Fugas - Viagens

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Um mergulho na floresta

Por Francisca Gorjão Henriques

Passámos muitos milhares de anos imersos num ambiente natural e de vez em quando é preciso regressar. Os japoneses inventaram a expressão shirin-yoku para esses “banhos de floresta”. A ciência confirma o que intuitivamente estamos fartos de saber: as árvores fazem-nos bem. E não há tempo melhor que o que aí vem para nos fazermos ao campo.

Tudo começa e acaba num círculo. O começo: onze pessoas e um pau ao centro, que será tomado por quem quiser falar. Cada um descreve a “sua” árvore. E haverá quem diga que escolhe a oliveira, porque nos dá azeitonas e azeite, e quem diga que escolhe a floresta, porque não consegue separar a parte do todo.

O que vamos fazer a partir daqui é precisamente “mergulhar” no conjunto e tentar separar as partes. Primeiro tentar esquecer a vista, o sentido que se impõe aos outros, e atentar aos sons, aos cheiros e às texturas. Ver a floresta com as mãos e com os ouvidos, saboreá-la com a língua de fora, levá-la ao fundo dos pulmões.

Estamos na Mata dos Medos (perto da Fonte da Telha, no concelho de Almada). Chama-se assim porque medos (deve ler-se médos) é outro nome dado às dunas. A mata foi mandada plantar por D. João V, no século XVIII, para evitar que as areias invadissem os terrenos agrícolas a leste. São 340 hectares de pinheiros, aroeiras, perpétua-das-areias, camarinhas, medronheiros, com o som do mar em fundo. No site da Câmara Municipal de Almada podemos ler estas indicações sobre o local: “Com sorte, vai poder admirar o voo sereno da águia de asa redonda, a coruja do mato, o mocho galego e o peneireiro. Mais raras são as visitas do falcão peregrino, açore e águia de bonelli. No chão, procure vestígios da passagem da raposa, dos ouriços-cacheiros, coelhos, ginetes, texugos e répteis.”

Não tivemos sorte, aqueles animais ficaram escondidos. Mas nada se perdeu na proposta que Alex Gesse e Maria do Carmo Stilwell lançaram – mergulhar na floresta, caminhando sobre areia.

Os japoneses (exímios em arranjar etiquetas para tudo) cunharam o termo shinrin-yoku, que traduzido à letra significa “banho de floresta”. É uma prática que aparentemente pode parecer trivial mas que vendo bem se afastou do quotidiano de uma grande parte da população mundial: estar em contacto com as árvores. O Governo japonês adoptou-a nos anos 1980 para tentar baixar os níveis de stress da população urbana e faz agora parte dos cuidados preventivos de saúde. Do Japão, a prática passou para Los Angeles e dali para o resto do Ocidente.

Intuitivamente, saberemos que o contacto com a natureza nos faz bem. A socióloga Luísa Shmidt, do Instituto de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, refere à Fugas que quando num estudo, apresentado em Setembro de 2016, perguntou a 1500 portugueses que mudanças nas actividades de lazer foram trazidas pela crise, a frequência de parques e jardins sobressaía da lista: mais 17,6% do que antes, o que significa um aumento superior ao de qualquer das outras actividades listadas. “Foi uma forma de encontrar compensações. Os portugueses deixaram de ter tantas possibilidades de ir para centros comerciais para passar a frequentar espaços públicos gratuitos.” A viragem manteve-se, porque se “verificou que se retira prazer e bem-estar do contacto com espaços verdes”.

A psicóloga ambiental Ana Loureiro, professora auxiliar da Universidade Lusófona e investigadora no Copelabs, confirma: “Há estudos que mostram que os ambientes construídos, por terem maior complexidade, tornam-se mais geradores de stress. Ou pelo menos não proporcionam tantas emoções positivas como os ambientes naturais.” A explicação tem a ver com a própria evolução humana: “A espécie desenvolveu-se em ambientes naturais, considerados mais seguros (mas também há pessoas que sentem mais ansiedade e medo nos espaços naturais). São ambientes mais simples, com menos carga de informação para processar ao nível cognitivo.”

O que nos acontece quando estamos em espaços verdes? Baixa o cortisol (uma hormona da família dos esteróides, que funciona como um indicador do stress), diminui a pressão arterial, baixa a condutância da pele (a pele emite sinais quando se está sob tensão ou emoções fortes). Por outro lado, as emoções mais positivas levam a maior atenção e concentração; sentimento de revitalização e menor percepção de cansaço; menos stress e fadiga mental; melhor humor (redução da tensão, raiva e depressão) e melhor auto-estima, enumera Ana Loureiro.

Pode até nem ser preciso passar um dia inteiro na floresta para que a presença de ambientes naturais – um parque no bairro, árvores nas ruas, plantas em casa ou no escritório - tenha “um efeito positivo na saúde psicológica, proporcionando mais bem-estar”, adianta a psicóloga ambiental. Segundo vários estudos, as simples imagens (fotografias ou vistas da janela) em espaços de saúde resultam em recuperações mais rápidas e atenuação de dores.

Língua de fora

Por enquanto, só há no país duas pessoas a fazer os “banhos de floresta” certificadas pela Association Nature and Forest Therapy (ANFT): Alex Gesse e Maria do Carmo Stilwell, os dois guias que organizaram este passeio pela mata dos Medos (também os fazem na serra de Sintra). Maria do Carmo está ligada à organização de eventos, mas há 15 anos que desenvolve actividades relacionadas com o mindfullness; Alex trabalhava numa multinacional como avaliador de investimentos em start-ups, em Barcelona, até perceber que queria fazer outra coisa da vida. Criaram a Shinrin-Yoku Portugal depois de terem ambos feito uma formação em shirin-yoku na Irlanda, dada pela ANFT, durante a qual se conheceram.

Maria do Carmo chama várias vezes a atenção para o facto de esta imersão ser “uma medida de saúde pública”. “Há libertação de óleos essenciais [das árvores] que ajudam a criar defesas.” Para além disso, “o cérebro viveu aqui quatro milhões de anos”, o que explica a sensação de conforto e pertença.

O passeio vai sendo pontuado por “convites” - instruções que Alex nos dá para “despertar os sentidos e abrandar o ritmo, sentir a presença”, afirma o catalão. Depois, fazem-se os conselhos: o grupo junta-se em círculo, todos a olhar para todos, e partilha-se a experiência individual (numa herança das culturas indígenas, explicam os guias). “Às vezes ficamos um bocadinho isolados nas sensações que temos”; a partilha pretende romper esse isolamento. No fundo, será a comunhão dos onze passeios diferentes que necessariamente resultarão daqui – um por cada participante.

Como os grupos não são todos iguais (podem ser escolas, ou empresas, que querem trabalhar um aspecto específico como criatividade ou espírito de equipa, por exemplo), os convites focam-se em aspectos diferentes consoante os passeios. Mas os mais “básicos” serão aqueles que são orientados para “despertar os sentidos e desacelerar, ou evidenciar algum dos sentidos em particular – a vista é geralmente mais usada e apaga os outros. Aqui vamos despertá-los um a um”, explica Alex. “É uma ferramenta que pomos nas mãos das pessoas. Começas a ter experiências novas, que geram vários processos internos e externos.” Maria do Carmo acrescenta: “A cobertura das árvores cria uma protecção e uma envolvência que ajuda as pessoas a virarem-se para dentro.”

Depois de alguns passos ficamos de frente para o mar, separados por aroeiras e pinheiros que se estendem até ao areal. Novo círculo. “Vamos primeiro observar tudo o que nos rodeia”, convida Alex no seu português com sotaque catalão. “Agora fechar os olhos e respirar várias vezes, sentir como a terra nos sustém debaixo dos pés, como o céu nos mantém no nosso trajecto, como estamos rodeados de outros seres vivos, como os pensamentos aparecem e desaparecem e como vamos acolher tudo isto.”

A seguir, ainda de olhos fechados, vamos passar as mãos pelo corpo, ouvir os sons à volta, “como se misturam e fazem parte de uma sinfonia, aqui e agora”, e como a nossa respiração “faz parte da sinfonia desta floresta”. Mais à frente, respirando pela boca e o nariz ao mesmo tempo, “pôr a língua de fora e notar como se revelam os cheiros – a resina dos pinheiros, a secura da terra, o sabor do sal no ar”.

Outro convite, que é uma pergunta: “O que está em movimento?” Mexemo-nos ao ritmo de um caracol para ver tudo mais de perto e mais devagar, para sentir as texturas das plantas e atentar no fio da teia de aranha que se balança ao vento. “Se surgir ansiedade, observem e voltem ao convite: o que está em movimento?” Há quem toque em plantinhas rasteiras ou em arbustos mais altos como se os estivesse a descobrir pela primeira vez, ou a apresentar-se a eles.

Vemos que os cistos ainda não floriram, mas estão quase, que os medronheiros têm já pequenas bagas, ainda verdes, que o zimbro está bem castanho, que há mantos de líquenes no chão onde apetece deitar (e é o que faremos depois, quando nos convidarem a escolher um local da floresta onde pousar 25 minutos). “Quando se pára é quando tudo se movimenta”, comentará alguém. Outra pessoa dirá: “Viva a Primavera, que está a chegar!”

Informações
http://shinrin-yoku.pt/
https://www.facebook.com/ShinrinYokuPortugal/
Cada passeio custa 22 euros e é feito por marcação.

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