oportunidade de uma aproximação à vera vida e ambiência local, sem aquela crescente decoração espaventosa do turismo “alternativo”, que ameaça padronizar festivamente todos os cantos do globo ao som do chillout. Sem exagero, Don Khong e Don Det (e a sua “irmã gémea” Don Khon, um tanto maior e mais tranquila) estão em pólos opostos.
A primeira, a mais espaçosa das ilhas deste vasto arquipélago fluvial, é um oásis, quase sem automóveis e forasteiros, um oásis tão abençoado para se repousar das extenuantes jornadas pelo Laos quanto para pedalar (literalmente) pelos cénicos palcos onde se desenrola a vida rural local. Don Det e Don Khon são vizinhas (estão ligadas por uma velha ponte ferroviária do tempo colonial agora convertida em passeio pedonal), são mais frequentadas por turistas (mais a primeira do que a segunda) em busca de cenas trendy e dispõem de maior oferta de alojamento e diversão — basicamente bares, restaurantes e esplanadas à beira do rio úteis para cultivar preguiças ao sol. Don Daeng pertence a outro capítulo: localizada mais perto de Vat Phou, conserva ciosamente uma atmosfera rural, sem veículos automóveis (salvo alguns pequenos tractores agrícolas) ou sinais excessivos de descaracterização arquitectónica. Caminhadas ou passeios de bicicleta (a ilha tem cerca de doze quilómetros de extensão) e estadias no lodge comunitário ou em regime de homestay na aldeia de Ban Hua, com degustação de comida caseira, são argumentos de monta para se estanciar alguns dias nesta ilha.
As van japonesas e sul-coreanas que saem de Pakse para Don Det podem fazer, a meio caminho e a pedido de passageiros transviados, em trânsito a contracorrente, um desvio de dois ou três quilómetros desde a estrada principal até ao lugarejo de Hatsay Khoun, na margem do Mekong. Depois, basta esperar arrimado a uma canoa ou à sombra de uma árvore até aparecer um barqueiro que nos leve até Don Khong, mais exactamente até ao povoado de Muang Khong, um aglomerado com pouco mais de uma vintena de casas, algumas suspensas sobre estacaria fincada rente à água, e um templo budista. É aí que está concentrada a oferta de alojamento da ilha, paredes-meias com um punhado de restaurantes debruçados sobre o rio.
A travessia, feita numa pequena barcaça a motor, dura menos de dez minutos. Sombat, o barqueiro desta circunstância, que será das poucas pessoas que no Laos ainda falam francês, é célere em propostas proveitosas para o viajante: ficam duas navegações combinadas para os dias que se seguem, às ilhas de Don Det e Don Khon (não confundir com Don Khong), para visitar as cascatas de Som Pha Mit, e a Don Daeng.
Ao primeiro dia de estância em Muang Khong, a “capital” da ilha, calha um far niente de averbar graças ao espírito cansado das vertigens da longa viagem desde Da Nang, à beira do agora distante Mar da China. Como na fala dos aborígenes do Canto Nómada, de Chatwin, é preciso parar um certo tempo para se esperar pela alma, ou coisa que se assemelhe e faça as suas vezes, que foi ficando para trás. A vista da enorme varanda do hotel é um bálsamo. Quase todas as pousadas da ilha têm este cenário impoluto a decorar a placidez de Muang Khong: o rio, amplíssimo como um lago, um espelho emoldurado por vegetação de onde sobressaem aqui e ali os pináculos ovalados e brancos das stupas budistas.
O rio é a vida
Um par de dias é pouco para o tanto que há para ser admirado. Mas as bicicletas alugadas nos pequenos hotéis ribeirinhos dão uma ajuda e as mil e uma voltas pelos caminhos de terra da ilha põem o viajante em intimidade com o mundo campesino de Don Khon: arrozais e arrozais, búfalos cinzentos a rebolar-se na lama, breves aldeias com casinhas de tábuas cobertas por telhados de zinco e assentes em estacaria, miudagem a chapinhar no Mekong em algazarras de fim de tarde, o povoado de Muang Saen e os seus mercados de rua, do outro lado da ilha, música tocada no khene, um instrumento tradicional de sopro muito popular no Laos, em melodias a escapar-se das casas de portas sempre abertas, templos budistas plantados à beira do rio, silenciosos e luzentes, a brilhar entre palmeiras e vegetação exuberante.
As navegações de barcaça alimentam outros retratos, que o viajante levará consigo quando deixar este arquipélago do fim do mundo da terra laociana: barcos e barquinhos para cima e para baixo, uns largos e outros com a forma de esguias canoas, ágeis a atalhar a corrente, uns com gente apenas e outros com mercadorias, sortida tarecada e motoretas, pescadores a lançar as redes, o casario em paliçada alinhado nas margens, um pintor a avivar as cores de um casco tão entretido que não ouve quem chama por ele. Isso tudo e muito mais, como o barqueiro Sombat a atracar numa ilha para recolher a filhota à saída da escola e passar-lhe o leme por uns curtos minutos, já no largo coração do Mekong.
Aqui tudo, ou quase tudo, se faz à volta do rio ou com a sua bênção. “O rio é a vida”, diz Sombat a propósito do que consta sobre o projecto hidroeléctrico que, ao que parece, transformará irremediavelmente o ecossistema de Si Phan Don e poderá provocar insegurança alimentar a um universo de cem mil pessoas, para além de perturbações nos sistemas hídrico e geológico. Negócios multinacionais pouco claros: é o que sugerem várias organizações ambientais que lançaram campanhas para bloquear a iniciativa.
Ao fim de uma semana de andanças anfíbias, entre barcaças e bicicletas e caminhadas ao longo das margens do Mekong e dos arrozais, o retorno à varanda do hotel assemelha-se a um regresso a casa, a uma casa sazonal, como as dos pastores nómadas, familiar e reconhecível mas sem o ónus de jaula dourada: um lugar afável, enfim, onde se pousa, brevemente, o corpo e o cansaço. Neste penúltimo dia de estância em Don Khong, assente já com Sombat o transbordo para Hatsay Khoun, onde uma van me levará a Champasak (outro povoado ribeirinho rodeado de arrozais e templos), o barqueiro quer saber quantos são os rios percorrem a Europa. Muitos, tantos, pequenos e médios e grandes, que daria uma trabalheira contar. Ao lusco-fusco, com milhares de insectos magnetizados pelas luzes da esplanada de ripas sobre a margem, arrisco o cálculo, ou a hipérbole: todas as suas águas juntas não encheriam o Mekong. E quando Sombat me estende a mão e se despede, até ao amanhecer do dia seguinte, volta a lembrança de um instante da véspera, quando o barco era como mais uma ilha, mas em movimento, um instante aceso pela imagem da pequena Kimo ao leme. Sombat tinha as mãos livres, os olhos fixos na corrente, e disse, sem olhar para ninguém: “O rio é a vida.”
Shiva antes de Buda
A pouco mais de uma dezena de quilómetros da aldeia de Champasak e a cinco das margens do Mekong, encontra-se um dos recintos históricos mais antigos e valiosos do Laos, o complexo religioso de Vat Phou, um espaço arqueológico que pode constituir um inestimável e muito significativo complemento da viagem a Si Phan Don.
O conjunto monumental de Vat Phou é anterior a Angkor e as suas raízes recuam até ao século V, muito antes da consagração do Budismo no território que viria a ser o do Laos. Ainda que na arquitectura dos templos a marca cultural khmer tenha uma presença forte (os edifícios principais datam dos séculos XI a XIII, mais ou menos o período áureo de Angkor), é uma visão do mundo de origem religiosa hindu que a sua planificação e inserção na paisagem configura. Como se faz notar no documento da UNESCO que sustenta a classificação de Vat Phou (e da paisagem cultural de Champasak) como Património Mundial, para além de excepcional testemunha das culturas que dominaram a região do Sudeste Asiático durante vários séculos, o complexo foi concebido de forma a expressar a visão hindu sobre as relações entre natureza e humanidade através de um longo eixo traçado entre a montanha e as margens do Mekong e de uma geometria padronizada de edifícios religiosos, numa extensão de cerca de dez quilómetros.
A visita ao museu é fundamental para uma percepção da riqueza cultural do sítio (estão ali expostos elementos arquitectónicos e escultura, entre outros objectos). Vale a pena, também, subir a colina, não apenas por causa das ruínas que por ali sobrevivem, mas também pela vista que se tem sobre todo o complexo e a imensa planície verde que se estende até Si Phan Don.
A montanha Phou Kao chegou a acolher um templo primitivo, entretanto desaparecido. O santuário principal, que tem vindo a ser objecto de restauro desde 1991, foi dedicado a Shiva. Não por acaso. O cume da montanha terá sido, então, interpretado como um símbolo fálico, associado nas narrativas sagradas hindus ao deus Shiva.
GUIA PRÁTICO
Como ir
A opção mais directa é apanhar um voo em Paris ou em Frankfurt para Vienciana, via Banguecoque ou Kunming, no Sul da China. A partir da capital do Laos há voos domésticos para Pakse. Há também autocarros diários para a capital da província de Champasak, que fica a quase 700 quilómetros de Vienciana, o que implica uma longa viagem de mais de dez horas. Outra opção é voar de Paris para Ho-Chi-Minh e apanhar aí uma ligação para Pakse. A partir de Banquecoque, há também ligações ferroviárias para Ubon Ratchathani, que fica perto da fronteira com o Laos, e daí autocarros diários para Savannakhet.
Quando ir
A estação seca — entre Outubro e Maio —, é a época mais propícia para viajar pelo Laos. O período que decorre de Novembro a Março é caracterizado por temperaturas mais moderadas.
Onde ficar
Em Don Khong, junto ao cais, há uma série de alojamentos para várias bolsas. Apesar de a oferta não ser tão extensa quanto em Don Det ou em Don Khon, se não for época alta não é necessário fazer reserva — a frequência turística é moderada. Muito perto do cais está o Pon Arena Hotel, uma das melhores opções (tel.:856 310253065; fax: 856 0310253066; email pon_arena@hotmail.com). Em Don Det, a cinco minutos da ponte que une a ilha a Don Khon, fica o River Garden Bungalows, que tem uma agradável esplanada sobre o rio (tel.: 856 207701860, email info@rivergardenlaos.com). Em Don Daeng, o La Folie Lodge, com os seus amplos bungalows em madeira, representa uma oferta num segmento superior e está envolvido em projectos de desenvolvimento comunitário na ilha (tel.: 856 20 55 532 004; email info@lafolie-laos.com; mais informação em http://www.lafolie-laos.com).
Informações úteis
Os cidadãos portugueses podem obter visto para o Laos à entrada. Normalmente o prazo de validade é de 30 dias. Mais informações em www.portaldascomunidades.mne.pt. Não há bancos ou caixas automáticas, pelo que convém levar dinheiro suficiente para a estadia. Alguns alojamentos fazem troca de divisas — dólares ou euros —, mas as taxas de câmbio são muito pouco aliciantes.